O desmatamento ilegal associado à especulação imobiliária, incentivada pela possível construção da hidrovia Tocantins-Araguaia entre os municípios de Mocajuba e Baião, já está impactando florestas e a vida dos quilombos do Baixo Tocantins, no Pará.
Em fevereiro de 2022, Maria Deuza Conceição Caldas visitou a Comunidade Quilombola da Vila Santa Maria de Mangabeira (PA), localizada às margens do rio Tocantins, para debater com outros quilombolas a construção da hidrovia Tocantins-Araguaia. A obra do governo federal, que tem potencial para impactar os rios, as matas e a vida de milhares de pessoas na região, prevê a dragagem de mais de 177 quilômetros do rio e a explosão de pedras submersas em outros 35 quilômetros de um local de grande importância ambiental conhecido como Pedral do Lourenço (ver Sob risco de ser explodido para construção de hidrovia, Pedral do Lourenço é defendido por cientistas e comunidades tradicionais do rio Tocantins).
Realizado no barracão da comunidade, o encontro foi parte de uma série de reuniões da chamada “Caravana em Defesa do Rio Tocantins”, organizada pela Central Única dos Trabalhadores (CUT). Naquele espaço de assembleia comunitária, os quilombolas descreveram com apreensão os possíveis efeitos da dragagem no leito do rio para a reprodução de peixes e camarões, os danos provocados pelos bloqueios que as grandes barcaças causariam à passagem de suas canoas e o medo das violentas explosões e seus resíduos químicos das dinamites espalhados no rio.
No entanto, Deuza pressentiu algo mais. Ela previu um efeito para os agricultores familiares e quilombolas, que já está ocorrendo sob a influência de uma obra que sequer foi aprovada: o desmatamento de florestas e matas ciliares, a invasão de territórios tradicionais acompanhada da especulação imobiliária e a destruição da fauna aquática.
Desde o início de 2021, Deuza observava mais pessoas “vindas de fora” comprando terras na região dos municípios de Mocajuba e Baião, no Pará, que estão repletos de quilombos existentes há mais de dois séculos.
Deuza já tinha visto seus vizinhos na região perto do quilombo aceitando dinheiro para venderem seus lotes e temia que isso desencadearia uma destruição quase inimaginável. Para ela, ficou claro que o agronegócio, há décadas em conflito com a resistência e o modo de vida quilombola na região, estava cercando as comunidades. “Nosso quilombo está rodeado de fazendeiros. Eles estão vindo desmatar, comprando quase todas as terras para plantar soja, milho, para fazer esses plantios”, disse ela.
Uma antiga e ambiciosa obra
Mas os ambiciosos planos de construção da hidrovia Tocantins-Araguaia, percebidos por Deuza, seus companheiros e companheiras, não são recentes. Integrar o centro do país com a região Norte por meio das águas dos rios Tocantins e Araguaia, proporcionando uma saída para o Atlântico através da foz do rio Amazonas, é uma aspiração do Estado brasileiro desde a ditadura militar. Foi dentro desse planejamento que, em 1984, o regime construiu e inaugurou a hidrelétrica de Tucuruí, também no rio Tocantins, cerca de 300km ao sul de Belém (PA) : Construída pela ditadura Militar entre 1976 e 1984, a Hidroelétrica provocou inundação de grandes trechos de floresta e afetou a vida de muitas vidas ribeirinhas, incluindo dos povos indígena Asurini, Parakanã e Gavião da Montanha. Houve perda de biodiversidade, especialmente de espécies de peixes.
A partir das obras da hidrelétrica de Tucuruí, os sucessivos governos civis, de diferentes orientações ideológicas, também colaboraram com o objetivo de viabilizar a navegação de embarcações capazes de transportar grandes quantidades de commodities -como grãos, madeira e minérios- do Centro-Oeste para fora do país.
Em 2010, em uma das etapas mais importantes do projeto, foi inaugurado um sistema de eclusas para superar a diferença de 72 metros entre os níveis do rio Tocantins e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí. Após um período com problemas no funcionamento, em seguida da sua inauguração, as eclusas passaram por reparos e voltaram a operar totalmente em 2020, possibilitando a navegação de 564 km entre Belém e Marabá, no sudeste do estado.
O funcionamento das eclusas de Tucuruí reaqueceu o interesse em tornar o rio Tocantins plenamente navegável durante todo o ano. Para que isso ocorra é necessária construir a hidrovia, que segundo o projeto apresentado pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), são necessárias intervenções em três trechos do Tocantins: 52 km de dragagem entre os municípios de Marabá e Itupiranga; destruição do Pedral ao longo de 35 km entre Santa Terezinha do Tauiri (a Vila Tauiry, como é conhecida pelos moradores) e a Ilha de Bogéa; e a dragagem ao redor de 125 km entre os municípios de Tucuruí e Baião. O DNIT é a autarquia federal brasileira vinculada ao Ministério da Infraestrutura responsável por implementar a política de infraestrutura de transporte.
Pela grandiosidade e interesses envolvidos, a pressão pela construção da hidrovia não é somente regional. Em 10 de maio deste ano, o governador do Tocantins, Wanderlei Barbosa (Republicanos), se reuniu com o Ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), para “agilizar” o licenciamento da obra que foi incluída no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Além da cobiça da agroindústria, recentemente duas empresas canadenses de mineração, Aura Minerals/Serra Alta Mineração (Cerrado Gold), também abriram minas para exploração de ouro na região. Aura é acusada por lideranças do quilombo Baião de ignorar os impactos da mina a céu aberto, sem consultar comunidades que vivem a menos de 5 km da mineração.
Questionada, a Aura Minerals respondeu, em nota, à Infoamazonia que a mineração do “projeto de Almas, no Tocantins, segue todos os trâmites legais e busca construir uma relação de confiança e transparência com todas as comunidades localizadas no entorno da mina“, mas não informou de que forma isto tem sido feito.
Caminhos Alternativos
Para além das intervenções radicais nas águas do Tocantins e todo seu entorno, André Luis Ferreira, engenheiro pós-graduado em Planejamento de Sistemas Energéticos e diretor-presidente do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), destaca a existência de opções para o transporte das commodities na região. Ele ressalta a importância de considerar essas alternativas no debate público antes de qualquer orçamento, processo de licenciamento ou licitação, mas diz que elas parecem ser ignoradas.
Ferreira dá como exemplo alternativo a ferrovia Norte-Sul, que segue paralelamente ao rio Tocantins, com quase o mesmo trajeto da hidrovia, e que já está em funcionamento.
Em 14 de abril, em Pequim, China, o governador do estado do Pará, Helder Barbalho (MDB), assinou um memorando de entendimento com a construtora chinesa Communications Construction Company (CCCC), com a intenção de construir o trecho da ferrovia Norte-Sul no Pará que liga Serra do Carajás, em Parauapebas, à Marabá e à Vila do Conde, em Barcarena. Segundo o governador, seriam necessários R$10 bilhões em investimento.
Com propósito muito semelhante ao da hidrovia Tocantins-Araguaia, a linha de ferro liga-se à ferrovia Carajás viabilizando a exportação para qualquer parte do mundo pelo porto de São Luís (MA).
“Qual o propósito desta hidrovia? E se houvessem alternativas com menores impactos sociais e ambientais?”, questiona Ferreira. “A hidrovia é melhor em termos de uso de combustível. Mas a hidrovia pode provocar danos que não podem ser compensados pelo uso deste combustível”, entende o engenheiro.
Em março deste ano, o MPF pediu a suspensão da obra apontando falhas no Estudo de Impacto Ambiental encomendado pelo DNIT e empresa DTA/O´Martins Engenharia – vencedora da licitação para construção da hidrovia contratada em 2016, antes mesmo da emissão de qualquer licença para abertura da hidrovia. Em documento, o MPF destacou que houve “erros grosseiros de classificação e a insuficiência ou ausência de coleta de várias espécies (de peixes) presentes na área afetada”. Esses problemas levaram o Ibama a atribuir uma nota baixa aos estudos, caracterizando-os como tendo “erros graves”.
Ainda no documento, o MPF exige que novos estudos sejam realizados e a consulta prévia, livre e informada seja feita com as dezenas de milhares de indígenas, quilombolas e ribeirinhos que podem ser atingidos.
Questionado sobre se levará em conta o pedido sobre o pedido do MPF para de suspensão da Licença Prévia (LP) nº 676/2022 até que todas as inconsistências e insuficiências constantes apontadas, o Ibama respondeu por email que está acompanhando “o atendimento das condições da LP, que não há autorização para início da dragagem ou derrocamento e que a LP constitui ato administrativo legal, não verifico, no momento, respaldo para proceder à suspensão da licença.”
O Ibama não respondeu se irá ou não atender a reivindicação dos quilombolas e indígenas locais para que sejam ouvidos em uma consulta prévia, livre e informada conforme registra a convenção 169 da OIT.
Questionados sobre os impactos da obra e os erros apontados no estudo de licenciamento, o DNIT e a empresa DTA/O´Martins Engenharia não responderam nossas perguntas até a publicação desta reportagem.
Milhares de quilombolas ignorados
Apesar de já estarem sendo impactados pelos planos da hidrovia, Deuza e pelo menos 20 mil quilombolas no Baixo Tocantins ainda não foram ouvidos pelo governo federal nos estudos ambientais da obra.
Ao calcular os impactos da hidrovia, os quilombos não foram as únicas comunidades tradicionais que o governo federal desconsiderou da área de impacto do projeto. A portaria interministerial 60/2015 não considera outras populações atingidas fora do raio de 10 km da escavação e da detonação do leito do rio. Seguindo essa premissa excluíram, por exemplo, os indígenas do povo Gavião, cujo território Mãe Maria está a 15 km da área da dragagem em Marabá, os Assurini e os Aikewara Suruí, que vivem nas margens do rio Tocantins em área de impacto direto e que também nunca foram ouvidos pelo poder público.
Nilva Arnaud Martins, presidente da Associação de Igarapé Preto e Baixinha (ARQUIB), composta por 14 comunidades quilombolas da região, conta que jamais recebeu qualquer consulta sobre a hidrovia. A reportagem falou com moradores de outros territórios quilombolas como Calados, Cardoso e Engenho e todos asseguraram que jamais foram consultados. Além disso, os municípios previstos ao longo do caminho previsto da hidrovia, como Mocajuba, Igarapé-Miri, Abaetetuba, Limoeiro do Ajuru e Cametá que possuem grande concentração de pescadores, também não foram incluídos nos estudos da obra.
Em meados de 2019, foram realizadas cinco audiências públicas nas cidades de Marabá, Itupiranga, Nova Ipixuna, Tucuruí e Baião. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, uma audiência pública “é uma reunião pública informal, ou seja, um instrumento de participação popular, garantido pela Constituição Federal de 1988.” No entanto, Biviany Rojas, advogada do Instituto Socioambiental, explica que a realização de audiências públicas não pode ser entendida como substituto das consultas livres, prévias e informadas, “quando a decisão da autorização ambiental do empreendimento pode afetar diretamente os povos indígenas, comunidades tradicionais ou quilombolas.”
Para os quilombolas do Baixo Tocantins, essa falta de reconhecimento de seus direitos por parte do Estado não reflete a realidade centenária de comunidades cujos antepassados foram escravizados. Conforme um relato da liderança Luzia Correa Mendes o seu quilombo Engenho foi fundado em 1885 por Maria Gonçalves Ramos. A bisavó de Luzia foi filha de pessoas escravizadas em um canavial que fabricava cachaça de alambique, no mesmo local onde ela mora hoje, mas que a DTA/O´Martins identificou como área ribeirinha e não quilombola.
Sem ouvir comunidades indígenas e quilombolas, estudo apresenta lacunas
À montante da barragem de Tucuruí, os ribeirinhos que vivem junto ao Pedral do Lourenço demandam desde 2019 um diálogo oficial com o governo federal sobre os impactos esperados. Ronaldo Barros Macena, presidente da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (ACREVITA), declara que os moradores do Pedral se sentem “invisibilizados” e ainda estão esperando “ser ouvidos”.
Em junho de 2021, os ribeirinhos de 19 comunidades tradicionais do Pedral do Lourenço protocolaram uma demanda jurídica para serem consultados. Logo após, o Ministério Público Federal emitiu recomendação ao Ibama para “que suspenda o licenciamento ambiental da Hidrovia Tocantins-Araguaia até que seja realizada consulta prévia, livre e informada das comunidades ribeirinhas atingidas pelo empreendimento, garantindo-se que tal consulta seja realizada de boa-fé”, em um prazo de até 30 dias.
À InfoAmazonia, o MPF informou, por email, que em setembro de 2021, “após receber a recomendação, o Ibama respondeu ao MPF afirmando que considera que as consultas previstas na OIT não se aplicam às comunidades tradicionais, tais como populações ribeirinhas.”
O cerco e a invasão ao território quilombola
Ao longo de 2022, o desmatamento acelerou em Mocajuba e Baião, conforme os testemunhos, fotos e vídeos de moradores dos municípios. Os quilombolas ficaram alarmados ao ver as florestas derrubadas com rapidez, deixando a sensação de estarem “cercados”, segundo eles, por empresários do agronegócio vindos de fora da região para comprar terras de pequenos produtores.
Em 11 de outubro de 2022, o último presidente do IBAMA do governo de Jair Bolsonaro, Eduardo Fortunato Bim, emitiu a licença prévia da obra, uma das três licenças requeridas, o que poderia explicar a aceleração do desmatamento descontrolado que os moradores testemunham a partir desta data.
Esta corrida pela compra de terras está acontecendo ilegalmente mesmo dentro dos quilombos, segundo os moradores das comunidades. Eles apontam que a cultura de pesca tradicional está prejudicada e afirmam perceber uma diminuição de peixes, que eles atribuem ao uso de agrotóxicos pelos novo vizinhos “no ar e na água”, ao assoreamento e diminuição dos corpos de água por causa do desmatamento e outras intervenções perto dos rios e dos igarapés, como conta Deuza em vídeo.
Lucro e interesse de transnacionais
A maioria das empresas beneficiadas pela realização da megaobra no rio Tocantins são multinacionais e estrangeiras que exportam soja e minerais favorecidos com a redução dos custos de frete. A empresa americana Cargill em Abaetetuba, na Ilha de Urubuéua, e a francesa Louis Dreyfus, em Ponta de Pedras no Rio Pará, ilha de Marajó, já entraram com pedidos de licença ambiental para construção de portos a serem posicionados estrategicamente na foz do rio Tocantins, próximo a Barcarena, que serviriam para receber e enviar mercadorias para o exterior.
Em junho deste ano, o MPF acusou a Cargill de “grilagem” por ter obtido a área “ilegalmente” de uma área da União, do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Santo Afonso. Em 9 de maio deste ano, a Defensoria Pública do Estado do Pará denunciou a Cargill de violar a decisão judicial que tinha suspendido o desenvolvimento do porto até que a consulta prévia, livre e informada fosse realizada com as comunidades de Abaetetuba que seriam atingidas. A Defensoria alegou que, em despeito da decisão da Justiça do Pará, a Cargill segue construindo o porto, por exemplo, adentrando os territórios tradicionais sem autorização. Em 4 de maio deste ano, uma queixa contra a Cargill foi apresentada à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com alegações de que a empresa usa fornecedores com violações de direitos humanos e “falhas na devida diligência ambiental” para verificar a fonte da soja, inclusive dentro de terras indígenas.
Em resposta às acusações, a Cargill informou à InfoAmazonia que tem como seus objetivos defender os interesses dos povos ribeirinhos de Abaetetuba e que a Defensoria “se motiva por uma minoria bastante vocalizada”. A empresa afirma ainda que o órgão de defesa do interesse público “parece ignorar a voz de parte da população que busca o diálogo e que poderia ser beneficiada por projetos sociais que são voluntários e não têm qualquer relação com o licenciamento do projeto que a Cargill avalia instalar em Abaetetuba, no Pará.”
Na mesma região e também com interesse sobre a hidrovia, a Hydro Alunorte, mineradora norueguesa (que se apresenta como maior refinaria de alumina do mundo fora da China), já tem um porto no município de Barcarena, assim como a francesa Imerys e a americana gigante do agronegócio Archer Daniels Midlands.
A Hidrovias do Brasil (HDB) também já tem um terreno perto do porto em Barcarena, e um terminal terrestre em Marabá. Em maio de 2022, a HDB recebeu a permissão da Marinha de transportar 70 mil toneladas (de soja e milho) de Itaituba até o Terminal de Uso Privado (TUP) no porto da Vila do Conde em Barcarena. Conforme um relatório do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), a HDB no seu porto em Itaituba não cumpriu a maioria dos Padrões de Desempenho requeridos pelo investimento da Corporação Financeira Internacional, o braço privado do Banco Mundial. O CEO da Hidrovias do Brasil, Fabio Schettino, disse à Reuters em maio de 2023 que o transporte hidroviário a Barcarena tem “baixa necessidade de investimento” da empresa, e por isso prevê um aumento de lucro a partir de 2024.
A HDB não respondeu às perguntas da reportagem, assim como a Hydro Alunorte, Imerys e Archer Daniels Midlands não responderam nossos questionamentos sobre o interesse na hidrovia .
O medo entre moradores de Mocajuba
Os moradores do município de Mocajuba não falam abertamente ou fazem denúncias dos crimes ambientais porque temem represálias dos fazendeiros responsáveis pelo desmatamento, inclusive na beira dos rios e igarapés.
De sua floresta nativa, Mocajuba teve 493,8 km² desmatados até 2021, conforme dados do INPE – 56,63% da área total de 872 km².
Vários moradores de Mocajuba e Baião apontam que as matas nos cursos de água doce (como Igarapé Açu, Rio Cairari e, Rio Tambaí-Açu) estão sendo ilegalmente desmatados. A reportagem visitou e presenciou o desmatamento perto do quilombo Tambaí-Açu e no ramal do Cachorro perto da comunidade Angu-Pegado, ambos afetados pelo desmatamento ilegal. Recebemos também relatos frequentes (de novembro de 2022 até abril de 2023) de desmatamento avançando na direção do quilombo Açaizal e da retirada de castanheiras do quilombo São José de Icatu.
Desmatamento na beira dos rios afeta vida no quilombo
São muitas as comunidades que têm testemunhado a derrubada de árvores na beira dos rios, incluindo perto do Igarapé Açu, e do Rio Cairari, também conhecido como Rio Moju.
“Antes, a gente não podia desmatar de 50 metros [da beira do rio]. Era a Marinha que falava que a gente tinha que deixar para proteger o rio” conta Deuza, referindo-se ao desmatamento no rio Tambaí-Açu. “Mas hoje, o nosso rio está sendo agredido, e com isso, o peixe vai embora”, completa.
Os quilombos da região têm forte tradição pesqueira. “Todo mundo pesca, as mulheres, as crianças. Tem um período [no verão amazônico] que as crianças descem para pescar, uma atividade que se chama a ‘pequeira’. Mesmo as crianças mais pequenininhas vão à beira do rio com um anzol”, conta a líder comunitária. Essas tradições quilombolas podem ser prejudicadas com o assoreamento provocado pela derrubada de árvores fora do quilombo, na beira do Tambaí-Açu. “Essas fazendas grandes descem a água pra dentro do rio. No tempo do inverno, a água muda a cor. Ela fica mais escura. Quando mais chove, ela fica tipatinga, só aquele barro, ele [o rio] não enche.”
Os quilombolas de Tambaí-Açu gostam de pescar “traíra, jacundá, surubim, matupiri, acará, jejú, e aracu.” Segundo Deuza, esse último, sempre fazia a piracema, mas “faz 2 anos que não fazem.” – uma mudança que ela atribui à influência crescente de seus vizinhos do agronegócio.
Os Quilombolas testemunham que a pesca de camarões nos igarapés também sofreu uma queda significativa após a construção da barragem de Tucuruí, em 1984. O quilombo Itaperuçu, por meio de uma luta árdua, preservou o conhecimento ancestral da construção e uso do matapi, uma armadilha para capturar camarões, e ainda obtém uma renda substancial com a venda desses crustáceos. Essa conquista é celebrada anualmente em maio com uma festa tradicional dedicada aos camarões, mas os quilombolas também temem por seu fim com o aumento do desmatamento e assoreamento do rio.
O ictiólogo Alberto Akama escreveu em nota, “A obra pode acabar com a pesca do camarão e do mapará.”
O ictiólogo Alberto Akama escreveu em nota, “A obra pode acabar com a pesca do camarão e do mapará.”
Um estudo realizado pela Universidade de Michigan e publicado em 2018 na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States, indica que após a instalação da hidrelétrica de Tucuruí, houve uma redução de 25% da quantidade de peixes que desaguam na foz do Amazonas. A mesma pesquisa apontou uma redução de 60% dos peixes logo após a construção da barragem.
Além do assoreamento, Esmael Rodrigues Siqueira, quilombola e liderança comunitária de Tucuruí chama a atenção para a contaminação das águas na região. “A cabeceira desses igarapés fica praticamente já quase no município de Moju ou Tailândia, onde o agronegócio é muito forte. E então eles botam o adubo, o veneno na terra pra matar os matos e isso, automaticamente, quando chove desce pra cabeceira dos igarapés”, conta.
Siqueira nasceu e foi criado no quilombo de Calados, na beira do rio Tocantins em Baião. Com a chegada da barragem de Tucuruí e seus impactos sócio-ambientais, ele mudou para a cidade de Tucuruí, onde agora é presidente da Associação de Pescadores, Piscicultores e Adjacências Impactados de Tucuruí e Região (APPATUR).
Siqueira explicou que os ruralistas têm aproveitado a pobreza da população tradicional para ampliar o domínio do agronegócio comprando suas terras. “Seiscentos ou setecentos mil [reais] pelo lote de terra. Ele [quilombola] nunca viu aquele dinheiro. Hoje a oferta de compra de terra pra ele é muito dinheiro. Depois se deslocam para a cidade e eles compram aquela casa, com quatro, cinco meses não tem mais nem um centavo”, comenta Siqueira.
Tradições quilombolas no Baixo Tocantins sob ameaça com desmatamento
Desde o século XVIII que os donos dos engenhos da região conhecida como Tocantina passaram a comprar em Belém pessoas negras escravizadas para mão de obra nos plantios de cana-de-açúcar e cacau. Foi da resistência a esta escravidão que as comunidades livres, chamadas quilombos, nasceram dentro das matas e povoaram as margens do rio Tocantins e seus igarapés.
Ao longo do tempo, alguns quilombos se dividiram para formar novas comunidades, de onde nasceram novos quilombos. Séculos depois, as obras para construção da hidrovia do Tocantins-Araguaia mostram que a vida nos quilombos não parou de ser marcada pelo conflito com os donos das fazendas vizinhas.
Aos 8 anos de idade, com 11 irmãos, Maria Deuza Conceição Caldas deixou a família pobre na comunidade de Tambaí-Açu, na zona rural do município de Mocajuba, enviada para morar com a avó na área urbana. Nessa época, ela trabalhou na casa de uma fazendeira. Estava sujeita a receber ordens a qualquer momento da senhora “berrando”. A criminosa exploração do trabalho infantil, “escravidão doméstica” como Deuza a chama, foi o preço para conseguir comer, ter roupa e estudar na cidade. Adulta, Deuza sonhava em deixar no passado essa experiência.
Com transporte e acesso mais rápidos, as distâncias diminuíram e hoje Deuza, que se tornou líder comunitária, vive entre a cidade e a defesa de sua comunidade – cercada pelos fazendeiros com novas plantações de milho, soja e dendê.
Deuza explica que “a partir [do momento] que eles [fazendeiros de fora] compram a terra e começam a desmatar, a gente já se sente ameaçado e prejudicada.” Com a derrubada de árvores ao seu redor, o Tambaí-Açu sente “o vento, a quentura, a transformação no solo, no clima”, conta.
Deuza é presidente de um coletivo de mulheres chamado Filhas da Resistência, que recupera as tradições, valorizando os produtos quilombolas que plantam, extraem e produzem da floresta. As mulheres trabalham juntas todo final de semana e o que colhem se converte em produtos que vendem nas feiras.
Deuza avalia que com a chegada do agronegócio, logo o agrotóxico estará no ar e nas águas e deve atingir as roças da comunidade, tornando-as menos produtivas. Em sua perspectiva, os agricultores familiares serão obrigados a, mesmo sem condições ou vontade, ter que comprar “veneno” para o plantio do que eles consomem.
A invasão do agronegócio nos quilombos de Mocajuba e Baião
Para além dos rios, igarapés e matas ciliares, os quilombolas entrevistados no município de Mocajuba denunciam terem ouvido, de trabalhadores que estão derrubando as árvores, que o plano dos ruralistas é rapidamente plantar soja e milho no local. “Estão derrubando as árvores e ‘limpando’ a área para plantar, a gente não tem certeza ainda que plantio será”, falou um agricultor familiar no interior de Mocajuba que preferiu não identificar-se.
Como exemplo do avanço da devastação, a InfoAmazonia encontrou, na divisa entre Mocajuba e Baião, áreas de árvores derrubadas na Fazenda Águas Claras, pertencente a família Arndt, onde se confirmam os planos da produção de soja e milho.
Uma placa erguida em frente à fazenda Águas Claras informa que a propriedade recebeu licença para desmatamento emitida pela Secretaria Executiva de Meio Ambiente (SEMA) da prefeitura de Baião com data de validade de março de 2021 até julho de 2023 para as atividades de “bovinocultura, milho e soja”.
A placa de licenciamento para o corte de árvores na fazenda Águas Claras descreve detalhes da permissão contendo graves erros. Nela, a reportagem identificou que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) está grafado errado. Há também um erro que indica que da área total do imóvel (164,64 hectares) somente 4,47% (7,36 hectares) é de reserva legal. Segundo a SEMA de Baião, a área de reserva legal, que deve ser protegida, da fazenda Águas Claras é de 80%.
O Secretário da SEMA de Baião, Sylvester Stallone Pontes Salles, explica que a licença municipal permite desmatar apenas floresta secundária, ou seja, uma área já desmatada que cresceu novamente.
Questionado sobre o desmatamento de árvores altas que a reportagem viu na fazenda Águas Claras, Stallone afirma que “algumas vezes, por falta de recursos, os técnicos não vão à propriedade para verificar antes de dar uma licença para o desmatamento” .
O proprietário da fazenda, Wilmar Aluísio Arndt é sócio de seu irmão Wilson Eduardo Arndt em duas empresas com sede no centro de Mocajuba abertas em 2022: a Agro Fronteira Serviços Agricolas Ltda e Agro Annita Sociedade Unipessoal Limitada. Wilmar Arndt ainda é sócio e sócio-administrador de 13 empresas nos estados do Piauí, Paraná, Bahia, Espírito Santo e Maranhão.
O site do Portal da Transparência da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) do Pará mostrou o avanço do desmatamento nas propriedades das empresas Arndt. Conforme o Portal da Transparência SEMAS do Pará, a família Arndt e suas empresas são donas ou sócios em 32 propriedades rurais, localizadas em Mocajuba, Baião e Moju, totalizando mais de 6500 ha (6508 ha).
A reportagem voltou a contatar Stallone e a SEMA de Baião várias vezes, mas não recebeu uma resposta às perguntas específicas sobre o desmatamento na fazenda Águas Claras.
A SEMAS do estado do Pará, não respondeu à reportagem sobre o desmatamento na propriedade dos Arndt.
O promotor de justiça Dirk Mattos, do Ministério Público do Pará, avalia que as secretarias municipais de meio ambiente emitem licenças sem condições de fiscalização. “Estes licenciamentos ambientais na região do município, precisam seguir certos protocolos e certos requisitos. Infelizmente, existe uma grande quantidade de situações em que não há estrutura mínima para você verificar não só esta licença como a manutenção das condições.”
Além da falta de fiscalização, o promotor de justiça explica que “não se sabe se as condições pelas quais as licenças são dadas, se elas são mantidas durante o período de vigência desta licença. Então esse é o panorama que geralmente encontramos nos municípios paraenses nesta região”.
As secretarias do Meio Ambiente de Mocajuba e de Baião, não responderam se árvores altas derrubadas registradas pela reportagem nos respectivos municípios eram de floresta primária ou secundária.
Contatada por email, a Agro Fronteira Serviços recusou-se a responder às perguntas da reportagem.
A reportagem não conseguiu contato com Wilmar Aluísio Arndt e Wilson Eduardo Arndt.
Esta reportagem contou com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.