Pesquisadora Erika Berenguer fala das descobertas recentes sobre real impacto do fogo nas emissões de CO2, que perduram por mais de três décadas após a queima. Ciência ainda não sabe afirmar se a floresta consegue se recuperar por completo de uma queimada, mas sua restauração só pode ser calculada em séculos.

Por Juliana Arini, de Cuiabá (MT)

“O grande impacto de uma queimada na floresta acontece quatro anos depois”. O alerta é da pesquisadora sênior nas universidades de Oxford e Lancaster (Reino Unido), Erika Berenguer, especialista em florestas tropicais que integra a Rede Amazônia Sustentável (RAS), composta por pesquisadores de mais de 30 instituições do Brasil e do exterior.

Há mais de uma década, Erika estuda os impactos do fogo na maior floresta tropical do mundo. Em 21 de outubro, a pós-doutora publicou o artigo “Estimating the multi-decadal carbon deficit of burned Amazonian forests” (Estimando o déficit de carbono multi-decadal das florestas queimadas na Amazônia,­ em tradução literal), no periódico Environmental Research Letters.

No estudo, liderado pela pesquisadora Camila V. J. Silva, doutoranda da Universidade de Lancaster, foi constatado que os efeitos das queimadas na floresta não terminam de imediato ao fim dos incêndios. O auge das emissões de CO2 acontece quatro anos depois, e elas perduram por mais de três décadas. Nesse período, a floresta só recompõe 35% da sua capacidade de captura de carbono.

A Amazônia intacta é considerada um dos maiores reservatórios de carbono do mundo, armazenando um volume comparável aos dos estoques de carbono dos pergelissolos congelados (permafrost) do Ártico. A floresta armazena CO2 equivalente às emissões de um século de atividades econômicas dos EUA, o maior emissor do ranking mundial. Queimar a floresta significa liberar muito CO2 na atmosfera, mas o que as pesquisadoras concluíram pode causar um choque maior. O grande pico das emissões na Amazônia não acontece no momento da queima, e sim quatro anos depois. E pior, a floresta pode demorar quase um século para conseguir recompor sua capacidade de estocar o mesmo carbono que emitiu ao longo desse período. E essa recuperação só ocorre se a região não for perturbada por novas queimadas. Os pesquisadores relembram no artigo a previsão de que, até 2050, o sul da Amazônia brasileira terá 16% de sua extensão afetada por incêndios florestais.

Leia a seguir a entrevista completa.

InfoAmazonia – O senso comum nos faz acreditar que, após o fim de uma queimada todos os problemas se resolvem, principalmente quando começa a chover. O artigo publicado nos mostra o contrário. Como chegaram a essas conclusões? Erika Berenguer - Foi um trabalho liderado pela pesquisadora Camila Silva, que trabalhou em diferentes áreas da Amazônia. Meu estudo foi em Santarém (Pará) e na Amazônia Central, áreas que tiveram queimadas acidentais e não naturais. O estudo avalia como são as emissões ao longo do tempo, depois de uma floresta ser atingida pelo fogo. O que concluímos é que o pico de impactos e morte das árvores acontece quatro anos depois da floresta pegar fogo. Isso porque tem um atraso na morte das árvores, muitas começam a morrer depois de serem atingidas pelos incêndios.

Isso é aplicado a toda Amazônia? Sim, em toda floresta, e é algo que não sabíamos. Mesmo nós cientistas imaginávamos que todas as emissões fossem imediatas. A floresta emitiu e pronto. Mas não é assim.

É algo lento e o pico das emissões é quatro anos depois, quando as árvores vão morrendo ao longo do tempo. Isso muda todo o conceito que tínhamos sobre emissões na Amazônia.

Essa constatação também se aplica nos casos do corte raso? E transformação do uso do solo para outra atividade, como a pecuária? Não, nesse caso é diferente. A pessoa já passou a corrente, fez a leira [como se chama as pilhas de matéria do que sobrou da floresta derrubada] e colocou fogo. A floresta foi queimada, emitiu todo o seu estoque de CO2.

Então o estudo é um alerta aos impactos sobre a porção da floresta que jamais poderá ser convertida, como unidades de conservação, terras indígenas, áreas de proteção permanente (APP) e reservas legais? Sim, exatamente. Acreditamos que, se não houve conversão [desmatamento total], está tudo certo. Esse é o ponto importante. O Código Florestal é baseado na floresta em pé apenas, acreditando na integridade dos 80% [percentual obrigatório de conservação no bioma Amazônia]. Dessa forma, não se discute a qualidade dessa floresta que fica intacta.

O que descobrimos é que uma área que enfrentou um incêndio vai ter menos carbono que uma região intacta de verdade. A legislação atual não leva em consideração os mecanismos de degradação da floresta que alteram suas capacidade de oferecer serviços ecossistêmicos.

Qual o impacto desse estudo em novos inventários de carbono? Seria importante [ter um impacto], mas hoje as áreas de floresta que queimam não são consideradas dentro do inventário nacional de emissões de carbono do Brasil. Só é considerado a conversão mesmo e essa é a metodologia do mundo. No caso da Amazônia, não é contabilizado porque a floresta naturalmente não queima. Não existe regime de fogo natural na floresta, como em biomas como o Cerrado. Isso teoricamente, pois a floresta está deixando de ser úmida por uma série de fatores, como as mudanças climáticas. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas já indica haver um aumento de 1,5º C na temperatura da Bacia Amazônica. Nas áreas com muito desmatamento, há um aumento de cinco dias nos períodos de seca e mudança no regime de precipitação. Esses fatores todos estão deixando a floresta mais seca e propensa ao fogo.

Quais seriam as origens desse fogo não natural dentro das áreas de floresta que não deveriam queimar? Como essa dinâmica está ligada ao desmatamento? A origem é o fogo usado no desmatamento. Começa em derrubadas e segue pra floresta. A pessoa quer derrubar 10% da propriedade, que pode fazer segundo a Lei, mas perde o controle e queima 50%, pois a floresta está seca e propensa mais fácil ao fogo. Mesmo que não seja convertida, vemos que essa floresta que foi atingida continua emitindo CO2. Essa foi a conclusão do estudo, que focou nessas áreas.

A origem dessa propensão maior ao fogo seria apenas mudanças climáticas? Não, a atividade madeireira também tem muito impacto. A cada árvore retirada, se cria uma clareira de até cem metros quadrados.

Com o tempo e intensidade de exploração a floresta fica parecendo um queijo suíço e são nesses buracos que entram mais luz e vento. A floresta fica muito mais quente e sem umidade. Dessa forma estamos ressecando a floresta, o que permite que o fogo entre e se mantenha, algo que não era visto no passado.

Agricultura de subsistência foi praticada por milênios, mas a floresta era úmida. Agora nem três metros de aceiro está segurando um incêndio, o fogo pula até essas barreiras. Quando desmatamos uma área, é como se a gente cortasse um tecido em quadradinhos e as bordas desses rasgos vão desfiando, ficando mais frágeis. É assim quando cortamos a floresta, a parte exposta fica fragilizada, surge a presença maior de cipós e outras espécies. Isso significa que a borda seca facilita a persistência do fogo na floresta. E claro, daí temos temos a comunicação desses efeitos antrópicos com as mudanças climáticas.

Então, os cálculos do manejo florestal estão errados? O setor sempre afirmou que para cada árvore cortada crescem outras quatro. Se fosse assim, poderíamos tirar toda madeira da Amazônia, mas não é bem assim que funciona. Tem dois fatores aí. Na floresta, temos árvores gigantescas que são as que serão tiradas pelo corte seletivo. E essas árvores armazenam uma quantidade desproporcional do estoque de carbono da floresta. Para calcular exatamente, precisamos considerar a altura, o diâmetro e a densidade da madeira. Quanto maior o diâmetro da árvore, normalmente mais alta ela é e isso incorpora mais carbono. Existem também diferentes tipos de madeira e cada uma com sua densidade. Uma embaúba tem 0.3 centímetros por grama de densidade, mas um Ipê pode chegar a 1.2 cm/g. O que acontece é que uma coisa está sendo multiplicada por outra, mas há muita diferença…

Então, se retira uma madeira de densidade alta e crescem quatro embaúbas finas, isso não é o mesmo estoque de carbono... Perto de Manaus tem medição de árvores de mil anos. Vamos retirar essas árvore e o que vem no lugar? Esse argumento é ingênuo, crescem quatro, mas o que? Qual a qualidade dessa nova floresta?

E por quê vocês afirmaram que os efeitos das queimadas duram mais de três décadas? Verificamos esse dado ao voltarmos em queimadas [realizadas em períodos anteriores]. Nessas regiões, apesar do crescimento [da vegetação], verificamos que essas novas árvores só compensam 35% das emissões que elas causaram ao terem contato com o fogo.

Isso por causa do empobrecimento da floresta? Sim, há o empobrecimento. Mas é importante dizer que, por mais que sejam empobrecidas, ainda assim são muito mais ricas que um pasto. É importante frisar que não é porque foi degradada que pode ser desmatada. Após queimada, a floresta fica mais pobre que uma intacta, mas mesmo assim é melhor que pastagem em termos de biodiversidade e estoque de carbono.

E essa dinâmica pode ser aplicada a outros biomas, como o Pantanal que teve 30% de sua área atingida pelas queimadas? Podemos dizer que o bioma só terá esse impacto maior em quatro anos? A resposta é: eu não sei. Cada ecossistema tem sua dinâmica. E sua forma de responder a diferentes tipos de pressões. Mesmo dentro da Amazônia há áreas mais sensíveis que outras. O fogo no Pantanal foi muito pouco estudado, e, infelizmente, não há literatura a respeito.

Quando exatamente uma floresta consegue se recuperar por completo de uma queimada? A resposta até agora é: não sabemos afirmar essa data. Em uma escala temporal de décadas, certamente não haverá essa recuperação. Talvez em uma escala temporal de centenas e centenas de anos, mas ainda não sabemos. Porém, uma coisa que é fundamental nessa resposta, o pior para esse ciclo de degradação não é necessariamente um evento de fogo, mas a reincidência das queimadas.

Existe futuro para Floresta Amazônica? Meu dever como cientista é dizer que sim. Ainda podemos reverter a destruição. Não é como se tudo tivesse perdido. A cada dia estamos fazendo a coisa ficar pior, porém, ainda há a possibilidade de reverter. A nível nacional, a prioridade seria frear o desmatamento. E isso é algo que já fizemos de 2004 a 2012, baixando em 80% os níveis de desflorestamento. Logo, sabemos que podemos sim reverter.

Berenguer e sua equipe de campo se preparando para remedir florestas queimadas na Floresta Nacional do Tapajós, Belterra, Pará. Foto: Marizilda Cruppe/Rede Amazônia Sustentável

Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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