Um cheirinho de fumaça no ar. Apenas o gostinho de um triste futuro da Amazônia.
Na quinta-feira, dia 27 de outubro, havia um cheiro de fumaça no ar. No dia 28, uma névoa azulada se adensava e, no fim da tarde, tornou-se cinza e pesada. O pôr-do-sol avermelhado não deixava dúvidas: estávamos envoltos em pura fumaça de queimadas.
Os olhos começaram a arder, o nariz a escorrer. As roupas e os cabelos impregnados como um cinzeiro. A vida de quem acorda e dorme na fumaça.
Em Santarém, na semana passada, fomos defumados. Em meio à felicidade de ver o Tapajós ainda com alguma água, era triste sentir a grande quantidade de fumaça no ar.
Ao acessar o site do monitoramento de queimadas do INPE, me dei conta da situação aterradora. O mês de outubro de 2023 registrou as maiores queimadas desde 2008 no Pará, com 11378 focos de calor contra os 11568 registrados há 15 anos, até hoje o recorde histórico. Ou seja, por pouco, o outubro de fogo no Pará não se tornou o pior de todos os tempos.
Em comum, estes dois anos, 2008 e 2023, registram a ocorrência do El Niño, fenômeno cíclico de aquecimento das águas do Pacífico. Quando há El Ninõ, a Amazônia fica mais seca. O que torna este ano pior é o avanço das mudanças climáticas. 2023 será provavelmente o ano mais quente da história, informou a Organização Mundial Meteorológica. Uma combinação que potencializa a ocorrência de eventos extremos.
Este parece mesmo já ser um ano de recordes. Em setembro, como mostrou reportagem da InfoAmazonia, foi o estado do Amazonas quem bateu recorde de queimadas. Nesta semana, pela segunda vez no ano, a capital Manaus está sufocada por uma enorme nuvem de fumaça.
Sabíamos da seca já em estágio avançado no alto Solimões e Rio Negro, mas claramente agora ganhou força na porção mais a leste da Amazônia. Na previsão climática para os próximos três meses, o CPTEC do INPE indica que é exatamente essa parte central do Pará onde se esperam as maiores anomalias, chuvas bem abaixo do normal.
Aposto que, se perguntados sobre o alto número de queimadas na Amazônia, os governantes de plantão dirão que é um ano de seca extrema, que foram pegos de surpresa. Sempre assim, para tirar o corpo fora. Foi o modelo adotado pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em 2016, quando a água secou no Sistema Cantareira.
Estou curioso, por exemplo, para perguntar ao governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, sobre as queimadas e o desmatamento em seu estado. Helder, como se sabe, será o anfitrião do maior evento ambiental em muitos anos no Brasil, a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 30, em Belém.
Neste ano, de acordo com o INPE, o Pará é o estado com mais focos de calor em todo o Brasil – 20% de todas as queimadas realizadas no país. El Niño e mudança do clima, nestas hora, se tornaram grandes aliados dos que não querem enxergar que temos um problema de longo prazo e que exige soluções de longo prazo.
A pesquisadora Erika Berenger, da Universidade de Lancaster, especialista sobre o fogo na Amazônia, conversou comigo após semanas fazendo trabalho de campo na Floresta Nacional do Tapajós.
Erika tem feito pesquisas nas florestas do Tapajós há quase uma década. Ela observa que, em comparação a 2015, este ano o fogo (e por consequência a fumaça) se originou em queimadas para o desmatamento, e não incêndios florestais para limpeza de pastos e roçados. A densa fumaça que chegou a Santarém e outras cidades do Pará indica grande quantidade de biomassa queimada.
No campo, Erika e seus colaboradores estão coletando dados sobre a saúde das matos que passaram por queimadas. Ao medir a quantidade de árvores atingidas pelo fogo e também a umidade da serrapilheira na floresta, esperam entender quais os danos a longo prazo.
Ainda é cedo para chegar a conclusões. Mas ela nota o que muitos de seus colegas cientistas vem apontando: uma vez queimadas, matas amazônicas vão se tornando mais vulneráveis, suscetíveis a novos incêndios. Florestas que revelam um possível futuro na Amazônia, mais seca e degradada.
Depois de semanas na floresta, Erika teve que ir ao hospital com uma possível intoxicação por fumaça. Tinha dor de cabeça e febre. A médica que a atendeu recomendou repouso e uma série de medicamentos. Nada grave.
Mas o episódio suscitou na pesquisadora o pensamento sobre os custos das queimadas para saúde pública. “A fumaça é um problema gerado por interesses privados, por quem lucra com as queimadas, mas quem paga somos nós, a população que precisa do hospital público”, comentou.