Atividades de bioeconomia na Amazônia são desenvolvidas há décadas e estudo mostra que investimentos podem aumentar em R$ 40 bilhões o PIB da região
Trabalhar o conceito e um plano nacional de bioeconomia é um dos desafios do governo federal, que já mobiliza dez ministérios e inclui, ainda, a recém criada Secretaria Nacional da Bioeconomia. Os esforços visam desenvolver propostas que há anos são vistas na Amazônia. A Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre), por exemplo, criada em 2001, possui 2, 5 mil cooperados que produzem e comercializam a castanha, a pupunha e outras frutas amazônicas. “A gente precisa ter retorno financeiro e manter a floresta em pé”, diz o presidente da Cooperacre, José de Araújo Rodrigues, dando uma ideia do que é a base desse conceito.
A ideia central da bioeconomia é desenvolver atividades econômicas centradas no uso sustentável dos recursos naturais. Dentro disso, são diversas as iniciativas presentes, desde as que envolvem o trabalho de ribeirinhos e indígenas, com coleta e produção agrícola até aquelas que trazem a presença de grandes empresas, com vendas nacionais e internacionais.
O Ministério do Povos Indígenas, por exemplo, tem um Grupo de Trabalho para discutir o tema, o Ministério da Indústria, Comércios e Serviços tem uma Secretaria de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria, o Ministério do Meio Ambiente tem uma Secretaria de Biodiversidade. O Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Agricultura e Pecuária, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, o Ministério do Desenvolvimento Regional, o Ministério do Planejamento e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação são órgãos federais que estão desenvolvendo ações dentro do conceito de bioeconomia, cada um discute o conceito em diferentes olhares.
Existem ao menos três linhas de ideias dessa bioeconomia: a sociobiodiversidade, a bioeconomia de base florestal e a bioeconomia de commodities, essa última envolvendo conceitos utilizados pelo agronegócio e a biotecnologia. Dessa forma, o conceito de bioeconomia tem sido disputado por diversos setores, tornando o desenvolvimento e a consolidação de uma política nacional um desafio para o governo federal.
De acordo com a professora Cláudia Chelala, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), o conceito da bioeconomia se contrapõe a um conceito hegemônico criado no século passado e executado dentro da ditadura militar de 1964. Foi nos primeiros anos do regime que os militares passaram a reformular as políticas para a região. Em 1966 eles lançaram a Operação Amazônia, que mudou a ótica deste trabalho, voltando a economia da região para a exploração dos minérios, da madeira, dos insumos naturais, sem preocupação com qualquer tipo de impacto aos povos da floresta ou à própria floresta.
É nesta lógica que o Projeto Ferro-Carajás foi implementado entre os estados do Pará e Maranhão, levando a construção da maior jazida de minério já explorada no mundo. A mina de Carajás fica situada no município de Parauapebas, no Pará, e para sua construção uma mata virgem de 400 mil hectares foi desmatada. O projeto também previu a construção da Estrada de Ferro Carajás e liga o Porto de Ponta da Madeira, de São Luís, no Maranhão, a Marabá e Parauapebas, no Pará. Os impactos ambientais e sociais ainda são sentidos hoje nas regiões.
A hidrelétrica de Tucuruí, também no Pará, é outro exemplo dessa lógica da Operação Amazônia, que levou o governo federal a investir esforços para a construção de grandes projetos com impacto nos rios, nos solos e, principalmente, nos povos indígenas e ribeirinhos. Ela começou a operar em 1984 e causou perda florestal, grandes emissões de metano, mudanças nos recursos hídricos e o impacto social na vivência das populações que precisam desses rios para coexistir.
A partir dessa visão exploradora, a professora Cláudia Chelala explica como a bioeconomia feita pelos povos da floresta é uma nova forma de olhar a economia na Amazônia, mas afirma que esse conceito é diverso e amplo e está em constante mudança. “O que o estado precisa é identificar essas atividades e identificar as carências dessas atividades. O conceito de bioeconomia é um debate constante, com atores de vários cenários”, afirma.
Entraves para a bioeconomia
A professora Cláudia Chelala é uma das autoras do artigo “Entraves para o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia”. Nele, ela destaca alguns dos principais produtos do extrativismo na região: açaí de várzea, castanha-da-amazônia, pirarucu, óleos naturais, cupuaçu, cacau, farinha de mandioca e açaí de terra firme. A castanha foi destacada como o produto com maior entrave de desenvolvimento no Amapá.
São entraves nos investimentos, máquinas e instalações, na falta de legislação e na força de trabalho disponível. “As áreas de castanhais são de acesso muito difícil, para produzir precisa desses fatores de produção, de terra, de mão de obra. Os nossos castanhais estão em um lugar que no início do ano os ramais ficam intrafegáveis, porque os ramais não têm asfalto. Então eles não tem infraestrutura, não tô dizendo para construir um monte de rodovia, mas criar acessos, não precisa nem ser rodovia, pode ser fluvial, mas criar conectividade”, explica a professora.
Cada estado tem uma realidade diferente e no caso do Amapá o produto que tem menos entraves é o açaí de várzea. “O açaí de várzea tá muito aqui perto do nosso centro, nos núcleos urbanos mais adensados, então como tá perto do mercado, fica perto do consumidor. E até para fabricar, o fato de estar na várzea, estar no rio, o cara coloca na canoa e traz. Então o acesso já não é tão difícil assim”, explicou.
O artigo destaca, também, a dificuldade do desenvolvimento do pirarucu, como parte dessa cadeia da bioeconomia na Amazônia. O estudo mostrou que faltam as delimitações de áreas com potenciais de manejo do pirarucu e faltam investimentos para a construção de tanques e manutenção dos viveiros. Apesar disso, a mão de obra não é um problema, porque existem muitos pescadores no Amapá, ao mesmo tempo, no entanto, com as dificuldades, esse trabalho enfrenta a informalidade e o difícil acesso aos direitos trabalhistas.
A professora afirma que é necessário traçar um diagnóstico de toda a cadeia produtiva da Amazônia para entender essas dificuldades e esses entraves. “Precisa pegar pelos fatores de produção, entender o que em cada cadeia é entrave e qual é potencialidade”, afirma.
A World Resources Institute Brazil (WRI Brazil) desenvolveu o estudo “Nova Economia da Amazônia”, que expõe os benefícios financeiros dessas cadeias. De acordo com o estudo, com os investimentos certos, o PIB da Amazônia poderia aumentar em R$40 bilhões até 2050 e poderiam ser criados 312 mil empregos.
Os impactos negativos caso isso não seja feito é também maior. Os técnicos estimam que as emissões de carbono serão cinco vezes maiores do que as metas do país e que 57 milhões de hectares podem ser destruídos. Em contrapartida, o estudo aponta que, com o uso de novas formas de economia, a Amazônia teria 81 milhões de hectares a mais de florestas e cerrados até 2050.
“A atual lógica econômica se caracteriza pela venda de commodities agrícolas e minerais que geram desmatamento e emissões. Além disso, a já pujante economia local de produtos da biodiversidade tem sua relevância ofuscada pelos setores convencionais, e fica escondida na informalidade”, diz o estudo.
Extrativismo de mulheres amapaenses
As mulheres ribeirinhas de comunidades no entorno do rio Macacoari, distante cerca de três horas e meia de Macapá, passaram a se organizar coletivamente como força extrativista em 2014. São 40 mulheres que já trabalhavam com a venda de produtos que estavam em seus territórios, mas que aumentaram essa produção cozinhando. Hoje, elas compõem a Cozinha Coletiva do Beira Amazonas.
O açaí, como mostrou a pesquisa da Cláudia Chelala, é um dos produtos mais usados. São doces de açaí em vários formatos: brigadeiro, bolo, geléia, pudim e até maionese. Elas também plantam e usam a macaxeira, a tapioca, o camarão, a pamonha e a pupunha. “São produtos da nossa região mesmo, que estão no nosso território. Produtos como um açaí, buriti, isso vem trazendo uma economia imensa pra dentro da nossa região”, explica Deurizete Araújo, coordenadora da Cozinha.
Criada em uma família com quatro irmãos, Deurizete sempre percebeu que sofria injustiças por ser mulher. Ela casou aos 22 anos e, quando decidiu que iria participar dos movimentos de agricultores do Amapá, precisou enfrentar a recusa do marido. “Meu esposo ficou com essa resistência de não querer deixar eu ir porque ‘isso era só para homem’ eram só ‘amigos que participavam’ e tudo mais. A gente foi conversando com ele e depois eu comecei”, conta.
A reunião coletiva dessas mulheres foi o que causou consciência social enquanto mulheres e foi possível com o apoio da Escola Família Agroecológica do Macacoari (EFAM) e do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB). Elas receberam formação para desenvolver consciência social e se institucionalizar. “Nosso objetivo daqui para frente é que a gente possa alavancar cada vez mais e a gente possa fornecer merenda escolar regionalizada dentro do processo da cozinha coletiva”, explica Deurizete.
Antes da organização com a Cozinha Coletiva, as mulheres vendiam os produtos para pessoas que depois revendiam isso. É o que os ribeirinhos chamam de “atravessadores”. É por meio deles que as vendas são feitas, por conta disso, o preço de venda para um atravessador é menor que o preço revendido. “Os atravessadores centralizam a comercialização e estabelecem uma relação de dependência e forte subordinação, uma vez que adiantam os recursos para grande parte dos coletores, mantendo exclusividade sobre a produção”, explica a professora Cláudia Chelala, no artigo “Entraves para o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia”.
Com a Cozinha Coletiva, essas mulheres passam a vender sem os atravessadores. Uma casa de açaí vendido por R$80 para um atravessador, hoje é vendido a R$200 de forma direta.
Segurança alimentar e desmatamento na Amazônia
A falta de uma renda justa e fixa provoca problemas às famílias extrativistas e um paradoxo, porque produzem alimentos, mas não conseguem manter estabilidade financeira para uma alimentação saudável. A região Norte, que concentra a maioria dos estados da Amazônia Legal, é a mais afetada pela insegurança alimentar, de acordo com o Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Entre novembro de 2021 e abril de 2022 a fome fez parte do dia a dia de 25,7% das famílias na região. A média nacional é de 15,5%.
A Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Unini (Coomaru) fica situada na Reserva Extrativista (Resex) Rio Unini, no município de Barcelos, no Amazonas. Nela, 170 cooperados trabalham com o manejo de pirarucu, coleta de castanha, banana e outras frutas. Na década de 1990, os extrativistas trocavam sua produção por cestas básicas. Isso foi mudando aos poucos e, em 2010, eles criaram a cooperativa, no intuito de fortalecer o movimento e buscar preços justos para os produtos.
“Hoje a coisa tá melhor, eles (agricultores) levam banana, levam farinha, vendem no preço justo. Agora, no setor da castanha, tem algo acontecendo. Tem muita gente trabalhando em cima de mapeamento, de legalização de castanhal, mas a coisa fundamental não tá acontecendo, que é a comercialização de castanha. Na hora de chamar as cooperativas para conversar com os empresários, isso não está sendo feito”, diz João de Souza, presidente da Coomaru.
A pesquisadora Joice Ferreira, da Embrapa, é uma das autoras do artigo “Uma nova bioeconomia na Amazônia: Oportunidades e desafios para florestas e rios saudáveis”. Ela explica que a bioeconomia tem um forte impacto na segurança alimentar dessas populações, que estão construindo sua renda a partir da preservação da floresta. “Ela é uma fonte adicional e inovadora de renda para essas famílias. É uma grande mudança porque hoje você tem pouca renda ou não tem renda vindo da floresta. Então pela bioeconomia você está propondo usar essa floresta de forma sustentável e mantê-la como floresta. Ou pelo menos restaurar ecossistemas que estão degradados”, explica.
Essas tentativas são feitas em muitos lugares sem apoio institucional de governos, com cooperativas procurando seus espaços enfrentando muitos desafios. “Não tá chegando assistência às comunidades, na área de saúde, educação. Precisamos que nossas crianças sejam preparadas para entender que a floresta é nosso lugar e tem que ficar de pé, mas não temos esse interesse do poder público”, afirma João Souza.
João Souza reforça o discurso de manter a floresta em pé, porque entende os benefícios disso para os cooperados e para o mundo. O desmatamento da Amazônia é o principal motivo para emissão de gases no Brasil e tem causado danos severos com políticas ambientais que sofreram desmontes no governo de Jair Bolsonaro. Dados do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que, no primeiro semestre deste ano, houve uma redução de 33,6% nos alertas de desmatamento na Amazônia, em relação ao mesmo período do ano passado. A pesquisadora Joice Ferreira afirma que a bioeconomia está ligada ao combate ao desmatamento.
“A partir do momento que é gerada essa nova economia valorizando produtos florestais, gerando renda a partir da floresta em pé e não da retirada dela, naturalmente você está contribuindo para redução do desmatamento. Então você está aumentando essa renda, está desencorajando atividades ilegais, você está fortalecendo essas comunidades rurais que muitas vezes são deslocadas, são expulsas por grileiros”, explica.
Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia. A reportagem de Jullie Pereira foi realizada em parceria com Report4theworld, iniciativa da Groundtruth.