Floresta na Terra Indígena Kayapó, com embarcações na entrada da aldeia Pykararakre. Foto: Ianca Moreira/InfoAmazonia
A Carbonext, que tem como uma de suas donas a petroleira Shell, é acusada de ter convencido indígenas da Amazônia brasileira a assinarem documentos com folhas em branco e de oferecer dinheiro adiantado para obter exclusividade na venda de créditos de carbono: 1 crédito de carbono equivale a 1 tonelada de CO2 equivalente evitado na atmosfera. das áreas de floresta onde esses povos vivem, segundo relatos de indígenas que foram procurados pela empresa e de informações que estão em documentos públicos e processos extrajudiciais. A empresa nega as acusações.
Entre 2021 e janeiro de 2023, a Carbonext anunciou contratos em seis terras indígenas: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. e reservas extrativistas: As reservas extrativistas são Unidades de Conservação de Uso Sustentável, que equilibram a preservação da natureza com a utilização sustentável de recursos naturais. na região, e com isso pretendia mais do que dobrar a área que atualmente possui para compensar emissões de carbono no país. Por trás desses acordos, estaria o maior plano empresarial de descarbonização do planeta, da britânica Shell, que pretendia captar 120 milhões de créditos de carbono por ano até o final desta década – e compensar cerca de 10% de suas emissões de gases do efeito estufa. Como parte do programa, a petroleira investiu R$ 200 milhões na compra de uma parte da Carbonext: “Associar nossa companhia à Carbonext é um passo importante para nossa meta de compensar 120 milhões de toneladas de CO₂ ao ano até 2030”, divulgou a empresa em julho de 2022.
A reportagem da InfoAmazonia foi até os territórios alvos destes projetos e, ao longo de dez meses, reuniu documentos públicos, registros de encontros e entrevistas que indicam como a empresa teria violado os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e omitido informações dos indígenas para garantir estes acordos. Além disso, a Carbonext ignorou as recomendações da Procuradoria Federal da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai: Órgão federal criado em 1967 e responsável pela execução das políticas de proteção e de promoção dos direitos indígenas em todo o território nacional.), que aponta a necessidade do aval da União para projetos de carbono em terras indígenas e orienta os povos a não assinarem esse tipo de contrato “por falta de regulamentação”.
A apuração desses contratos faz parte da série de reportagens “Dinheiro que dá em árvore: financeirização da floresta pressiona terras indígenas”, que aborda projetos em territórios tradicionais da Amazônia brasileira com suspeitas de ilegalidades.
Após diversas denúncias apresentadas ao Ministério Público Federal (MPF) de que esses contratos foram firmados sob pressão e descumprindo os ritos legais, a Carbonext desistiu dos projetos nos territórios, mas as suspeitas de violações nesses acordos são apuradas na Procuradoria da Funai e no MPF, que acompanham os casos em procedimentos extrajudiciais.
Se confirmadas as violações, as empresas envolvidas poderão ser processadas judicialmente para reparar eventuais danos causados aos indígenas.
A procuradora da República no Pará Nathália Mariel afirmou que as mesmas violações têm se repetido em diferentes territórios, gerando expectativas e envolvendo acordos internacionais, e que “isso gera, sim, a possibilidade de ações judiciais, cível e criminal”. “Quanto mais massiva for a apresentação desses argumentos que mostram a violação da consulta prévia, mais forte fica inclusive uma ação do ponto de vista internacional para mostrar que esse tipo de negociação não é válida”, afirmou a procuradora.
A consulta livre, prévia e informada (CLPI) nos moldes da OIT-169 tem o objetivo de garantir a autonomia territorial das populações indígenas e o direito de serem consultadas de boa-fé sobre qualquer projeto em suas terras, incluindo o direito de recusarem propostas.
Mariel acompanha um processo administrativo aberto contra a Carbonext na Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá, no sudeste do Pará, onde indígenas do povo Tembé foram pressionados para assinatura de um contrato que foi considerado ilegal pela procuradoria. Segundo Mariel, o caso é um dos que estão sob apuração.
Na primeira reportagem desta série, mostramos as suspeitas de violações de empresas da Colômbia que tentam avançar com projetos de carbono em terras indígenas no Amazonas. Assinaturas de pré-contratos nesses projetos estão relacionadas à promessa de que o dinheiro da venda dos créditos de carbono financiaria uma universidade indígena.
Um projeto desconhecido assinado em uma folha de ‘papel limpo’
Na Terra Indígena Alto Rio Guamá, o acordo para o projeto de geração de crédito de carbono com a Carbonext ocorreu em reuniões em que os indígenas alegam não saber exatamente o que estava sendo assinado. Alguns sequer falavam português, e tiveram dificuldades para entender o que era falado ou o que constava nos documentos.
Em declarações para a reportagem e segundo consta em documentos oficiais enviados ao MPF, a Carbonext afirma que o contrato com os indígenas da TI Alto Rio Guamá foi firmado em 16 de novembro de 2022.
Glossário do Mercado de carbono
Entenda os principais conceitos e termos relacionados a projetos de geração de créditos de carbono nesta página.
No entanto, a empresa continuou colhendo assinaturas dos indígenas em diferentes momentos depois do dia 16, segundo consta na ata de uma das reuniões.
De acordo com uma testemunha, que pediu para não ser identificada, durante uma segunda reunião entre Carbonext e indígenas da TI, em 30 de novembro de 2022, no momento da impressão do contrato na aldeia Teko-Haw acabou a tinta da impressora e os indígenas teriam assinado documentos com algumas folhas em branco.
Nessa reunião, segundo a ata do encontro, os indígenas foram chamados para assinar documentos “por quem não assinou outro dia”, conforme sugeriu uma das lideranças indígenas presentes, que defendeu a adesão ao projeto. A reunião, que inicialmente seria para apresentar o projeto de carbono, acabou com a leitura e “assinatura do contrato”, segundo o registro oficial.
O cacique da aldeia Teko-Haw, Carlos Sérgio Tembé, o Karapaí, foi quem abriu essa segunda reunião, e disse que não participou da anterior, que teria ocorrido em 16 de novembro para assinatura do pré-contrato. Kaparaí contou que assinou papéis, mas que não tinha entendido que isso significaria o consentimento em relação ao projeto.
“Era uma ata da reunião, uma assinatura de presença de reunião”, afirmou. “Depois que nós descobrimos que já tava já assinado esse pré-contrato”, contou Karapaí à reportagem sob a sombra da mesma mangueira onde seu pai fundou a primeira aldeia do território, quando a família atravessou o rio Gurupi, na divisa com o Maranhão, em busca de recursos da floresta.
O líder indígena Sérgio Muxi disse que os caciques assinaram “papéis limpos” para dar consentimento ao projeto de carbono na terra indígena, e que depois foi oficializado formalmente em um pré-contrato. “Foi só os caciques que assinaram, aqui mesmo no papel velho, papel limpo, botar o nome lá e pronto. Não era um documento”, explicou. “Era quase que uma lista de presença e tá valendo disse que o pré-contrato”, disse Muxi, o primeiro da comunidade procurado pela Carbonext, na época, por indicação do ex-prefeito Adnan Demacki, dono da empresa Campo Verde, que se apresentou como sócia do projeto da Carbonext na terra indígena.
O cacique Naldo Tembé, da aldeia Ituaçu, localizada em em outra parte do território, disse que só soube que havia um projeto de carbono na terra indígena com a Carbonext depois que o contrato já estava assinado. “Na Terra Indígena Alto Rio Guamá, não é apenas um grupo, tem dois grupos. Isso foi chamado a atenção, pelo Ministério Público, aí eles vieram conversar com a gente, mas não fechamos contrato com ela”, afirmou Naldo.
A procuradora Mariel disse que o acordo com a Carbonext não seguiu os protocolos adequados. “Não houve consulta (CLPI) e as pessoas que assinaram não têm legitimidade para representar toda a terra indígena. Não deveria nem ser considerado como um contrato”, afirmou, explicando que o caso segue sob investigação para apurar possíveis violações de direitos dos indígenas.
Não houve consulta (CLPI) e as pessoas que assinaram não têm legitimidade para representar toda a terra indígena. Não deveria nem ser considerado como um contrato.
Nathália Mariel, procuradora da República no Pará
Em nota, a Carbonext nega que tenha utilizado papéis em branco para obter as assinaturas e que todos assinaram os contratos com todas as informações impressas “com a participação de representantes de todas as comunidades”.
“A informação de que foram assinadas páginas em branco é inteiramente falsa, havendo inclusive registro audiovisual e fotográfico das assinaturas dos contratos impressos sendo realizadas pela comunidade. Isso tudo, após horas de leitura e explicação integral do contrato, cláusula por cláusula”, manifestou a empresa em nota.
Em chamada de vídeo, a assessoria de imprensa da Carbonext mostrou para a reportagem fotos de indígenas assinando um documento com a página inicial impressa, indicando que seriam do dia 16 de novembro, mas não era possível identificar se havia páginas em branco nele e se correspondia ao mesmo momento que os indígenas relataram à reportagem. Até hoje, a empresa não apresentou o contrato com os indígenas da TI Alto Rio Guamá às autoridades.
Procurado pela reportagem, o ex-prefeito de Paragominas, Adnan Demacki, não quis se manifestar.
O ancião da aldeia, Lourival Tembé, pai do cacique Karapaí, assim como a maioria dos moradores da pequena comunidade formada por 78 famílias, disse que não sabia absolutamente nada sobre o projeto de carbono, mas que ouviu que seria algo para proteger a floresta e trazer dinheiro para a comunidade.
Em junho deste ano, após abertura de um procedimento administrativo para apurar as denúncias, a Carbonext comunicou ao MPF a desistência do projeto na TI Alto Rio Guamá, justificando que “a comunidade ainda não decidiu, de maneira uniforme, se pretende desenvolver o projeto de crédito de carbono em seu território”.
A desistência da Carbonext nunca chegou aos indígenas da aldeia Teko-Haw, que disseram que foram informados sobre o fim do contrato pela nossa reportagem, em agosto de 2023.
O MPF informou que vai juntar as informações levantadas pela reportagem da InfoAmazonia no processo.
Funai diz que projetos precisam de autorização da União
O Brasil ainda não tem uma legislação própria para o mercado de carbono e o assunto ainda está em discussão no Congresso. Desde 2010, uma nota técnica da Procuradoria da Funai aponta a necessidade de definição específica para os projetos de carbono em terras indígenas e recomenda, expressamente, a não assinatura destes acordos. No entendimento dos procuradores, apesar de assegurada autonomia dos povos indígenas, esses territórios continuam sendo propriedade da União, o que obrigaria a anuência do Estado brasileiro. Apesar do lapso temporal, de 13 anos, a Funai tem mantido que as conclusões apontadas naquele documento permanecem válidas.
Os projetos da Carbonext para geração de créditos de carbono na Amazônia fazem parte do chamado mercado voluntário e não são contabilizados para fins das metas de acordos climáticos entre os países, que é chamado de mercado de carbono regulado.
Segundo a Funai, há pelo menos 33 projetos de carbono do mercado voluntário em terras indígenas que são de conhecimento do órgão indigenista, com pelo menos nove contratos ou instrumentos similares assinados. Os acordos estão sob análise da Procuradoria Federal “para verificar a legalidade e se existem cláusulas que podem ser consideradas abusivas ou lesivas do ponto de vista dos direitos indígenas”.
Em julho deste ano, após essa avalanche de projetos, o MPF emitiu uma nova Nota Técnica, reforçando a necessidade de autorização e de acompanhamento técnico do Estado. O órgão alerta que “a consulta prévia deve ocorrer na fase do planejamento e antes de qualquer ato decisório”. E pede adoção de providências sobre projetos que ignorem essas orientações.
“Devem ser adotadas providências para anulação de atos privados ou administrativos derivados de processos de consulta realizados em ofensa a este direito humano”, diz trecho da nota.
Depois de diversas tentativas legislativas para regular um mercado de carbono brasileiro, o governo resolveu apresentar sua proposta, consensuada entre os Ministérios, e que foi incorporada como substitutivo do Projeto de Lei 412/2022 do Senado Federal, pela relatora da Comissão do Meio Ambiente, senadora Leila Barros (PDT).
O texto em discussão estabelece que projetos de carbono em terras indígenas devem respeitar a Convenção 169 da OIT e incluir cláusulas nos contratos que prevejam “indenização aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais por danos coletivos, materiais e imateriais decorrentes de projetos e programas [de crédito de carbono]”.
Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018), diz que, além de estabelecer regras claras para projetos em territórios protegidos como terras indígenas e unidades de conservação, mesmo no mercado voluntário, deve haver um acompanhamento permanente do Estado.
“É importante que haja garantias e transparência sobre os projetos do mercado voluntário, e que se tenha um acompanhamento para garantia dos direitos humanos e de paridade nesses contratos. As comunidades não têm o mesmo nível de poder de negociação que as grandes empresas”, comenta.
É importante que haja garantias e transparência sobre os projetos do mercado voluntário, e que se tenha um acompanhamento para garantia dos direitos humanos e de paridade nesses contratos. As comunidades não têm o mesmo nível de poder de negociação que as grandes empresas.
Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima
Em seu parecer, a relatora Leila Barros diz que é “fundamental que as regras propostas garantam o direito dos povos e comunidades tradicionais, já que considerável porção de nossas florestas estão inseridas em unidades de conservação de uso sustentável e terras indígenas”.
Ex-procurador em cena
Segundo constam nos documentos oficiais e nos próprios relatos dos indígenas, as negociações da Carbonext para os projetos de carbono nos territórios sempre eram conduzidas pelo diretor de compliance da empresa, Almir Sanches. Além da leitura dos termos dos contratos, também ficou a cargo dele convencer os indígenas a aceitarem os acordos. Foi Sanches que conduziu o encontro em novembro de 2022, na aldeia Teko-Haw, onde teria acabado a tinta da impressora no momento da assinatura do contrato.
Sanches é ex-procurador do MPF e atuou na Lava-Jato do Rio de Janeiro. No órgão, chegou a integrar grupos de defesa dos direitos indígenas. À frente da Carbonext, segundo mostram registros de reuniões que obtivemos da Funai via Lei de Acesso à Informação (LAI), Sanches disse aos indígenas que a consulta aos moldes da OIT-169 “é um processo continuado que se inicia e será continuamente desenvolvido, nesse caso, por 30 anos”, contrariando o entendimento do MPF de que a consulta prévia, livre e informada deve ocorrer antes de qualquer ato decisório que possa afetar o território.
O ex-procurador também afirmou que a Carbonext assinou contrato na TI Coatá-Laranjal, no Amazonas, com a comunidade dividida. Segundo consta no relato de Sanches, durante uma das reuniões, “uma parte da comunidade deu a anuência e o processo de consulta e construção do PCC [projeto de crédito de carbono] se iniciou”, o que também contraria a plena autonomia territorial, segundo orienta o MPF.
No encontro com os Kayapó, em janeiro deste ano, Sanches citou a parceria com a Shell e apontou que a multinacional fez “diligências” para atestar a “competência” da Carbonext para essas negociações: “Uma empresa multinacional que faz investimentos, como a Shell, faz diligência para verificar a competência da empresa Carbonext antes de comprar uma parte dela. Pensamos que isso é bom: a Shell, visando buscar energia limpa, investir num projeto como o Kayapó. E a Shell é uma das maiores compradoras de crédito de carbono do mundo”, declarou o diretor de compliance da Carbonext, Almir Sanches, durante a única reunião na Terra Indígena Kayapó, em janeiro deste ano, em que a empresa assinou um pré-contrato, também considerado nulo pelo MPF.
Pensamos que isso é bom: a Shell, visando buscar energia limpa, investir num projeto como o Kayapó. E a Shell é uma das maiores compradoras de crédito de carbono do mundo.
Almir Sanches, diretor de compliance da Carbonext
Sanches também utilizou a carência das comunidades indígenas por necessidades básicas e como um dos seus exemplos falou da calamidade na TI Yanomami, que passa por uma profunda crise humanitária causada pelo garimpo ilegal. “Eu particularmente acho um absurdo comunidades indígenas não poderem gerar créditos de carbono porque historicamente preservaram mais”, declarou o procurador em vídeo gravado durante a reunião.
Dividir para conquistar
Segundo indígenas Kayapó com quem conversamos, havia dúvidas para assinatura do pré-contrato, e parte deles queria mais tempo para decidir.
Sanches fez a oferta de R$ 50 milhões como pagamento antecipado por créditos que o projeto ainda iria gerar. Segundo testemunhas, a oferta pressionou os indígenas e acelerou a assinatura de um contrato sem que houvesse discussão interna.
A negociação seria confirmada em até 90 dias, após assinatura do pré-contrato, conforme consta na ata da reunião. O documento também registra Sanches afirmando que a empresa já havia conversado com clientes que “demonstraram interesse em comprar créditos antecipados dos Kayapó”, mas sem citar quem seriam esses clientes.
Mesmo divididos, em janeiro deste ano, representantes das sete organizações Kayapó assinaram um contrato e deram à Carbonext “em caráter irretratável e irrevogável, a exclusividade para o desenvolvimento do Projeto e negociação dos Créditos de Carbono e/ou de outros ativos socioambientais”.
“Sobre essa questão do adiantamento, eu entendi que eles queriam induzir o povo a aceitar tudo aquilo ali. Foi o meu entendimento, a minha leitura”, afirmou Sandro Takwyry, liderança da Associação Angrokrere que atuou como tradutor nas negociações com a Carbonext.
Na mesma linha, o líder Patykore Kayapó, da Associação Floresta Protegida, disse que os indígenas não estavam preparados: “Naquele momento nós precisávamos entender melhor do que se tratava esse negócio de carbono. Achamos que teriam que consultar as comunidades, explicar melhor, fazer protocolo de consulta, mas a empresa queria assinar logo, nós não aceitávamos isso”, declarou o líder indígena.
A venda antecipada dos créditos sequer foi citada no acordo assinado com os indígenas, apesar de a promessa constar nos registros da reunião.
O pagamento nunca aconteceu. Logo após o acordo, o MPF instaurou notícia de fato para apurar supostas irregularidades no projeto da Carbonext e o não cumprimento da consulta livre, prévia e informada. Em abril, quatro meses após o acordo com os Kayapó, a empresa assinou um distrato dos termos do contrato com os indígenas, justificando que poderia haver questionamentos “infundados” sobre a consulta.
“Os termos desses contratos não estavam claros, são territórios com problemas de invasões, com garimpo ilegal. A geração de renda para manter a floresta de pé não é um problema, mas nossa preocupação é quanto à autonomia territorial”, afirmou o procurador federal Rafael Martins da Silva, que instaurou procedimento administrativo contra a Carbonext na TI Kayapó. O procurador ainda informou que as mesmas irregularidades foram observadas em contratos firmados com 12 associações de extrativistas para explorar créditos de carbono em unidades de conservação, no norte do Pará. Os acordos não chegaram a ser colocados em prática porque o ICMBio considerou as negociações ilegais.
Em junho deste ano, a Carbonext disse que desistiu dos projetos em terras indígenas, justificando risco de exposição reputacional, como divulgou o site Sumaúma.
Procurada pela InfoAmazonia para se manifestar sobre os pontos desta reportagem, a Carbonext afirmou que desistiu dos contratos nas terras indígenas por entender que “há necessidade de uma regulação bem definida que garanta segurança jurídica para a condução dos projetos a longo prazo”.
A empresa nega irregularidades nos processos de consulta e diz que “são falsas” as informações de que indígenas assinaram documentos sem saber do que se tratava. A empresa diz que possui “registro audiovisual e fotográfico das assinaturas dos contratos impressos sendo realizadas pela comunidade”.
“As negociações com todas as comunidades foram conduzidas com a mais absoluta transparência, com a participação de representantes de todas as comunidades que foram assessorados juridicamente por profissionais escolhidos por eles”.
A empresa ainda afirma que a Defensoria Pública, o Ministério Público Federal e a Funai foram convidadas e participaram de reuniões da Carbonext com indígenas, segundo a empresa, “certificando a seriedade, a transparência e a robustez do processo de CLPI [consulta livre, prévia e informada] realizado”.
Segundo documentos anexados às investigações do MPF, a Funai participou de reuniões “como ouvinte” e “em nenhum momento ingressou no mérito” sobre os contratos. À reportagem, o órgão disse que “a orientação técnica da Funai é no sentido de que a comercialização de créditos de carbono no mercado voluntário carece de regulamentação no arcabouço normativo brasileiro, especialmente no que se refere às terras indígenas”. Também foi emitida uma Nota Técnica recomendando “que a Coordenação Regional não avalize projetos que visem a comercialização de créditos de carbono em terras indígenas”.
A Carbonext afirmou que “todos os documentos e evidências aqui mencionados poderão e serão usados em eventuais ações de reparação de danos de eventuais calúnias e difamações”. Leia a íntegra da nota aqui.
Já a Shell, informou que tem “participação minoritária acionária na Carbonext” e que a empresa mantém “gestão independente, e não há obrigatoriedade de comercialização de créditos de carbono entre as partes”. A empresa não respondeu às perguntas específicas sobre os projetos de carbono apurados pela InfoAmazonia.
A petroleira ainda afirmou que os créditos de carbono “são uma forma importante de suporte à descarbonização de diversos setores da economia e à meta da empresa de se tornar um negócio de energia de emissões líquidas zero até 2050”.
No final de agosto, a Bloomberg noticiou que a Shell desistiu do plano de captar 120 milhões de créditos de carbono, silenciosamente e justificando que as metas eram “intangíveis”.
Ao todo, a Carbonext chegou a anunciar ter projetos para geração de créditos de carbono com seis povos indígenas: os Suruí Paiter em Rondônia; os Cinta Larga e Arara do rio Branco no Mato Grosso; os Munduruku do Amazonas, e os Kayapó e Tembé, no Pará. Todos esses contratos teriam sido cancelados.
Procuradoria da Funai apura irregularidades
A Funai também apontou uma série de irregularidades no acordo firmado na TI Kayapó, entre elas a falta de um projeto prévio e a invasão de competências exclusivas do poder público, como a fiscalização de crimes ambientais, que segundo o contrato ficaria sob responsabilidade compartilhada entre empresa e indígenas.
Em março deste ano, o órgão listou uma série de pontos do contrato e pediu que a Procuradoria Federal Especializada, órgão de assessoria jurídica ligado à Advocacia-Geral da União, apure “possível violação ou ameaça aos direitos indígenas”.
Entres os destaques, a área técnica pediu que o adiantamento de R$ 50 milhões oferecido pela Carbonext aos Kayapó seja “analisado com muito cuidado, na medida em que não existe ainda um projeto que demonstre a robustez da iniciativa para alcançar o seu fim”, e aponta que a negociação seria desfavorável aos indígenas, que receberiam apenas 30% do valor de mercado para os créditos.
A Funai informou que ainda aguarda manifestação da Procuradoria para adoção de providências cabíveis.
Povo Kayapó estuda REDD+
A preservação de florestas para geração de créditos de carbono está prevista no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados de Redução de Emissões de gases de efeito estufa provenientes do Desmatamento e da Degradação florestal, os chamados projetos de REDD+: Incentivo político-econômico no âmbito das Nações Unidas para a redução das emissões de gases de efeito estufa por países em desenvolvimento..
Esses projetos se apresentam como uma alternativa de renda para comunidades indígenas e ribeirinhas, que já preservam suas áreas através de atividades sustentáveis. No entanto, ainda não há nenhum projeto de carbono em terras indígenas em funcionamento no Brasil. A única experiência implantada com acompanhamento da Funai ocorreu na TI Sete de Setembro, em Rondônia, no ano de 2010, por entidades sem fins lucrativos. O projeto acabou descontinuado depois que a região sofreu um pico de desmatamento, em 2015.
Desde 2022, uma nova onda de projetos de Carbono em terras indígenas vem surgindo na Amazônia, principalmente diante do anúncio de grandes corporações interessadas em compensar suas emissões com créditos destes projetos.
Com isso, novamente há expectativa de que as populações que verdadeiramente preservaram a floresta possam vir a ser compensadas por seus serviços ambientais.
Em agosto deste ano, nossa reportagem acompanhou Patykore em uma série de oficinas organizadas no território do povo Kayapó para tratar do tema projetos de carbono. O objetivo é introduzir o assunto nas comunidades.
A floresta é a nossa vida. Sem ela, nós não somos nada.
Mundico Kayapó, da aldeia Crocraimoro
Aos poucos, nos encontros, os Kayapó vão compreendendo o significado de conceitos até então desconhecidos, como “emissão” e “aquecimento global”, e descobrem como a floresta sequestra carbono quando está viva e como libera o elemento em gás tóxico quando queimada.
“A floresta é a nossa vida. Sem ela, nós não somos nada”, disse à reportagem Mundico Kayapó, da aldeia Crocraimoro e um dos mais interessados na oficina.
As comunidades estão ouvindo falar sobre esse crédito de carbono, mas não sabem o que é isso. Estamos entendendo juntos para que possamos saber lidar melhor com isso no futuro.
Patykore Kayapó, da Associação Floresta Protegida
A conversa é lenta e calma, no próprio idioma em que conheceram o mundo, no mesmo tempo e sabedoria com que se relacionam com a floresta.
“As comunidades estão ouvindo falar sobre esse crédito de carbono, mas não sabem o que é isso. Estamos entendendo juntos para que possamos saber lidar melhor com isso no futuro”, afirmou Patykore.
Esta reportagem faz parte da série “Dinheiro que dá em árvore: financeirização da floresta pressiona Terras Indígenas”, produzida com apoio do Journalismfund Europe, através do Report For The World, e parceria da Mongabay.