Com a perspectiva de retomada pelo atual governo do projeto de asfaltamento da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO) a reportagem Com abertura de ramais planejados, impacto da BR-319 pode chegar a 40 terras indígenas e 38 unidades de conservação no Amazonas analisou o impacto de seis estradas estaduais ligadas à rodovia federal com status de planejadas na base da Secretaria de Infraestrutura do Amazonas (Seinfra-AM) em áreas protegidas, para saber se o processo de consulta a essas populações está sendo respeitado, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Signatário desse tratado internacional, o Brasil deve “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. 

A reportagem teve acesso, via Lei de Acesso à Informação (LAI), ao traçado das rodovias estaduais AM-254, AM-354, AM-356, AM-360, AM-364 e AM-366 planejadas pela Seinfra-AM. Consideramos como área de influência dessas rodovias uma área de 40 quilômetros em torno do traçado, medida prevista para a Amazônia Legal na Portaria Interministerial 60/2015 e utilizada no estudo de impacto ambiental da (EIA-Rima) da BR-319 concluído em 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro.

Realizada com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, entre jornalistas, cientistas e profissionais de visualização de dados, no Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, a reportagem aponta o impacto dessas rodovias em 40 Terras Indígenas e 38 unidades de conservação, com população estimada em mais de 23 mil indígenas, segundo a base de dados Terras Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA).

Com quase 240 km de extensão, os trechos pavimentados desses 6 ramais da BR-319 representam cerca de 20% do traçado total – pouco mais de 1200 km – planejado pela Secretaria de Infraestrutura do Amazonas (Seinfra-AM) e já impactam diretamente 34 TIs e 24 UCs.

Embora estejam ligadas ao traçado da rodovia federal, essas estradas não entraram na avaliação do estudo de impacto ambiental (Eia-Rima),  que considera apenas cinco terras indígenas onde vivem os povos Apurinã, Mura e Parintintim, como impactadas pelo projeto.

A avaliação do governo federal, porém, considerou apenas no trecho da rodovia a ser asfaltado, pouco mais de quarenta quilômetros. Não entraram no cálculo oficial as rodovias estaduais ligadas à BR-319. Segundo essa avaliação, na qual o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) se baseou para conceder a licença prévia para a obra, em 2022, considerou como impactadas pelo projeto cinco terras indígenas onde vivem os povos Mura, Apurinã e Parintintim.

Resposta da LAI

PedidosRespostas
Prezados/as/es,
Com fundamento na Lei Nº12.527/2011, a Lei de Acesso a Informações Públicas, venho requerer o acesso, em até 20 dias corridos, conforme Artigo 11, parágrafo 1º da Lei 12.527/11, aos seguintes dados:
À Secretaria de Estado de Infraestrutura e Região Metropolitana de Manaus (Seinfra-AM), faço as seguintes solicitações:
O arquivo Shapefile (SHP) das rodovias planejadas na área de influência da BR-319;Atrelado ao arquivo Shapefile (SHP), deverá vir os seguintes atributos que descrevem as feições geográficas, em formato de tabela, com as seguintes informações: ano de criação do início do construção da rodovia, Unidades Federais que abrange, município, tamanho da rodovia e coordenadas geográficas;Os dados acima solicitados devem ser fornecidos em formato aberto, tais como CSV, SHP, JSON) quando disponíveis, conforme estabelece o Artigo 11, parágrafo 5º da Lei Nº12.527/2011;Favor encaminhar junto à resposta o dicionário de dados do sistema.
Na eventualidade de as informações solicitadas não serem fornecidas, requeiro que seja apontada a razão da negativa bem como, se for o caso, eventual grau de classificação de sigilo (ultrassecreto, secreto ou reservado), tudo nos termos do Artigo 24, parágrafo 1º da Lei Nº12.527/2011.

Se algum dos dados solicitados tiver informações pessoais sigilosas, solicito que sejam tarjadas ou removidas. E caso este órgão não seja o verdadeiro responsável pelas informações solicitadas, favor encaminhar o requerimento à autoridade responsável.
Na eventualidade de as informações solicitadas não serem fornecidas, requeiro que seja apontada a razão da negativa bem como, se for o caso, eventual grau de classificação de sigilo (ultrassecreto, secreto ou reservado), tudo nos termos do Artigo 24, parágrafo 1º da Lei 12.527/2011.
Desde logo agradeço pela atenção e peço deferimento.
MEMO Nº 015/2023-OUVIDORIA/SEINFRAEm: 17/07/2023À Secretaria Executiva Adjunta de Planejamento e Comunicação – SEAPLANCEm resposta ao memorando nº 015/2023-OUVIDORIA/SEINFRA, encaminhado pelaOuvidora Priscila de Souza Silva, onde consta a manifestação da Senhora Izabel MariaBezerra dos Santos solicitando informações sobre as seguintes rodovias estaduais: AM254, AM-354, AM-356, AM-360, AM-364, AM-366, além de informações referentes a anode construção das rodovias, se possuem estudos de impacto ambiental, as áreasprotegidas que elas abrangem, os municípios por onde passam, as respectivasdimensões das rodovias e as coordenadas geográficas.Quantas as informações solicitadas:AM-254 – Maués/Nova Olinda do Norte/Autazes BR-319 (km 26)A rodovia AM-254 percorre os municípios de Careiro, Autazes, Nova Olinda do Norte,Itacoatiara e Maués. Sua extensão total é de 305km, dos quais 170,66km possuipavimentação.AM-354 – 250 da BR-319/ManaquiriA rodovia AM-354 tem uma extensão total de 42,81 km, percorrendo os municípios deCareiro e Manaquiri. Atualmente, toda a extensão da rodovia possui pavimentação,contribuindo para o acesso e a mobilidade nessas localidades.AM-356 – Borba/BR-319 (km 180,5)A rodovia AM-356 atravessa os municípios de Careiro, Autazes e Borba. Sua extensãototal é de 112,5km planejados.AM-360 – Novo Aripuanã/BR-319 (km 318,5)Com uma extensão de 105 km planejados, a rodovia AM-360 percorre os municípios deBorba e Novo Aripuanã.AM-364 – Manicoré/BR-319 (km 340)A rodovia AM-364 possui uma extensão total de 92,5 km e está localizada no municípiode Manicoré. Todo o trecho dessa rodovia está em leito natural, o que significa que nãohá pavimentação.AM-366 – Juruá/Tefé/Tapauá/BR-319 (km 466)A rodovia AM-366 percorre diversos municípios, incluindo Juruá, Uarini, Alvarães, Tefé,Coari e Tapauá. Com uma extensão total de 546,51 km, apenas 26,1 km possuempavimentação, enquanto 5 km estão em leito natural e 509,41km planejados.Informamos que não há um documento oficial que apresente informações precisassobre a inauguração e construção dessas vias. No entanto, com base no Decreto Nº.9885, de 25 novembro de 1986, que estabelece diretrizes, normas e a extensão dasfaixas de domínio, é possível inferir que todas as rodovias citadas já haviam sidoconstruídas ou planejadas até o ano de 1986.Cabe ressaltar que, para obter informações mais específicas sobre estudos de impactoambiental e áreas protegidas relacionadas a essas rodovias, é recomendávelencaminhar a solicitação ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM. Esseórgão é responsável por tratar de questões ambientais e poderá fornecer informaçõesatualizadas e precisas sobre os aspectos ambientais relacionados a essas rodovias.Os traçados solicitados das rodovias será encaminhado por e-mail.Atenciosamente, PAULO ESTEVES FERNANDES NETODepartamento de Estradas e Rodovias – DERSEAPLANC/SEINFRA

Como investigamos

Com base no traçado da rodovia BR-319 disponível no DNITGeo, que disponibiliza a base de dados geográficos do DNIT sobre infraestrutura de transportes no Brasil, e nos arquivos georreferenciados das rodovias estaduais, usamos a ferramenta de geoprocessamento e de código livre, QGIS, para analisar a sobreposição da área de influência das rodovias às terras indígenas e unidades de conservação no estado do Amazonas, considerando uma zona de amortecimento de 10 quilômetros em torno dessas áreas protegidas.

Os dados geográficos sobre as terras indígenas foram obtidos no site da Fundação Nacional do Índio (Funai). Os dados sobre unidades de conservação e municípios do Amazonas foram obtidos no site Terra Brasilis, mantido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

Com o uso do QGIs, também analisamos o desmatamento acumulado nessa região, entre 2008 e 2022, registrado pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes). A reportagem teve consultoria científica de Renata Libonati dos Santos, pesquisadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ)

Em sua área de influência, os ramais pavimentados acumulam desmatamento que equivale a quase metade da área do município de São Paulo  -746 km², registrados  entre 2008 e 2022 pelo Prodes – sistema de monitoramento anual de perda de vegetação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Na área analisada pela reportagem, a AM-354 teve toda a sua extensão pavimentada e a  AM-254 recebeu pavimentação em mais da metade do traçado planejado. Essas duas rodovias estão conectadas ao trecho asfaltado da BR-319 no município de Careiro. 

Com 42,81 km de extensão, a AM-354 percorre os municípios de Careiro e Manaquiri e tem impacto direto sobre seis terras indígenas onde vivem os povos Apurinã e Múra, além de duas unidades de conservação.  

Com maior desmatamento na área analisada pela reportagem, os trechos pavimentados da AM-254 têm impacto direto sobre 18 terras indígenas habitadas pelos povos Munduruku, Mura e Sateré-Mawé e oito unidades de conservação.  Ao redor do traçado, que percorre os municípios de Careiro, Autazes e Nova Olinda do Norte, essa rodovia acumula 527,73 km² de área desmatada entre 2008 e 2022, segundo dados do Prodes.

Menos de 5% da extensão total planejada (546,1 km), os trechos pavimentados da AM-366 somam 26,1 km com impacto direto em oito terras indígenas onde vivem indígenas das etnias Apurinã, Kambéba, Kokama, Matsés, Miranha e Tikúna e sete unidades de conservação. A área de influência desses trechos concentra 134,68 km²  de desmatamento entre 2008 e 2022, registrados pelo Prodes.

Bases analisadas

FonteBase originalTabelas Geradas (Análise)
Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT)Malha rodoviária nacionalImpactos na área de influência da BR-319
Secretaria de Infraestrutura do AmazonasRodovias estaduais ligadas à BR-319Impactos na área de influência das rodovias
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)Desmatamento Acumulado na Amazônia Legal entre 2008 e 2022/ municípios / UCs
Fundação Nacional do Índio (Funai)Terras indígenas

Limitações da análise

A área de influência de 40 quilômetros em torno do traçado de rodovias na Amazônia Legal, prevista pela Portaria Interministerial 60/2015 foi adotada pela reportagem para efeito de comparação com os estudos de impacto realizados no âmbito do projeto, mas esse limite estabelecido pela portaria é questionado por parte de organizações indígenas, ambientais e indigenistas ouvidas pela reportagem. 

A análise com um buffer linear não permite dimensionar toda a extensão dos impactos provocados por esses empreendimentos, que exigem estudos de maior complexidade que considerem outras variáveis como, por exemplo, os fluxos de tráfego na região. 

Fontes entrevistadas

Para entender o processo de licenciamento ambiental para rodovias federais e os respectivos estudo e relatório de impacto ambiental, a reportagem conversou com Suely Araújo, ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima e com a pesquisadora Ivani Faria, pesquisadora e líder do Grupo de pesquisa Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia (Ufam).

Suely Araújo apontou problemas jurídicos na licença prévia concedida em 2022 pelo Ibama, por não apresentar um plano de mitigação para o principal impacto ambiental da pavimentação da BR-319, que é o desmatamento em uma região importante para a preservação da biodiversidade na Amazônia. Do ponto de vista técnico, ela aponta que a medida mais adequada para uma avaliar o  impacto desse empreendimento é a avaliação ambiental estratégica, que considera os efeitos negativos de todos os empreendimentos existentes naquela região.

Ivani Faria aponta que o Eia-Rima da BR-319 deveria ter levado em consideração os efeitos negativos dos ramais ligados à rodovia federal, inclusive aqueles ainda inexistentes, mas que constam no planejamento da Seinfra-AM. Em um estudo de impacto, ela explica, é preciso avaliar todos os cenários possíveis para planejar as medidas de mitigação. 

A pesquisadora participou do estudo de componente indígena (ECI) da BR-319 realizado em 2008 e aponta que o direito à consulta prévia, livre e informada de todas as populações afetadas pela BR-319 e seus ramais, deve ser respeitado.

Para entender o impacto da BR-319 e das seis estradas estaduais no território do Amazonas em relação às populações indígenas, conversamos com Marcela Menezes, coordenadora do Programa Povos Indígenas do Instituto Internacional de Estudos do Brasil (IEB) e Josinaldo Aleixo, assistente de campo do IEB que  trabalha há 15 anos na região amazônica com povos e comunidades tradicionais residentes em diferentes tipos de áreas protegidas, com ènfase em unidades de conservação, com temáticas como fortalecimento institucional de organizações indígenas, agroextrativistas e municipalidades.

O IEB atua no processo elaboração do protocolo de consulta, em fase de validação com a população indígena Apurinã, Mura, e dos povos do tronco linguístico Kagwahiva: Parintintim,Tenharim e Jiahui, distribuídos em 10 terras indígenas onde a população já sente impactos no território em relação à BR e seus ramais. 

A reportagem também ouviu Fernanda Meirelles, pesquisadora do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesan) e secretária-executiva do Observatório da BR-319, formado por uma rede de organizações da sociedade civil, pesquisadores e associações indígenas que fazem o acompanhamento dos processos administrativos e dos impactos relacionados ao projeto.

 Em um estudo publicado em julho deste ano, o observatório analisou ramais ilegais abertos ao longo da rodovia até 2022 nos municípios de Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, que totalizam 5.902 quilômetros, 5,8 vezes a extensão total da BR-319 (807 km). 

A reportagem também conversou com as lideranças indígenas Cacique Zé Bajaga Apurinã, coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp) que falou sobre os impactos da AM-366 nas TIs Apurinã Igarapé São João e Apurinã Igarapé Tauamirim e Cacique Adamor da Silva Leite, da aldeia Palmeira, localizada na TI Lago Capanã, território impactado pela BR-319, e por ramais ilegais que chegam até uma área de uso dos indígenas na Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande.

Como forma de tornar o debate mais plural, a reportagem consultou Thiago Castelano, indígena Parintintim que vive na TI Ipixuna. Ele é técnico em sistema de informação geográfica (SIG) do departamento de Georreferenciamento da Organização dos Povos Indígenas Parintintim do Amazonas (OPIPAM). Como pesquisador Indígena no Estudo de Componente Indígena (ECI)- Parintintin do licenciamento ambiental da BR-319, Castelano teve incidência na inclusão da TI Ipixuna no Plano Básico Ambiental que prevê a criação de ações de vigilância territorial, educação ambiental, geração de renda e fortalecimento institucional de organizações e associações indígenas impactadas pela obra.

Liderança do Povo Parintintin das Terras Indígenas Nove de Janeiro e Ipixuna, Tiago Castelano é secretário executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (OPIAM) e também atua como pesquisador Indígena na criação do protocolo de consulta kagwahiva.

NomeInstituiçãoLattes
Renata LibonatiUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4227120P1
Marcela MenezesInstituto Internacional de Estudos do Brasil (IEB)https://www.escavador.com/sobre/531980/marcela-nunes-de-menezes
Josinaldo AleixoInstituto Internacional de Estudos do Brasil (IEB)https://www.escavador.com/sobre/4564051/josinaldo-aleixo
Fernanda MeirellesIntituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesan)https://www.linkedin.com/in/fernanda-meirelles-65742924/?originalSubdomain=br
Suely AraújoObservatório do Climahttps://www.escavador.com/sobre/569835/suely-mara-vaz-guimaraes-de-araujo
Ivani FariaUniversidade Federal do Amazonas (UFAM)https://www.escavador.com/sobre/2976343/ivani-ferreira-de-faria
Cacique Zé BajagaFederação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp)https://www.instagram.com/focimp.mrp/
Cacique Adamor da Silva LeiteAldeia Palmeira
Thiago CastelanoOrganização dos Povos Indígenas Parintintim do Amazonas


Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.

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