A cacica da Terra Indígena Baú, Panh Ô Kayapó explica nessa entrevista os riscos que o projeto de Ferrogrão pode levar à vida das mulheres e comenta a denúncia feita na Marcha das Mulheres Indígenas deste ano, em Brasília
Ocupando a região entre os rios Iriri, Bacajá, Fresco e outros afluentes do Xingu, os Kayapó cultivam desde seus primeiros contatos, ocorridos na década de 1950, a fama de ser um povo guerreiro. A partir dos anos 70 durante a ditadura militar, a notoriedade de combatentes passou a ser testada pelo Estado brasileiro quando os Kayapó foram obrigados a defender seu território das invasões ligadas à construção da rodovia BR-163, estrada que liga Cuiabá, a capital do Mato Grosso, ao município de Santarém, no Pará.
Desde então, as lideranças kayapó estão em constante alerta e em estado de denúncia. Para falar sobre as novas ameaças a este povo do Xingu, a InfoAmazonia conversou com a cacica Panh Ô Kayapó, líder indígena da Terra Indígena Baú. Há um mês, ela esteve presente na Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, denunciando a construção de via de transporte, 47 anos após a inauguração da BR-163, que também tem causado insegurança em seu território.
O projeto da Ferrogrão tem por objetivo construir quase mil quilômetros de ferrovia, paralela à BR-163, de Sinop, no Mato Grosso, a Itaituba, no Pará, sob o argumento de dar mais agilidade ao transporte de commodities como soja e milho. Em reportagem recente, a InfoAmazonia mostrou que o traçado da ferrovia deve afetar 6 terras indígenas, 17 unidades de conservação e três povos isolados.
Durante a entrevista, a cacica Panh-ô lembrou que, na infância, viu Tuíra Kayapó colocar um facão no rosto de um representante da Eletronorte, durante as reuniões para implantação de Belo Monte, em 1989. As imagens desse dia rodaram o mundo. “Eu era bem mocinha e pensei: ‘quando eu for mais velha, quero ser igual ela’ ”, conta.
Hoje, Panh Ô segue se inspirando em Tuíra, uma mulher que ocupa um espaço de liderança denunciados os impactos de megaprojetos e, ao mesmo tempo, enfrenta o machismo dentro do seu povo. Confira a entrevista na íntegra:
InfoAmazonia – Você poderia comentar sobre sua posição como liderança feminina entre os Kayapó? O que você precisa enfrentar como mulher?
Ah, nós mulheres precisamos ser fortes. Não é fácil ser cacica na terra Baú. Durante esses anos, eu já vi muitos homens falando mal de mim pelas costas. Eles falam porque acham que uma mulher não pode estar na frente, dando opinião, decidindo pelo nosso povo, denunciando. Eles acham que só os homens podem fazer isso. Mas não pode ser assim.
As mulheres e os homens precisam estar juntos. Não é pra nenhum diminuir o outro. É assim que eu respondo quando falam coisas de mim. Nós estamos sendo atacados por gente de fora, então os homens precisam de ajuda também. Do jeito que está, com os ataques, não está fácil. As mulheres também devem ajudar a enfrentar e lutar.
Qual a maior preocupação das mulheres da Terra Baú hoje?
Nós mulheres da Terra Baú somos donas do nosso território, donas da nossa terra. A estrada de Ferrogrão é nosso maior medo hoje, porque vão invadir nossa terra. Vão entrar garimpeiros, eles vão se aproveitar para desmatar. Isso vai prejudicar nossas crianças, porque nós mulheres e nossas crianças andamos muito pela aldeia, andamos na mata, mas sabendo que existe gente andando por lá, nós vamos ficar com medo e isso é muito preocupante.
Foi isso que vocês denunciaram na Marcha das Mulheres no mês passado?
Sim, fomos lá para dizer que eles estão fazendo isso [avançando com projeto da Ferrogrão] sem a nossa permissão, nós somos donos da nossa terra, é nosso território, mas estão fazendo isso pelas nossas costas. Isso não pode acontecer. Nós fomos cobrar para que nos escutem.
Se a ferrovia for construída, nossas crianças e mulheres terão medo de andar na nossa terra, porque podem sofrer qualquer tipo de violência. Isso é muito preocupante. Nós precisamos ir para a roça, precisamos trabalhar. As mulheres precisam cuidar das crianças. Eles não podem fazer isso sem falar com a gente.
O povo Kayapó tem um histórico de luta, vocês lutaram muito contra a construção de Belo Monte, por exemplo. Como você vê esses momentos da história do seu povo?
Eu ouvi falar sobre a luta da nossa demarcação e eu estava presente quando a Tuíra usou seu facão. Eu era bem mocinha, mas eu pensei ‘quando eu estiver mais velha eu quero ser igual ela’. Eu vejo que meu povo lutou no passado e que isso ficou marcado em mim. Isso mostra também que nosso povo é resistente.
Hoje eu estou aqui lutando contra Ferrogrão, lutando pelo nosso território e a gente vai continuar forte, como estamos agora e como éramos antes. Nós seguimos lutando.
Essa imagem da Tuíra foi muito importante para você então. Que outra mulher indígena é representativa para você?
Sim. Eu era mocinha, mas me lembro bem. Ela é uma mulher muito forte. Para mim, a Sônia Guajajara também é um exemplo. Antigamente só os homens podiam liderar, estar em cargos, representar seus povos, as mulheres não podiam nada. Ter a Sônia à frente do ministério me deixou mais forte. Isso fortalece a gente para enfrentar os homens. Isso é muito bom.
Eu também vejo a importância de estar à frente. Assim como a presença dela me fortalece, eu também quero estar à frente para que outras mulheres me vejam e saibam que nós podemos sim.
Sei que além das lutas na Terra Indígena Baú, vocês enfrentam hoje a tese do Marco Temporal, que foi aprovada no Congresso. Você está acompanhando? Tem esperança de que seja derrubada?
Quando acabou a votação no STF, a gente chegou aqui na aldeia, comemorou, dançou, ficamos felizes. Isso durou pouco tempo, porque depois soubemos que o Marco Temporal ainda pode prejudicar a gente. Estamos muito preocupados. O Congresso quer fazer leis contra a gente, eles querem fazer isso pelas nossas costas.
Para que isso não aconteça precisamos estar unidos. É como eu disse, homens e mulheres precisam estar atentos, para enfrentar. E não podemos perder a esperança. Com tudo isso o que está acontecendo, não podemos olhar para trás, não podemos desistir. A gente vai sim continuar a brigar, denunciar. A gente vai proteger nosso território, nossas crianças.
Espero que, um dia, esse pessoal que faz as leis respeitem nossas vidas, mas mesmo que eles não respeitem, nós vamos estar aqui lutando.