O crime organizado está em quase 70% dos municípios da fronteira. Dados e histórias da investigação jornalística foram comentados por lideranças dos povos do Vale do Javari e Munduruku, no Brasil, e Kakataibo, no Peru, que resistem à presença de atividades criminosas em seus territórios.
O recém-lançado projeto especial de reportagem Amazon Underworld (O Submundo da Amazônia) esteve em debate nos Diálogos Amazônicos, evento com participação da sociedade civil realizado em Belém no último final de semana. O encontro na capital paraense antecedeu a Cúpula da Amazônia, que começa nesta terça-feira (8) para reunir chefes de Estado dos países da Pan-Amazônia.
O debate ocorreu na atividade “Quem tem o controle? Economias ilegais na Amazônia”, com a presença do jornalista que coordenou o Amazon Underworld, Bram Ebus, e das lideranças indígenas Alessandra Korap Munduruku e Eliesio Marubo, do Brasil, e Herlin Odicio Estrella, do Peru. A atividade foi proposta pela organização internacional Amazon Watch, que atua na proteção da floresta e na promoção dos direitos dos povos indígenas.
O Amazon Underworld é uma investigação jornalística que mapeou, entre maio de 2022 e julho de 2023, o ecossistema criminoso nas fronteiras da Amazônia, a partir de entrevistas com fontes primárias, consulta a documentos e pedidos de informação em todos os municípios amazônicos fronteiriços de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Participaram do projeto 37 jornalistas e profissionais de mídia de 11 países.
De acordo com dados da investigação, quase 70% dos municípios fronteiriços da Amazônia têm presença de facções e grupos armados, em muitos casos com disputa de diferentes grupos pelo domínio de territórios. Entre as organizações criminosas mapeadas nas fronteiras amazônicas aparecem o Exército de Libertação Nacional (ELN), dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV).
A primeira reportagem publicada trata da mineração ilegal de ouro na fronteira entre Brasil e Colômbia, que envolve extorções de guerrilheiros, corrupção policial e atuação de piratas. No segundo texto da série, indígenas Pemón, na Venezuela, tentam resistir à tentativa de controle por parte de grupos armados e invasão de garimpeiros brasileiros que querem explorar a região, rica em ouro e diamante. Também já está disponível o mapa que apresenta em que municípios da fronteira os grupos criminosos atuam.
O coordenador de investigação do Amazon Underworld considera que falta cooperação entre os países amazônicos para lidar com a segurança nas fronteiras. “Tudo o que estou contando são dinâmicas que têm a ver com problemas de governança. Os governos se reúnem estes dias aqui, em Belém do Pará, para falar de cooperação regional, para proteger a Amazônia. Apesar disso, não controlam grandes partes de suas respectivas áreas amazônicas, onde há sim uma governança, mas uma governança do crime”, avalia Bram Ebus.
O debate
O líder indígena Eliesio Marubo, procurador jurídico da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), pediu que as informações do projeto sejam compartilhadas com organizações indígenas que atuam na vigilância territorial e auxiliam inclusive autoridades nacionais, como faz a Univaja. O Vale do Javari, localizado na fronteira do Brasil com o Peru, é a segunda maior terra indígena do país. Lá vivem sete povos que mantêm contato permanente com não indígenas brasileiros e uma grande concentração de povos isolados.
“No trabalho que nós temos feito no Vale do Javari, percebemos que há uma participação não só de grupos criminosos organizados, como também de pessoas ligadas, financiadas pelo mundo criminoso. O que é pior. O grupo criminoso que atua na região usando pescado ilegal pra levar droga até a Colômbia, pra da Colômbia ir pra outras regiões, é o mesmo grupo que investe na economia da região, ou seja, é dono do comércio local, e é o mesmo que investe na formação dos políticos”, explica Eliesio.
Em junho de 2022, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados na Terra Indíegna (TI) Vale do Javari. Há mais de 11 anos Bruno acompanhava os povos da TI. Os executores de Bruno e Dom faziam parte de uma organização criminosa de pesca ilegal. Para Eliesio, a omissão política também é responsável pelos assassinatos.
“Hoje nós podemos dizer quais autoridades foram omissas, que de alguma maneira colaboraram para que Dom e Bruno fossem mortos. Nós estamos vivendo num outro momento político, mas não podemos baixar a guarda e deixar de fazer aquilo que nós sempre fizemos, que é defender nosso território, a nossa família, o nosso modo tradicional de viver, o nosso pensamento”, afirma o procurador jurídico da Univaja.
LIderanças em risco
A Federação Nativa de Comunidades Kakataibos (Fenacoka) representa 13 comunidades indígenas do povo Kakataibo, no Peru. Herlin Odicio Estrella, presidente da Fenacoka, conta que o Peru hoje é a base do narcotráfico, que se espalha por toda a Amazônia. Empresas madeireiras estariam ligadas ao comércio de drogas. Odicio, que já perdeu companheiros de luta assassinados, está ameaçado.
“No Peru, nos últimos três anos, foram assassinadas 21 lideranças, somente por defender seus territórios. Do meu povo, foram assassinadas quatro lideranças. Lideranças que me acompanhavam no trabalho de incidência com autoridades políticas”, conta o líder indígena. “Nós mantemos nossa firmeza e seguimos na luta para defender nossa floresta, nosso território, nossa vida. Essa é a nossa vida, esse é o nosso mundo.”
O mundo do povo Munduruku, no Brasil, está ameaçado pelo garimpo ilegal e pela contaminação de mercúrio. A liderança Alessandra Korap Munduruku considera que a ausência de políticas faz com que até jovens indígenas acabem aliciados por garimpeiros. Um estudo da Fiocruz, de 2020, encontrou níveis de mercúrio acima dos limites seguros em cerca de 60% dos indígenas participantes.
“A gente sente na pele o impacto. Há muitos anos o povo Munduruku vem sofrendo com o garimpo. Desde a década de 1960 já veio garimpo dentro do território. As mulheres falam: ‘como é que nós vamos alimentar nossos filhos com leite materno, já que o leite materno está contaminado?’”, diz Alessandra.
Tanto Alessandra quanto Eliesio consideram fundamental que haja uma ação contínua do Estado nas terras indígenas para enfrentar o crime organizado. “A gente está pedindo, não só os Munduruku, também os Kayapó e Yanomami, que tenha participação dos indígenas sobre como eles tem que fazer. Ter uma base permanente, não é só queimar e sair. Fechar onde tem venda de combustível. A gente consegue ver, a gente consegue mapear. Por que o governo não consegue?”, questiona a liderança Munduruku.
Para o representante da organização Amazon Watch no Peru, Vladmir Pinto, os Estados nacionais precisam ouvir os povos indígenas.
“Estamos trabalhando também, no Peru, para que o Estado tenha um vínculo de respeito e proteção aos direitos coletivos com os povos indígenas. Não se trata de que, no caso das economias, dos cultivos ilegais, do narcotráfico, entrem com a polícia. Tem que estabelecer critérios de governança, de como os povos querem trabalhar o tema da política antidrogas”, avalia.
O projeto Amazon Underworld é uma aliança jornalística envolvendo iniciativas do Brasil (InfoAmazonia), da Venezuela (Armando.Info) e da Colômbia (La Liga Contra El Silencio).
O trabalho foi realizado com o apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center e financiado pela Open Society Foundations, pelo Foreign, Commonwealth & Development Office do Reino Unido e pela International Union for Conservation of Nature (IUCN NL). Durante a atividade nos Diálogos Amazônicos, o coordenador Bram Ebus informou que, além das reportagens e dos dados da investigação, o projeto vai gerar um documento com recomendações para políticas públicas.