O Brasil é um dos maiores produtores de commodities agrícolas do mundo, atrás apenas de China e Índia, segundo dados da FAO. No país, o estado do Mato Grosso é o principal produtor de soja, milho, algodão e, ao mesmo tempo, também o maior usuário de agrotóxicos nas lavouras. Dos dez municípios com maior consumo de agrotóxicos no país, sete estão em Mato Grosso.
O Instituto Nacional do Câncer (Inca) reconhece os efeitos crônicos dos agrotóxicos sobre a saúde, reconhecendo-os como potenciais cancerígenos, teratogênicos e mutagênicos. Frente a essas evidência e baseado no fato que a Constituição brasileira define que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado, a pauta se propôs a avaliar o impacto dos agrotóxicos na saúde de mulheres e crianças no estado nos últimos anos, mais especificamente no desenvolvimento de câncer (linfoma não-Hodgkin e leucemia) infantojuvenil, malformações congênitas e óbitos fetais.
Essas três condições foram eleitas após uma revisão de artigos científicos indicar que elas são parte dos efeitos crônicos da exposição regular a agrotóxicos. O fato de serem bebês, crianças e adolescentes até 18 anos também contribui para isolarmos melhor o impacto dessas substâncias sobre a saúde da população mato-grossense, uma vez que este grupo ainda não está exposto a outros fatores ambientais que possam contribuir com o surgimento do câncer ou de malformações.
Com a colaboração de jornalistas, cientistas e profissionais de visualização de dados, no Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, nasceu esta reportagem que mensura os riscos do aumento da área dedicada à soja, o plantio que mais cresceu nos últimos anos em Mato Grosso, sobre a saúde de mulheres e crianças no estado.
Com dados da conversão do solo em Mato Grosso, disponibilizados pela plataforma MapBiomas, fizemos um cruzamento entre área dedicada à plantação de soja no estado entre 2013 a 2021 com os casos e mortes de linfoma não-Hodgkin difuso, leucemia, malformações e óbitos fetais extraídos do Datasus no mesmo período. Como a reportagem mostrou, houve forte associação entre a incidência de linfomas não-Hodgkin, malformação congênita e óbitos fetais e os municípios que têm mais de 5% da sua área territorial dedicada ao grão, que representam mais da metade dos municípios do MT em 2021, chegando a 79 dos 141 municípios do estado.
Como investigamos
Analisamos dados da cobertura do uso do solo de Mato Grosso entre 2013 e 2021 disponibilizados pela plataforma MapBiomas em formato de Excel, de livre acesso. Em seguida, extraímos dados referentes ao número de casos dos desfechos listados acima (casos de linfomas, malfomações congênitas, obitos fetais e casos e óbitos por leucemias). No caso das leucemias também obtivemos os dados de óbitos. Todos os dados referentes aos desfechos em saúde analisados foram obtidos junto ao Datasus, sistema de informação mantido pelo Ministério da Saúde brasileiro.
Após obtenção destes dados, foram estimadas as taxas de ocorrência de casos e óbitos por 10 mil habitantes em cada município do estado do Mato Grosso. No caso da ocorrência de malformação congênita, as taxas foram estimadas por 1.000 habitantes por município do estado. Os dados referentes à população residente total nos municípios do MT, foram obtidos do Datasus, mas resultam de projeções realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A partir desses dados, foram utilizados modelos de regressão logística para analisar a associação entre a incidência de casos e óbitos de linfoma não-Hodgkin difuso, leucemias infantojuvenis (menores de 19 anos), casos de malformação congênita e óbitos fetais e a área destinada ao cultivo de algodão e soja nos municípios do estado do Mato Grosso entre 2013 e 2021. Todas as estimativas foram realizadas no programa Stata, versão 17.
Além das regressões logísticas, também foi estimado o risco relativo referente à ocorrência destes desfechos nos municípios que possuem mais de 5% de seu território destinado ao cultivo de soja e algodão, em comparação aos demais municípios. Os resultados obtidos indicam haver associação entre os municípios com mais de 5% da área municipal dedicada à produção de soja e a incidência de malformação congênita (p < 0.000; 1.398 – 2.195) e óbitos fetais (p < 0.000; 1,395; 2,292). Ainda, no estado do Mato Grosso, o risco de haver caso ou óbito de linfoma não-Hodgkin é 33% e de leucemia 26% maior em municípios com área municipal superior a 5% destinada ao plantio de soja. Em relação à malformação congênita, o risco é de 27% e de óbitos fetais de 18%.
Base de dados analisadas
Dado | Descrição | Fonte | |
Variável resposta | |||
Casos de leucemias infantojuvenis (por 10 mil hab. menores de 19 anos) | Período: 2013 a 2021Faixa etária: 0 a 19 anosClassificação internacional do desfecho: C91 – Leucemia linfóide , C92 – Leucemia mielóide , C93 – Leucemia monocítica C94 – Outras leucemias de células de tipo especificado , C95 – Leucemia de tipo celular não especificado. | Datasus – Painel Oncologia http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/dhdat.exe?PAINEL_ONCO/PAINELONCOLOGIABR.def | |
Óbitos por leucemias infantojuvenis (por 10 mil hab. menores de 19 anos) | Período: 2013 a 2021Faixas etárias: < 1 ano, 1 a 4 anos, 5 a 9 anos, 15 a 19 anos, 0 a 19 anosClassificação internacional do desfecho: C91 – Leucemia linfóide , C92 – Leucemia mielóide , C93 – Leucemia monocítica , C94 – Outras leucemias de células de tipo especificado , C95 – Leucemia de tipo celular não especificado. | Datasus:http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10mt.def | |
Óbitos fetais (por 10 mil hab. total) | Período: 2013 a 2021Óbitos por residência | Datasus. http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ deftohtm.exe?sim/cnv/fet10mt.def | |
Malformações fetais – Anomalias ou defeito congênito em nascidos vivos (por 1.0000hab. total) | Período: 2007 a 2021Número de diagnóstico por município de residência e ano de nascimento. | Datasus – SINASC: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinasc/Anomalias/anomabr.def | |
Linfomas | Período: 2013 a 2021Classificação internacional do desfecho: C83 – Linfomas não Hodgkin difuso | Datasus:http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/dhdat.exe?PAINEL_ONCO/PAINEL_ONCOLOGIABR.def | |
População total por município | Período: 2013 a 2021 | Datusus:https://datasus.saude.gov.br/populacao-residente | |
População menor de 19 anos por município | Período: 2013 a 2021 | Datusus:https://datasus.saude.gov.br/populacao-residente | |
Variável resposta | |||
Área plantada no município de soja | 2010 a 2021 | MapBiomas |
Limitações
Não conseguimos analisar os dados do Datasus anteriores a 2013 devido a uma mudança na classificação dos desfechos que tornou difícil a tarefa da comparação com o período posterior. Tivemos igualmente dificuldade de obter os dados de agrotóxicos por meio do Indea-MT, órgão do governo estadual responsável por controlar o uso, volume e tipos de agrotóxicos usados nas lavouras, que é pouco transparente e não fornece dados anteriores a 2020 em formato aberto e planilhável. Por isso, nos concentramos no dado de conversão do uso do solo do MapBiomas, que mensura o avanço das lavouras desde 1985 em todo o Brasil por meio de uso de satélites. O Indea-MT indica o volume de agrotóxicos usados em 2021 na soja, o que nos permitiu inferir que a relação entre área plantada e doenças se dá por meio do uso intensivo dos agrotóxicos.
Entre as limitações dos dados obtidos, cabe destacar que pode haver subnotificação destes agravos, principalmente no caso de óbitos fetais, de modo que o número de casos pode ser superior aos registros oficiais. Por outro lado, os desfechos analisados se caracterizam por apresentar números considerados baixos de ocorrência, o que pode interferir nas estimativas realizadas. Deste modo, há necessidade de continuidade em pesquisas referentes aos impactos do cultivo de soja sobre estes desfechos, incluindo outros estados brasileiros.
Fontes ouvidas
Lia Giraldo da Silva Augusto, médica pediatra e sanitarista, mestre e doutora em Medicina. Pesquisadora aposentada da Fiocruz e da Universidade de Pernambuco, coordenadora do projeto Saúde Reprodutiva e Agrotóxicos e membro da coordenação do GT Saúde e Ambiente, ambos da Abrasco.
Bruno Choary Cunha de Lima, procurador do Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso e coordenador do Fórum Mato-Grossense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Valdeir Souza, integrante da direção estadual do MST em Mato Grosso.
Este material é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.