Grupos combatem a desinformação que começa, muitas vezes, por lideranças de dentro das igrejas e criam iniciativas contra a disseminação de um certo ‘coronelismo religioso’.

Há uma contraofensiva em curso frente à profusão de igrejas fundamentalistas na Amazônia: evangélicos que, de dentro dos próprios templos e afora, nos territórios, enfrentam líderes extremistas, alinhados à extrema direita, e se indispõem com irmãos de fé para preservar um valor cristão que por vezes soa esquecido: a verdade.

Taxados de “comunistas” e “pecadores”, esses grupos são perseguidos e desprezados pelos seus ao se oporem a discursos enganosos e de ódio. 

“Os evangélicos na Amazônia se tornaram um grupo de interesse político-partidário e fazem parte de um projeto de expansão de poder para além da fé. Para alcançar esse poder, alguns líderes distorcem o que está escrito na Bíblia e se utilizam de fake news, que se proliferam e ganham legitimidade por causa dos relacionamentos afetivos e de credibilidade entre lideranças religiosas e fiéis”, diz Vanessa Barboza, coordenadora da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, um grupo que atua nacionalmente, desde 2018, para promover justiça social e equidade de gênero entre as fiéis.

Os evangélicos na Amazônia se tornaram um grupo de interesse político-partidário e fazem parte de um projeto de expansão de poder para além da fé.

Vanessa Barboza, coordenadora da Rede de Mulheres Negras Evangélicas

Doutoranda em Ciências da Religião, Vanessa viu seu tema de pesquisa se concretizar em perseguição dentro das igrejas que frequentou durante a infância e adolescência em Recife. “Era um coronelismo religioso”, diz. E continua: “A desinformação virou uma ferramenta para sequestrar a figura de Jesus Cristo. A fé é uma arma mortal, porque ela pode manipular os fiéis.”

Para o pesquisador e jornalista Felipe Milanez, professor no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos na Universidade Federal da Bahia (UFBA), alguns líderes religiosos se utilizam de mentiras contra povos indígenas e ribeirinhos para atender a interesses de setores extrativistas, como o garimpo ilegal e o agronegócio.

“Para acessar os territórios e fazer com que a ideologia deles prevaleça, alguns líderes fundamentalistas vivem atacando os povos indígenas, mentindo, tentando ‘transformá-los em brancos’. O discurso é de que só existe um povo, só existe uma religião possível, e que não deve haver diferença de pensamento. É um discurso racista, colonialista. Eles querem ver o índígena embranquecer para servir a seus interesses de conversão. É algo extremamente violento. Quando você diz que só existe um Deus e uma religião dentro de territórios indígenas, por exemplo, automaticamente está negando o direito à fé livre de qualquer pessoa. E também está promovendo a intolerância religiosa, que pode significar perseguição e violência.”

O discurso é de que só existe um povo, só existe uma religião possível, e que não deve haver diferença de pensamento. É um discurso racista, colonialista. Eles querem ver o índígena embranquecer para servir a seus interesses de conversão. É algo extremamente violento.

Felipe Milanez, pesquisador e jornalista

Como fazemos o monitoramento:

O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pela InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.

A educadora popular Polliane Soares Reis também sentiu o preço da mentira. Evangélica, viu-se frente a pastores que usavam o espaço de fé para criminalizar e espalhar mentiras sobre o movimento ao qual ela pertence, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). 

As histórias fantasiosas sobre o MST espalhadas no território são as mesmas mapeadas pelo projeto Mentira Tem Preço nas plataformas digitais. Influenciadores, jornalistas e até pastores monetizam canais no YouTube afirmando, por exemplo, que o MST é um movimento terrorista. “Esse conjunto de notícias falsas gera perseguição e isolamento a irmãos que, ao mesmo tempo, querem professar a fé evangélica e são membros do movimento pela luta por terra”, diz Polliane. 

Para a jornalista Aline Brelaz, frequentadora de uma igreja evangélica em Ananindeua, no Pará, as fake news encontram espaço na igreja porque falta debate político entre os fiéis. “Falta discussão política real nas igrejas. Falta saber o solo que você pisa, de onde você vem, quem está tentando lhe explorar. Isso, nas igrejas, se a gente for discutir, é considerado comunismo. Por isso, sobra espaço para as mentiras se espalharem”.

Aline diz ter se decepcionado com pastores em quem antes confiava. “Quando começou a campanha eleitoral, em 2018, vários pastores que eu admirava, que haviam escrito livros muito bons sobre o Evangelho, sobre compaixão, passaram a espalhar um monte de fake news, a mandar todo mundo para o inferno e a postar foto fazendo arminha com a mão. Foi uma decepção enorme. Tanto que eu peguei os livros e queimei, rasguei. É um povo que se diz cristão, mas não é. Como defensora de direitos humanos, eu não quero conviver com gente que vive para contar mentira”.lária por semana, dentro de populações relativamente pequenas”, diz Júlio. 

A expansão das igrejas na Amazônia 

Levantamento conduzido pelo pesquisador Victor Araújo, associado ao Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP), mostra que o Brasil ganhou 17 novos templos evangélicos de diversas denominações por dia, em média. O mapeamento foi feito com base em registros de estabelecimentos religiosos inscritos na Receita Federal. 

Conforme os dados, a Assembleia de Deus foi a que mais cresceu, com 9.348 templos, de 2010 a 2019 – alta de 115%. Na Amazônia Legal, o estado de Rondônia, então antepenúltimo no ranking de concentração de evangélicos em 1970, assumiu a quarta posição em 2010. São 60 templos para cada 100 mil habitantes, conforme o levantamento da USP.  

Elis Dias, católica e articuladora popular da Casa Galileia, uma organização de cristãos que promove a democracia e a justiça socioambiental, conta que, durante uma incursão de 15 dias por comunidades da região do Baixo Rio Branco, entre Roraima e Amazonas, surpreendeu-se com a quantidade de pequenas igrejas pentecostais instaladas em comunidades de difícil acesso.

“O que me chamou atenção é que todo lugar que o barco parava, em comunidades ribeirinhas, sempre tinha uma Assembleia de Deus. São lugares bem distantes, mas sempre tinha um microfone, uma caixa de som e um cara que toca violão. É um padrão que atrai os jovens.”

O outro padrão era a desinformação como ferramenta para impactar os fiéis, como a de que não deveriam se vacinar em plena pandemia de Covid-19. “O nosso mapeamento mostrou que, naquela região, o índice de pessoas que se vacinaram era de 10%. Isso porque a maioria é evangélica e ouviu de pastores que não era para tomar porque era perigoso. Isso é um exemplo concreto da força da articulação extremista evangélica.”

Elis trabalha para fortalecer o trabalho de cristãos na promoção da democracia, da justiça ambiental e do engajamento sociopolítico – o que, segundo ela, são pautas propositalmente esvaziadas por lideranças evangélicas.

“A gente percebe, a partir de um esvaziamento do senso de comunidade, que pautas conflitantes, que deveriam ser resolvidas no coletivo, não conseguem avançar porque  uma ala da igreja evangélica esvazia isso. O pastor diz que preservar o meio ambiente não é importante, que não incide na comunidade. É uma força que desmobiliza e que legitima as fake news. Enquanto isso, as árvores estão sendo derrubadas, o ouro está sendo extraído. Se não está atingindo as igrejas, pouco importa para eles”.

A gente percebe, a partir de um esvaziamento do senso de comunidade, que pautas conflitantes, que deveriam ser resolvidas no coletivo, não conseguem avançar porque  uma ala da igreja evangélica esvazia isso. O pastor diz que preservar o meio ambiente não é importante, que não incide na comunidade. É uma força que desmobiliza e que legitima as fake news.

Elis Dias, católica e articuladora popular da Casa Galileia

A solução está na força da comunidade  

A Coordenadora da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, Vanessa, decidiu reagir. Formou um grupo com mulheres lideranças evangélicas de quatro estados Amazônia Legal – Pará, Amazonas, Acre e Amapá -, com o intuito de debater caminhos para fortalecer a democracia e a justiça social.

“Trazemos luz àquilo que está sendo negligenciado, à opressão. Esses grupos precisam existir e assumir protagonismo para evitar desmantelos sociais e ambientais”.

O mesmo ímpeto fez a educadora popular Polliane reunir evangélicos progressistas e fundar a Articulação de Evangélicos e Evangélicas Pastor Martin Luther King, em 2018. Lá, são promovidos estudos sobre a Bíblia e sobre a sociedade com o objetivo de combater discurso de ódio e desinformação.  

“Estamos construindo redes de diálogo para que a diversidade evangélica compreenda que a luta dos trabalhadores não é uma luta pecaminosa e nem criminosa. Também desenvolvemos formações para combater a desinformação. Fake news é mentira. Quando um cristão se utiliza de fake news, está indo contra o livro que ele diz que é sagrado, que é a Bíblia.”

Vanessa diz que, embora necessário, o trabalho de desmentir informações falsas é desgastante. “É cansativo enfrentar essa situação o tempo todo, porque todo dia chega uma história mentirosa no Facebook, no Instagram, no Whatsapp. Mas a gente precisa fazer. Nós estamos em uma guerra sem prazo para acabar.”

Nilza Valéria Zacarias, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pondera que, antes de apontar o dedo a todos evangélicos, é preciso saber separar os líderes midiáticos de megaigrejas, produtores contumazes de desinformação, da maioria dos pastores brasileiros, que atua em pequenas comunidades.

“Quando dizemos que líderes religiosos são promotores de fake news, precisamos saber diferenciar quem são esses líderes. Quando um desses pastores midiáticos, milionários, divulga mentiras, eu não tenho como ser piedosa ou generosa com eles. Mas a maioria dos pastores brasileiros é pobre, não pertence a nenhuma denominação e está inserida em pequenas comunidades. Essas pessoas são vítimas também: vítimas de um sistema educacional falho, vítimas de opressões diárias, vítimas de um bombardeio de informações diárias. Como é que eu vou esperar que eles tenham condições para checar tudo, sem antes oferecer a eles uma formação de qualidade?”, reflete.

Quando dizemos que líderes religiosos são promotores de fake news, precisamos saber diferenciar quem são esses líderes. Quando um desses pastores midiáticos, milionários, divulga mentiras, eu não tenho como ser piedosa ou generosa com eles.

Nilza Valéria Zacarias, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito

Para Nilza, só há uma forma de enfrentar as fake news olho no olho: mobilização comunitária e formação educacional. “A gente precisa de formação cidadã, de base. As pessoas não sabem como funciona o Executivo, o Legislativo, não sabem o que faz o STF ou o que é um repasse orçamentário. Por isso, nós precisamos levar esse debate às igrejas, bater de porta em porta para dialogar e falar do processo democrático no qual estamos inseridos. Precisamos reaprender a conversar. Porque, antes de serem evangélicas, essas pessoas são mães, são pais, são trabalhadores que deixam seus filhos em casa todos os dias para atender o patrão. Elas são cidadãs, acima de tudo”.


Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço, realizado pela InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala.

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