Renomada faculdade de direito de Nova Iorque assina documento enviado ao órgão que regula o mercado financeiro do país e aponta omissões de mineradora canadense em informes aos investidores, incluindo a possibilidade de o projeto estar dentro de terras indígenas.
A mineradora canadense Brazil Potash, ou Potássio do Brasil (PDB), é alvo de uma reclamação na Comissão de Valores dos Estados Unidos: A Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (em inglês, U.S. Securities and Exchange Commission, SEC), é uma agência federal independente de regulamentação e controle dos mercados financeiros nos Estados Unidos. — que regula o mercado financeiro do país — por omitir informações dos seus investidores sobre a questão indígena envolvendo seu projeto para explorar cloreto de potássio na bacia do Rio Madeira, no Amazonas. A denúncia é assinada pelos professores da clínica de Direitos Humanos e Prevenção de Atrocidades da renomada faculdade de direito de Nova Iorque, Cardozo Law Institute, e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
“Identificamos uma série de omissões e informações falsas sobre o projeto de mineração de potássio em Autazes diretamente relacionadas a questões ambientais e indígenas”, declarou a advogada Fernanda Bragato, coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
A Comissão de Valores americana possui uma força tarefa focada em questões climáticas e ESG, que é a governança ambiental, social e corporativa das empresas —em inglês Environmental, Social, and Corporate Governance.
A denúncia foi apresentada em 7 de junho, após a InfoAmazonia revelar que a empresa escondeu dos seus investidores uma decisão judicial que determina o início dos estudos para demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba na área onde os canadenses pretendem escavar uma mina e instalar uma planta de produção de fertilizantes (leia mais sobre o histórico abaixo).
“A Comissão de Valores Mobiliários tem o dever de assegurar que os investidores estão recebendo informações verdadeiras e completas, pois eles podem não querer participar de empreendimentos que cometam abusos ou envolvam altos riscos”, emenda Bragato. Se a reclamação contra a Potássio do Brasil for aceita na Comissão de Valores dos EUA, a empresa pode ficar impedida de captar recursos na bolsa americana.
O Ministério Público Federal (MPF) pediu a paralisação do projeto até que sejam concluídos os estudos sobre a terra indígena: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país., o que pode acabar frustrando os planos e contratos já firmados pelos canadenses para comercialização do potássio.
Nesta semana, o governador do Amazonas, Wilson Lima (União), saiu em defesa do empreendimento e se declarou contra a demarcação da terra indígena durante a 1ª Assembleia Geral dos Governadores da Amazônia Legal, em Cuiabá (MT).
Lima declarou que a demarcação iria “acabar definitivamente com a possibilidade da exploração do potássio e de uma área que a gente não tem conhecimento de populações tradicionais indígenas”, nas suas palavras.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) informou que vai buscar meios legais sobre as declarações do governador, por entender que houve violação dos direitos constitucionais dos povos indígenas na declaração.
“O governador desconsidera todo o arcabouço jurídico da Constituição que defende o direito dos povos indígenas no usufruto exclusivo dos seus territórios. Bom seria se ele fizesse uma fala desconsiderando o que ele falou, caso contrário, vamos procurar os meios legais para acionar o governador nas instâncias que forem necessárias”, declarou Toya Manchineri, coordenador-geral da Coiab.
Histórico de omissões
O projeto para exploração de potássio em Autazes, no estado do Amazonas, é permeado por conflitos desde 2015, quando a Potássio do Brasil iniciou perfurações dentro de áreas indígenas sem autorização.
Em 2017, para não ser processada, a empresa assinou um acordo com o MPF em que se comprometeu a respeitar as regras para consulta indígena, ficando impedida de licenciar o projeto “sem prévia autorização judicial”.
O projeto inicial tinha área sobreposta à Terra Indígena Jauary e oferecia impacto direto a outros territórios já ocupados tradicionalmente. A empresa chegou a reformular a abrangência do projeto para retirar sobreposições nas terras indígenas. Mas não descartou que a exploração a quase um quilômetro de profundidade avançaria pelo subsolo dos territórios.
Agora, com o andamento do processo de demarcação da TI Soares/Urucurituba —que não foi informado aos investidores—, novas áreas do projeto podem ser consideradas proibidas para mineração, já que a Constituição brasileira não permite essa exploração em terras indígenas.
O pedido para demarcação da área estava parado desde 2003 na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai: Órgão federal criado em 1967 e responsável pela execução das políticas de proteção e de promoção dos direitos indígenas em todo o território nacional.), mas a reivindicação da comunidade data da década de 1990. Em março, equipes da Funai estiveram na região fazendo levantamentos preliminares.
Se a terra indígena for de fato demarcada, apontou o procurador “se extingue o projeto [da Potássio do Brasil]”, declarou o procurador federal Fernando Merloto Soave, em abril deste ano, no mesmo dia em que a empresa protocolou comunicado aos investidores na Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos em busca de financiamento para seu projeto.
Em 2021, mesmo sob compromisso de não avançar com o projeto até resolver a questão indígena, a Potássio firmou contrato com a chinesa CITIC para assumir a obra e sinalizou aos investidores que a questão indígena não era problema para o projeto, mas sim uma etapa em vias de ser concluída. Na época, a empresa não tinha nenhuma garantia de que os indígenas aceitariam o projeto.
Um ano depois, a empresa foi acusada pelo MPF de coagir indígenas para comprar imóveis na região. A InfoAmazonia esteve na região e conversou com os povos indígenas que relataram as mesmas pressões.
Nesse período, a mineradora patrocinou um processo de consulta indígena, que era uma das exigências da Justiça para cumprir os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, mas a consulta indígena está suspensa após novas denúncias de interferências no processo.
Desde então, executivos locais da PDB têm se aproximado da classe política em busca de apoios. A empresa também realizou parcerias com o poder público em Autazes, com doações de equipamentos e participação em ações ambientais, e é acusada pelos indígenas locais de jogar a população contra os povos tradicionais.
Em abril, o MPF anunciou que pelo menos duas testemunhas foram incluídas em programas de proteção após receberem ameaças de morte por causa do acirramento local em torno do projeto de potássio.
Componente político contra os indígenas
Em 2022, após se reunir com executivos da Potássio do Brasil para “ajudar o Brasil a depender menos da importação de fertilizantes”, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) apoiou publicamente o projeto para exploração de potássio na bacia do Madeira e citou como exemplo para justificar mineração em terras indígenas.
No mesmo ano, o prefeito de Autazes, Anderson Cavalcante (PSC), viajou ao Canadá a convite da Potássio do Brasil, acompanhado da então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para conhecerem o modelo canadense de mineração em terras indígenas.
E nem mesmo a troca de governo —com Lula (PT) assumindo a presidência do Brasil prometendo defender os povos indígenas— esfriou o vínculo do potássio com a classe política.No início de março deste ano, o fundador da Potássio, Stan Bharti, e o presidente da companhia no Brasil, Adriano Espeschit, se reuniram com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), em São Paulo, em busca de apoio da nova gestão do governo federal em um encontro fora da agenda oficial do vice-presidente. Em 24 de março, desta vez em evento oficial, eles voltaram a se encontrar na 308ª reunião ordinária do Conselho de Administração da Suframa (CAS), que foi presidida por Alckmin.
O vice-presidente da República, que também é ministro da Indústria e Comércio (MDIC), gravou vídeo afirmando que vai ajudar o projeto “que vai gerar emprego e riquezas”. À InfoAmazonia, a assessoria de Alckmin justificou que ele “limitou-se a defender uma solução jurídica para o impasse sobre qual órgão seria competente para decidir a respeito de um pedido de licenciamento ambiental”.
Potássio está vendido para ex-ministro
Segundo informações da própria mineradora, o projeto de potássio na Amazônia vai custar 2,4 bilhões de dólares, dos quais parte pretende captar através de investidores nos Estados Unidos.
Apesar de o projeto parecer frágil diante da análise dos professores da Cardozo Law e de especialistas ouvidos pela InfoAmazonia, aos investidores, a Potássio do Brasil vende confiança.
“O risco para os investidores verem apenas retornos negativos em seus investimentos é muito maior do que a PDB levou os investidores a acreditar”, afirmam os docentes em outro trecho da denúncia.
No lugar de informar os reais riscos do projeto, nos seu último informe à Comissão de Valores americana, a PDB anunciou que celebrou um contrato de exclusividade para venda de 2,4 milhões de toneladas de potássio com o conglomerado agrícola Amaggi, da família de Blairo Maggi, que foi ministro da Agricultura no governo do ex-presidente Temer (2016-2019) e é o maior produtor de soja do Brasil. O contrato foi assinado sem nenhuma garantia formal sobre a viabilidade ou aprovação do projeto.
De acordo com a Seção 17 da Lei de Valores Mobiliários dos EUA, as empresas que buscam investimentos em uma bolsa no país estão proibidas de fazer qualquer “deturpação ou omissão de informações importantes sobre valores mobiliários”.
No estudo antropológico anexado ao processo que determinou estudo da terra indígena são apontados elementos que indicam a ocupação de povos tradicionais daquela região com registros documentados desde, pelo menos, 1838.
O antropólogo Bruno Caporrino, que atuou na elaboração do Protocolo Mura, que é o documento que norteia a tomada de decisões coletivas da comunidade garantida na OIT 169, como a consulta indígena livre prévia e informada, diz que “ao financiar uma operação que desrespeita frontalmente o que o ordenamento e a jurisprudência determinam, incorre-se em ilícito. Não creio que a SEC [Comissão de Valores americana] ou os investidores desejam se ver implicados nisso”.
O coordenador da Funai em Manaus, Emilson Frota de Lima Munduruku, informou que a regional ainda aguarda manifestação de Brasília para o cumprimento da decisão judicial que determinou a criação de um grupo de trabalho (GT) para os estudos para demarcação.
A Funai em Brasília não retornou os pedidos de informação da nossa reportagem.
Procurada, a Potássio do Brasil não se manifestou até a publicação desta sexta-feira (23). A assessoria do governador Wilson Lima também não atendeu a reportagem.