Países-membros da ONU assinaram um compromisso por uma ‘transição para o fim do uso do combustível fóssil’ após quase duas semanas de discussão em Dubai. Para chegar a um acordo, as palavras ‘eliminar’ e ‘diminuir’ não foram incluídas na versão final apresentada nesta quarta-feira.
Pela primeira vez em mais de três décadas, os quase 200 países-membros que participaram da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP28) se comprometeram com uma “transição” para o fim do uso de combustíveis fósseis. O documento final com as propostas internacionais para frear a crise climática foi assinado nesta quarta-feira (13) e encerra o evento, realizado neste ano em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
O texto também incorpora a proposta brasileira para obrigar os países reverterem o desmatamento e degradação de florestas até 2030 (leia mais aqui), como forma de garantir o limite médio de aquecimento da Terra em 1,5ºC acima do nível pré-industrial (1850-1900). Antes voluntária e declaratória, a preservação das florestas passa a ser compromisso dos países, o que contribui para a proteção de biomas como a Amazônia.
Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima, avalia que o acordo buscou uma “linguagem de consenso” e destaca que, entre versão preliminar do texto divulgada na segunda-feira (11), e que não mencionava combustíveis fósseis, e a versão final, ocorreram manifestações importantes da União Europeia, dos Estados Unidos, dos países ilhas do Pacífico, entre outros, que deram uma resposta “forte e generalizada sobre a necessidade de eliminar os combustíveis fósseis”.
“A linguagem era algo que estava sendo muito disputada e a escolha da palavra transição parece ter sido a saída de negociação para que todos os países aceitassem. Existem brechas e dificuldades ainda a serem vencidas, mas foi um passo importante”, avaliou.
O texto final evitou os termos “phase out”, eliminação, e “phase down”, diminuição, que polarizaram as discussões nesta última semana. Para transformar as decisões sobre o clima em realidade, os países agora precisam incorporar o acordo em seus compromissos nacionais (NDCs), que serão apresentadas pelos países apenas na COP30, que será realizada no Brasil.
Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, que acompanhou de perto as negociações em Dubai, avalia que o compromisso é um avanço para frear uma disparidade mundial que existia entre ações climáticas e anúncios de novas frentes de expansão de petróleo.
“O pacote de energia está claramente identificando a transição para o baixo carbono e alinhado a uma transição de combustíveis fósseis até 2050. Isso não é pouca coisa”, afirmou, citando como exemplo contradições do próprio Brasil, que levou para conferência resultados climáticos como a redução do desmatamento na Amazônia e a redução nas emissões dos gases do efeito estufa, mas que acabaram ofuscados por anúncios como o ingresso do país na OPEP+ e com o lançamento de um leilão de petróleo e gás apenas um dia após o encerramento da COP28.
“É exatamente o que está acontecendo hoje no leilão no Brasil: novas explorações de petróleo que vão contra a meta do Acordo de Paris. Então, essa linguagem do transition away [ou transição] até 2050 em linha com a ciência vai forçar uma revisão nos planos de expansão da exploração de petróleo que existem em inúmeros países, incluindo o Brasil”, explica Unterstell.
A própria ministra Marina Silva fez sinalizações em relação a isso em seu discurso no encerramento da conferência: “a partir de agora temos uma forte sinalização para governos e empresas de que esse tema passa a fazer parte dos compromissos assumidos por todos e em uma trajetória de transição para o fim do uso de combustíveis fósseis”.
Marina também acenou que o compromisso climático brasileiro terá que incluir “todos os setores da economia”, e pode obrigar uma revisão no Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), que está em discussão no Congresso e recentemente excluiu o agronegócio do cumprimento de um teto de emissões.
Brecha para gás fóssil na transição e a meta do 1,5 ºC
Entre os pontos negativos do documento, especialistas destacaram a falta de mecanismos claros para financiar a transição justa e equitativa, principalmente nos países subdesenvolvidos, e a falta de alternativas ao uso de gás fóssil no parágrafo que trata sobre combustíveis de transição.
Para Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas do do WWF-Brasil, o tom neutro que o documento buscou ao tratar dos combustíveis fósseis deixa brechas de interpretações que podem retardar ações mais incisivas na eliminação da extração e uso de petróleo.
“Ao recomendar a transição dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, a meta de emissões líquidas zero fica para os sistemas energéticos como um todo e não o setor de fósseis especificamente. Se por um lado isso fortalece a tendência da indústria fóssil de enfatizar o potencial da captura de carbono, por outro mantém a utilização do petróleo em setores petroquímicos não relacionados com a produção de energia. Ainda não é a linguagem robusta que precisamos, mas é um avanço em relação à versão anterior.”
O coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo, diz que a menção aos combustíveis fósseis pela primeira vez desde 1992 é “um marco importante”, mas que uma transição até 2050 ainda não é ideal para garantir a meta climática limitada a 1,5 ºC.
“Mais importante foi a indicação de que precisa começar esta década”, afirma, ponderando que “o que está na decisão não chega nem perto de garantir a limitação do aumento da temperatura em 1,5 graus alinhado com Paris, mas é um passo importante nessa direção”. Para Azevedo, a não menção ao gás fóssil no texto “deixou aberta uma brecha gigante para o gás fóssil como ‘combustível de transição’”.
Preservação da Amazônia fortalecida, mas texto deixa povos indígenas de fora
O acordo para reverter o desmatamento e a degradação de florestas, um dos principais pontos defendidos pelo Brasil durante a COP28, deve fortalecer as políticas brasileiras rumo ao desmatamento zero até 2030. No entanto, o texto não incluiu a participação dos povos indígenas.
Segundo o texto, a reversão do desmatamento até 2030 deve seguir o acordo de biodiversidade que foi fechado na COP15 de Biodiversidade, em Montreal (Canadá), em 2022. A meta estabelecida é de praticamente zerar o desmatamento em áreas sensíveis e de grande biodiversidade.
Além disso, o artigo que trata da preservação de florestas alia a preservação com o cumprimento da meta climática de manter o nível de aquecimento global em 1,5ºC. O texto fortalece iniciativas como o Fundo Amazônia e o Florestas Tropicais para Sempre (FFTS), este segundo encabeçado pelo Brasil e que pode beneficiar 80 países que possuem grandes áreas de vegetação nativa. A meta para o FFTS é captar US$ 250 bilhões com os países mais ricos.
No entanto, segundo observa Alexandre Prado, ao abordar exclusivamente florestas, o documento final da COP28 “acaba penalizando outros importantes biomas que estão sendo devastados, como o Cerrado brasileiro”.
Além disso, também ficaram de fora questões defendidas por diversos países relacionadas aos direitos humanos e sobre a participação indígena no cumprimento das metas climáticas, ponto defendido pelos negociadores do Brasil, mas que foi alvo de resistências internas dentro da delegação do país.
As contradições brasileiras da COP28
A COP28 evidenciou contradições no governo de coalizão liderado por Lula. Apesar de ser a edição com maior participação indígena, incluindo a ministra Sonia Guajajara como chefe de delegação brasileira, os povos tradicionais foram marginalizados nas principais discussões relacionadas às ações e ao financiamento das mudanças climáticas.
No Pavilhão Brasil, executivos de grandes empresas, políticos e gestores financeiros focaram em transição energética, estocagem de carbono e aumento de energia renovável sem abordar as necessidades indígenas. Durante um painel com executivos da mineradora Vale, indígenas protestaram e cobraram espaço de fala no painel.
Ingrid Sateré Mawé, da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), diz que a não inclusão dos povos indígenas no texto final da conferência ocorre porque é “compatível com o que aconteceu na conferência”.
Tudo isso em meio a um contexto de preocupação com a realização de leilões de petróleo e gás na Amazônia e a possibilidade de abertura de terras indígenas para projetos agropecuários e construção de hidrelétricas, como promete a bancada do agronegócio para sessão que vai analisar vetos do presidente Lula.
“Os povos indígenas estão sendo afetados pelas empresas de mineração, pelo avanço do agronegócio e pelos projetos que pretendem explorar mais petróleo e gás na Amazônia. Não houve participação dos indígenas nessas discussões. O discurso não bate com a realidade, e isso nos preocupa bastante”, aponta Sateré.
Antes de embarcar para a COP28, a ministra Sonia Guajajara disse em entrevista à InfoAmazonia que a derrubada dos vetos de Lula na lei que mexe nos direitos indígenas contratria compromissos climáticos do país. Durante o evento, a ministra disse que seguirá com agenda para tentar reverter o quadro anunciado pela bancada ruralista.