Postado emVenezuela

Grupos armados ameaçam terras indígenas no sul da Venezuela

Na Amazônia do sul da Venezuela, as comunidades indígenas Pemón estão lutam contra a invasão de grupos armados e garimpeiros

6 August 2023

Por María Ramírez Cabello

É sexta-feira à noite, e no Centro de Ikabarú, uma comunidade no território indígena Pemón, no sul da Amazônia venezuelana, próximo à fronteira com o Brasil, a pregação de um casal de pastores cristãos traz de volta más lembranças aos moradores locais. A cena, a agitação e as cantorias são semelhantes às dos dias anteriores ao chamado Massacre de Ikabarú, uma operação armada que aconteceu há três anos, em que oito pessoas foram mortas. 

O evento — na noite de sexta-feira, 22 de novembro de 2019 — sinalizou a importância do território indígena para os criminosos envolvidos na mineração ilegal de ouro nesta vasta área do sul da Venezuela e países vizinhos. 

Uma variedade de grupos armados — guerrilheiros, garimpeiros e gangues criminosas conhecidas como sindicatos ou “sistemas” — compartilha o controle de áreas de mineração no sul da Venezuela, nos estados de Amazonas, Bolívar e Delta Amacuro. Eles financiam as suas operações com receitas provenientes da extorsão e do tráfico de minerais, drogas e armas, e operam praticamente sem resistências por parte do governo, na região biodiversa e escassamente povoada.

Ikabarú se situa numa área de selva, rodeada praticamente por grupos armados que operam no norte e leste da Amazônia venezuelana e por garimpeiros que operam a oeste no Brasil. Muito está em risco. Além de fazer parte da Amazônia, esta área da selva venezuelana alimenta o Rio Caroní, o segundo rio mais importante da Venezuela e a principal fonte de eletricidade do país.

Não é coincidência que essa área de mineração sem lei se sobreponha a duas áreas ambientalmente protegidas, uma das quais é uma fonte de água estrategicamente importante.

No povoado, não há necessidade de perguntar o que aconteceu no dia do Massacre de Ikabarú. A história surge espontaneamente, geralmente como uma explicação para o ritmo lento dos dias aqui, que passam em silêncio, com poucos visitantes e com o ar nostálgico de quem perdeu algo valioso.

“Algumas pessoas foram embora. Houve um trauma. Agora eles estão voltando”, diz um morador, a poucos metros do local onde o tiroteio começou.

Naquela noite, por volta das 7 da noite, uma dúzia de homens armados, encapuzados e vestidos de preto, dispararam contra um grupo de pessoas em frente a um estabelecimento comercial, gritando: “Sua liderança acabou, Cristóbal; esta é a quadrilha do El Ciego.”

Cristóbal Ruiz Barrios, cujo corpo apareceu vários dias depois, não muito longe de Ikabarú, era garimpeiro numa região conhecida como La Caraota, e aqueles que o procuravam pretendiam substituí-lo, como aconteceu em outras regiões dos ricos depósitos de ouro e diamantes do sul da Venezuela.

Dezenas de mineradores trabalham nesta mina, nas margens do Rio Uaiparú, um afluente do Ikabarú, deixando um corte na terra | María Ramírez Cabello

El Ciego (espanhol para “o cego”), o suposto idealizador do plano, lidera um dos pelo menos sete grupos criminosos ativos que controlam áreas de mineração na selva venezuelana, onde operam com o conhecimento tácito das forças estatais há mais de uma década.

Mas, devido à peculiaridade do evento, os líderes locais — indígenas e não indígenas — afirmam que o massacre foi realizado pelas forças de segurança do estado. O objetivo, dizem eles, era forjar uma justificativa para uma maior militarização do território Pemón e o controle absoluto da riqueza mineral. 

Nesse mesmo ano, um comboio do exército venezuelano a caminho da fronteira com o Brasil disparou contra a comunidade indígena Kumarakapay, matando três Pemón e deixando dezenas de feridos, num confronto que levou a um avanço militar em meio a uma década de recuos na luta pelo controle entre os guerrilheiros, garimpeiros e até forças militares que compartilham o território.

“Faz parte da estratégia do governo, que atingiu o seu pico em 2019. Eles patrocinam esses grupos armados e criam uma situação para justificar a militarização”, diz um líder indígena, que pediu anonimato por razões de segurança. Os abusos por parte dos militares e a invasão de territórios indígenas por grupos armados se intensificaram há aproximadamente uma década, acrescenta.

Em meio a essa turbulência, Ikabarú parece uma ilha, um dos únicos lugares que não foi tomado. Embora os dias pareçam transcorrer tranquilamente, a ameaça de invasão por grupos criminosos e novos atores que buscam uma parte da riqueza do ouro e dos diamantes permanece latente.

“Eles estão entrando nas comunidades pouco a pouco, como uma invasão pacífica”, alertam as pessoas em Ikabarú.

Embora não exista uma organização armada ativa como existe nos outros distritos mineradores do país, a área é cobiçada pelos chamados “sindicatos” ou “sistemas” que operam nos municípios vizinhos. Também é visada por garimpeiros, apenas 12 quilômetros ao sul, no Brasil, onde invadiram as terras do povo Yanomami com o apoio de grupos criminosos.

Um terceiro grupo — que não é novo, mas que renovou forças — pode também estar de olho na região: os mineradores guianenses, que operam enormes plataformas onde reviram leitos de rios na bacia superior do Rio Caroní.

Ikabarú é uma comunidade de povos indígenas e não indígenas do município de Gran Sabana, no sul da Venezuela. Suas jazidas de ouro e diamantes são um ímã para mineradores e grupos armados. | María Ramírez Cabello

Desde meados dos anos 2000, grupos armados estatais e não estatais têm competido violentamente pelo controle das áreas de mineração no sul da Venezuela. A maior pressão tem se concentrado em Bolívar, o maior estado da Amazônia venezuelana, onde o Conselho de Direitos Humanos da ONU documentou massacres, desaparecimentos e violações dos direitos humanos.

A violência e a expansão da mineração atingiram o pico nos anos de menor produção de petróleo, a principal fonte de renda para o país, que possui as maiores reservas comprovadas de petróleo bruto do mundo. Em 2016, o governo do presidente Nicolás Maduro criou o Arco Mineiro do Orinoco, dizendo que iria “reorganizar” a mineração no sul. Em vez disso, no entanto, a mineração ilegal se expandiu rapidamente na área, facilitada por grupos armados que controlam a região.

OURO E DIAMANTES SÃO UM ÍMÃ PARA OS MINERADORES

Ikabarú se situa no final de uma estrada de terra quase intransitável que se assemelha ao leito rochoso de um rio que secou. Fica no território indígena Pemón, no município de Gran Sabana, no sul do estado de Bolívar, a cerca de oito horas (embora a apenas 120 Km) de Santa Elena de Uairén, a maior cidade da região, e a 12 quilômetros da fronteira brasileira.

Ao longo da beira da estrada, um visitante que se aproxima de Ikabarú vê povos indígenas com detectores de metais à espera do som que os alertará para a presença de metais preciosos. O aluguel do equipamento, por um décimo de grama de ouro por dia, é um dos novos negócios. Os garimpeiros procuram dentre inúmeros montes de terra extraídos de antigas concessões de mineração, principalmente na década de 1990, quando o governo liberou essas concessões. É literalmente um campo minado, onde as águas outrora cristalinas de riachos como o Chaveru estão agora lamacentas pelos sedimentos levantados pelos garimpeiros.

Um garimpeiro procura ouro numa área extraída há anos. O aluguel de detectores de metais é um negócio em expansão nesta área do município de Gran Sabana. | María Ramírez Cabello

A mineração é claramente o principal meio de vida aqui. Na cidade, onde a população é majoritariamente não indígena, as placas publicitárias de pães e doces se misturam com outras que se oferecem para comprar ouro e diamantes, e ainda outras que vendem gasolina, diesel e geradores elétricos. Durante o dia, não há eletricidade e a cidade fica em silêncio. Inúmeras casas parecem abandonadas ou foram colocadas à venda. Dos 10 restaurantes ativos antes do massacre, apenas um permanece.

No entanto, Ikabarú não foi tomada.

“Entre julho de 2016 e março de 2017, mais de 8.000 mineradores entraram em Ikabarú, alguns deles até a pé”, lembra Lisa Henrito, líder da comunidade indígena Maurak. A situação na mina de Kimiyo, em Hachaken, obrigou a guarda territorial indígena a expulsar 648 desses mineradores.

“Nesse grupo, detectamos sete sujeitos ligados a ‘El Ciego’ de La Paragua. Esse grupo já estava levantando a cabeça. Eles até tentaram sequestrar dois guardas territoriais”, diz ela. Tratava-se de uma tentativa de tomar aquela ilha no estado de Bolívar.

Ikabarú fica a apenas 12 quilômetros da fronteira com o Brasil

As comunidades indígenas Pemón estão em meio a grupos armados que buscam controlar a região e garimpeiros brasileiros e guianenses que entram em seu território

Crédito: Laura Kurtzberg

“A intenção por trás desse massacre era tomar as minas e trazer seu povo, mas sabemos de onde vêm essas intenções — do próprio governo. Essas são ações evidentes”, diz Juan Gabriel González. 

González é capitão-geral do setor VII do povo Pemón, uma das oito zonas geográficas em que se organizam as comunidades indígenas da Gran Sabana da Venezuela. Cada comunidade e cada setor tem um líder, chamado de capitão.

Seis meses após o massacre, em 2020, membros do grupo criminoso entraram em contato com ele. Um deles disse que era o El Ciego e que queria falar com González.

“Eles começaram a escrever para nós que queriam colocar pessoas para controlar as minas, mas rejeitamos isso em um comunicado emitido com os conselhos comunais”, diz o líder do povo Pemón. “Não vamos aceitar essas pessoas.”

Os povos indígenas Pemón criaram postos de controle para ordenar o acesso ao setor VII do município de Gran Sabana. Qualquer pessoa que pretenda entrar deve solicitar autorização. | María Ramírez Cabello

Quando os garimpeiros começaram a inundar Ikabarú, a liderança indígena, ou capitania, tomou medidas mais fortes para controlar o acesso. Mesmo agora, qualquer pessoa que queira entrar na área deve solicitar autorização à Capitania Geral de Santa Elena de Uairén. Os viajantes que se deslocam para Ikabarú, em geral, devem apresentar a licença em três postos de controle criados pela guarda territorial indígena, uma estrutura de segurança interna organizada em 2001 para resolver problemas domésticos na comunidade, mas que ao longo do tempo se tornou uma forma de autodefesa contra a invasão de forasteiros. Os Pemón que participam vestem preto e atuam como vigias, mas não portam armas de fogo.

Esse controle, no entanto, não impediu as ameaças e o fluxo de garimpeiros. Em um relatório de setembro de 2022, a Missão Internacional Independente de Averiguação da ONU sobre a Venezuela observou que “dada a sua posição estratégica e riqueza em ouro, os territórios indígenas em Gran Sabana e outros municípios vizinhos têm sido um foco de interesse tanto para o Estado quanto para grupos criminosos armados. A população indígena destas áreas resistiu a estes interesses, o que levou a conflitos e confrontos violentos.”

GARIMPEIROS BRASILEIROS ATRAVESSAM A FRONTEIRA

Os venezuelanos não são os únicos que cobiçam o território Pemón. Brasil e Venezuela compartilham uma fronteira de 2.199 quilômetros. Na passagem da fronteira que liga a cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén com a cidade brasileira de Pacaraima, dezenas de milhares de migrantes venezuelanos passaram por tendas montadas pela Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Mas travessias informais em outros lugares da selva podem ver um fluxo na direção oposta.

Migrantes venezuelanos que procuram escapar da turbulência política e econômica do seu país atravessam a fronteira para a cidade brasileira de Pacaraima.| Diane Sampaio

“Ikabarú pode ser acessado por terra, por via aérea e por trilhas do Brasil”, diz Luis Rodriguez, um minerador venezuelano de 33 anos que veio tentar a sorte ao longo das margens do Rio Ikabarú há menos de um ano, atraído pela reputação de pureza do ouro nessas jazidas.

A presença de brasileiros em solo venezuelano não é incomum — eles têm garimpado por lá há décadas.

“Os brasileiros ensinaram os indígenas venezuelanos a perfurar”, disse um morador local, referindo-se à técnica de prospecção para analisar o solo e localizar depósitos minerais.

Mas a promessa do presidente Lula de pôr fim à mineração ilegal no território Yanomami poderia levar mais garimpeiros brasileiros a atravessar a fronteira, representando uma ameaça para os povos indígenas em Bolívar e em toda a Amazônia venezuelana. Esta região viu a maior violência associada à mineração ilegal, incluindo o massacre de Haximu em 1993, no qual 16 Yanomami foram brutalmente assassinados por garimpeiros brasileiros.

Nos campos de exploração mineira ao longo do Rio Uaiparú, afluente do Ikabarú, os mineradores indígenas e não indígenas trabalham em turnos. | María Ramírez Cabello

Nas margens dos rios Ikabarú e Uaiparú, o equipamento de terraplenagem faz barulho ao quebrar a crosta terrestre para criar minas a céu aberto. Esses poderosos equipamentos são de propriedade de brasileiros. Estes pontos ficam a mais de duas horas de carro de Ikabarú, através de uma estrada de paralelepípedos que torna o acesso quase impossível. A estrada leva ao porto fluvial de Los Caribes. A partir daí, os depósitos ilegais podem ser acessados por lancha.

González, líder Pemón, confirma que os brasileiros trabalham na área há mais de 30 anos sob as regras da capitania indígena. Mas com a desocupação militar do Brasil, eles começaram a entrar em Ikabarú. As rotas que eles utilizam incluem as antigas trilhas da Sierra Beleza ou da La Leoncia.

“Eles queriam entrar em Ikabarú, mas nós estamos recusando”, diz González. “Eles foram deslocados e despejados, mas não permitimos que eles entrem no nosso território.”

De acordo com González, os garimpeiros tentaram entrar se oferecendo para financiar equipamentos de mineração para moradores de Ikabarú. “Já sabemos quais mecanismos eles querem usar para entrar na área. Fechamos as autorizações de entrada”, diz ele, acrescentando: “estamos implementando vigilância. Estamos alertas.”

‘MÍSSEIS’ NO RIO IKABARÚ

Como os garimpeiros estão cada vez mais voltados para esta região da Venezuela, um sinal concreto de seu interesse é a chegada de enormes balsas transportando equipamentos de dragagem, um fenômeno importado do Brasil.

Uma viagem ao longo do Rio Ikabarú revela apenas um par de minas a céu aberto ativas e mais de uma dezena de minas abandonadas. Nas imagens de satélite, estes campos de mineração parecem estar ativos. Mas pessoas familiarizadas com a área dizem que essas operações, onde máquinas de lavagem de diamantes ainda estão na margem do rio, foram paralisadas durante o plano Caura, uma operação militar de 2010 destinada a erradicar a mineração ilegal.

No entanto, no rio sinuoso, rodeado por densas florestas, onde as araras voam pelo céu, a turbidez da água não é um sinal encorajador. 

Na margem do rio, alguns homens montam enormes pedaços de metal verde que chegaram alguns dias antes, transportados em cinco caminhões ao longo da estrada de terra que leva a Ikabarú e ao porto de Los Caribes. A passagem do comboio numa manhã de meados de fevereiro não passou despercebida. Não é incomum ver veículos pesados carregados com comida e gasolina, mas as enormes plataformas eram o assunto da cidade. E eles não são os únicos. Além das docas, três outras balsas gigantes operam continuamente.

Conhecidas como “mísseis” (ou ‘misiles‘, em espanhol), estas enormes dragas funcionam ilegalmente dia e noite. Eles são tão largos que, além de sustentar equipamentos pesados que levantam sedimentos no leito do rio e os sugam através de tubos que se conectam a uma grande peneira, onde o ouro e os diamantes são lavados, eles também têm espaço para que três a cinco operadores se movam facilmente e tenham uma área de descanso.

O primeiro “míssil” para além da plataforma em construção é operado por um grupo de mineradores guianenses cujo acampamento fica a poucos quilômetros de distância.

“A capitania tem pleno conhecimento destas dragas guianenses e brasileiras. Eles são os que têm o maior equipamento”, diz um Pemón morador da comunidade de Playa Blanca, que pediu para permanecer anônimo.

Afluentes finos, de cor âmbar, do Ikabarú, se juntam ao rio espesso e sinuoso, destacando os danos ecológicos à hidrovia, cujas margens abrigam pelo menos uma dúzia de comunidades indígenas. Na mineração, tanto em terra como na água, o mercúrio é usado para amalgamar o ouro, extraindo as partículas da areia e dos sedimentos. O mercúrio, altamente volátil, retorna então ao ar, solo ou água. Na água, se transforma em metilmercúrio e se acumula no tecido dos peixes, um efeito que aumenta à medida que se sobe na cadeia alimentar.

“Sabemos que isso é ilegal e que estamos prejudicando o meio ambiente”, diz um membro de um conselho comunal que está sendo criado no porto de Los Caribes, o ponto de abastecimento de alimentos e outros itens usados nas minas e nas balsas. Esta organização não-indígena, protegida pela Lei dos Conselhos Comunais, é outro fator em conflito no território. A capitania indígena afirma que a organização quer impor sua própria interpretação da lei que criou os conselhos comunais como órgãos participativos para facilitar a implementação e supervisão de políticas públicas e projetos de desenvolvimento comunitário.

Mas eles concordam em uma coisa. Como os povos indígenas, o membro do conselho comunal justifica a presença das balsas, dizendo que o seu impacto ambiental é mínimo. Ele e a sua equipe controlam a segurança e o acesso às minas. Na ausência do Estado, eles fizeram justiça com as próprias mãos, elaborando “avisos de expulsão” improvisados para quem entra nas minas para “se comportar mal” cometendo abusos ou causando violência.

Tanto os garimpeiros que trabalham em terra como os que operam nas balsas extraem ouro e diamantes. De acordo com um estudo de 2021 publicado numa revista do Ministério da Ciência e Tecnologia da Venezuela, Ikabarú é o território do estado de Bolívar com maior potencial para a produção de diamantes. Os autores escrevem que a maior parte dos diamantes em Ikabarú são de elevado valor porque são cristais de oito lados com porcentagens de lapidação — uma referência ao número de facetas, que conferem ao diamante o seu brilho — superior a 60%.

Os garimpeiros de Ikabarú falam pouco sobre a mineração de diamantes, mas, no porto de Los Caribes, um minerador de 31 anos que espera um barco para levá-lo até a mina mais próxima tira um pequeno recipiente de plástico do bolso e esvazia pequenos diamantes perfeitamente moldados na mão.

Além de ser o canal onde os “mísseis” operam, o rio é uma rota de tráfico de combustível e outros suprimentos de mineração.| María Ramírez Cabello

Entre 2004 e 2010, a Venezuela registrou uma produção média anual de cerca de 18.000 quilates de diamantes no âmbito do processo Kimberley, um acordo voluntário em que 82 países estabelecem normas mínimas para o fornecimento de diamantes sem conflitos. A Venezuela se retirou do acordo em 2008 porque era impossível monitorar a origem das pedras, mas voltou ao processo em 2016. 

Em 2020, a Venezuela relatou uma produção de 794 quilates no portal do sistema internacional de certificação, mas a informalidade ganhou terreno, a mineração é ilegal e grande parte da produção não se reflete nas estatísticas oficiais. No âmbito do acordo comum, os países participantes se comprometem a aplicar controles internos e a publicar os valores do seu comércio anual de diamantes, bem como a transparência dos dados relativos à produção e ao comércio. A Venezuela não apresentou relatórios para 2021 e 2022. 

O reconhecimento oficial do território do povo Pemón não impediu as invasões de pessoas de fora armadas. Em 2016, os líderes indígenas instalaram dois postos de controle na estrada para Ikabarú, a fim de controlar o acesso. Em 2017, a Organização para os Direitos dos Povos Indígenas Kapé Kapé informou que um grupo de 70 pessoas armadas “de várias nacionalidades” raptou os habitantes de Hachaken, outra comunidade Pemón, durante quatro dias. De acordo com o relatório, eles pretendiam assumir o controle da mineração de ouro lá — o mesmo motivo que estava por trás do Massacre de Ikabarú, em 2019.

Embora a mineração seja ilegal, a estatal venezuelana Corporación Venezolana de Minería (CVM) chegou a um acordo com algumas comunidades indígenas para fornecer materiais. Uma lata de combustível de 230 litros vendida pela CVM, por exemplo, custa 6,5 gramas de ouro.

A fragilidade da situação é evidente. Mesmo à custa do seu território, o povo Pemón propôs a legalização da exploração mineira para poder entregar ouro ao governo de Maduro num país fragmentado pelas ações de grupos criminosos. Eles querem abrir a porta para a mineração legal.

“Não queremos mais esconder ou pagar taxas de extorsão, mas pagar o que é devido”, diz o capitão-geral González. Por enquanto, os riscos potenciais que seriam exacerbados pelo aumento da mineração não parecem preocupá-lo muito.

“Este é o nosso território”, diz ele, “e vamos mantê-lo.”

O Amazon Underworld é uma investigação conjunta da InfoAmazonia (Brasil), Armando.Info (Venezuela) e La Liga Contra el Silencio (Colômbia). O trabalho é realizado com o apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center e financiado pela Open Society Foundations, pelo Foreign, Commonwealth & Development Office do Reino Unido e pela International Union for Conservation of Nature (IUCN NL).