Projetos de obras na Amazônia podem ser grandes vetores de divisões internas na gestão Lula 3, avalia Márcio Santilli; petróleo no Amazonas, obras da BR-319, da Ferrogrão e a exploração de potássio estão na lista.
O protagonismo da agenda ambiental brasileira —que pode colocar o país em posição de destaque em relação à preservação da floresta e direito dos povos indígenas— sofreu a primeira grande investida de seus opositores na gestão do terceiro mandato do presidente Lula (PT). Em duas semanas, o Congresso Nacional alterou as estruturas do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA) e do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas (MPI), retirando atribuições importantes dessas pastas; e se antecipou ao julgamento da tese do Marco Temporal – retomado na última quarta-feira (7) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – aprovando na Câmara, por 283 votos a 155, o projeto de lei 490 que institui a tese anti-indígena contra a demarcação dos territórios.
No meio desse turbilhão, o projeto para exploração de petróleo na Foz do Amazonas provocou fissuras e colocou Ibama em rota de colisão com a Petrobras e outros ministérios. Na Câmara, a ministra Marina Silva também foi pressionada sobre a obra da BR-319, durante audiência pública na Comissão de Meio Ambiente, outro projeto com grande potencial de impacto ambiental e social. Na ocasião, a ministra disse que o empreendimento “precisa de uma avaliação ambiental estratégica”.
Sobre esta conjuntura, Márcio Santilli, ex-presidente da Funai (1995-1996) e um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), avalia que o governo federal precisa centralizar questões que norteiam a gestão e se posicionar.
Para Santilli, as obras de infraestrutura na Amazônia serão vetor de tensões no governo, que precisa compreender que abrir grandes rodovias e explorar poços de petróleo na Amazônia “não é trivial”, muito menos uma questão meramente técnica: “É uma questão muito mais complexa, de como o Brasil vai se posicionar sobre as questões climáticas”, afirmou Santilli, em entrevista à InfoAmazonia.
Santilli avalia, por exemplo, que no embate entre o Ibama e a Petrobrás no projeto para exploração de petróleo na Foz do Amazonas, que teve a licença negada tecnicamente pelo órgão ambiental, o governo tinha que centralizar a discussão e resolver as diferenças internamente.
“A partir do momento que se decide fazer um projeto, tem toda uma conversa de como ele será executado. E nós temos péssimos exemplos como antecedentes”, afirmou Santilli. Leia a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – Recentemente governo assistiu o duro golpe do Congresso contra as pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas com a aprovação da Medida Provisória 1154, sem grande resistência. Semana passada, lançou o PPCDAM, que já se provou ser chave em busca do desmatamento zero. Como você avalia essas duas questões e como uma coisa pode prejudicar a outra?
Márcio Santilli – Eu acho que pouca coisa de fato vai mudar no que diz respeito à política ambiental. Sobre o PPCDAM, não deve interferir em nada, mas algumas questões preocupam. Eu acho que onde realmente podemos ter um maior impacto é na questão política dos recursos hídricos, porque ela cai no Ministério do Desenvolvimento Regional, que é usuário através dos projetos de infraestrutura e tudo mais que cabe a pasta. A gestão dos recursos hídricos deveria ser feita por uma instância que não fosse usuária, onde não houvesse concorrência com outros usos, e que pudesse estar atuando junto com todos os ministérios que têm a ver com o assunto. Mas não privilegiar uma pasta onde possa haver esses interesses.
E o que pode ocorrer com o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que sai do Serviço Florestal Brasileiro e vai para o Ministério da Gestão?
A situação do CAR chama atenção. Esta semana falei sobre o assunto em minha coluna no Mídia Ninja: Car de Cartório. Foi isso que o CAR se tornou, uma espécie de cartório paralelo, que supostamente atesta. E o CAR é um instrumento super promissor, mas que fica sempre sendo promissor porque sistematicamente o Código Florestal vai sendo alterado pela bancada ruralista, adiando prazos de implementação efetiva do mecanismo, como planos estaduais, e que seriam os instrumentos pelos quais o CAR ganharia vida no chão, apontando as terras que precisam ser recuperadas, entre outros.
Enquanto isso, o CAR fica reduzido nessa condição de cartório, que serve para os proprietários de terra como instrumento paralelo de demonstração da terra. Serve inclusive para grilar, e ainda não é efetivo do ponto de vista da política florestal. Mesmo assim, estar no Ministério do Meio Ambiente garantiria essa representatividade do instrumento. Não sei bem como é que isso vai ficar no Ministério de Gestão, que não tem quadros para operar de uma forma qualificada o CAR, o que é um equívoco básico. De qualquer maneira, acho que isso vai acabar se resolvendo em uma relação de parceria dos dois ministérios.
Existe uma disputa bem clara neste campo, que divide inclusive interesses em alguns ministérios, principalmente aqueles relacionados a grandes projetos de infraestrutura na Amazônia.
Eu acho que sem dúvida nenhuma esse vetor das obras públicas vai ser um fator importante de tensão. Eu imagino que do ponto de vista da estratégia da política econômica isso é fundamental. Eu não estou falando nem de uma ou de outra, mas de um pacotão de obras que incluem projetos em várias regiões do país, incluindo a Amazônia. Mas quais são esses projetos? Isso que a gente se pergunta. Existe uma pressão política organizada em cima desses projetos, que é a BR-319, a Ferrogrão, o potássio no Amazonas e o petróleo na Foz do Amazonas. Tudo depende de quais projetos vão estar na mesa. Esse será um vetor importante que envolve não somente o peso político regional, mas dentro do governo posições que são diferentes.
Muitas dessas discussões têm ficado no plano das pastas, dos ministérios. Não está na hora do governo se posicionar pontualmente sobre questões sensíveis como o meio ambiente e os direitos indígenas?
Com certeza. É claro que algumas situações, como essa da Foz do Amazonas, já vinha pautada pela gestão passada. Mas o fato é que teve uma mudança de governo, teve uma mudança na presidência do Conselho da Petrobrás, e esse não é um projeto trivial, qualquer criança sabe disso. Portanto, deveria ter sido objeto de uma decisão política do mais alto nível do governo. Para o bem ou para o mal. Para fazer ou não fazer.
O que deveria envolver uma discussão mais aprofundada que vai além do interesse da Petrobrás. Esse projeto nos remete a uma questão muito mais complexa, que é o horizonte do petróleo e de como o Brasil se posiciona sobre as questões climáticas. Qual é nosso papel nessa história? Como são essas informações de que esse petróleo vem para substituir a produção do pré-sal? Parece que tem muita contradição nessas informações. E não sabemos qual é essa estratégia do Brasil para abrir uma frente de exploração de petróleo na Foz do Amazonas, uma região que tem todas as implicações ambientais e inclusive simbólicas.
Eu acho que não pode ser uma coisa que se encaminha burocraticamente, um pedido de licença para o Ibama que responde burocraticamente que faltou um relatório. Eu acho que o Lula tem que chamar para si questões dessa envergadura, dessa importância, e com os ministros fazer uma discussão consistente, liberar informações que permitam às pessoas formarem um juízo desse negócio. Algo mais criterioso, não é em qualquer hipótese que se pode produzir petróleo, o que significa o Brasil abrir mão desse petróleo. Isso não é algo trivial.
A mesma coisa eu diria de outras obras que são importantes do ponto de vista do impacto que trazem. A partir do momento que se decide fazer um projeto, tem toda uma conversa de como será executado. E nós temos péssimos exemplos como antecedentes. Você vai abrir a BR-319 para fazer como foi com a BR-163, com grilagem rolando solta e o desmatamento comendo tudo?
Eu acho que isso vai ser indispensável. As questões de grande envergadura precisam ser trazidas para o centro do governo e qualquer contradição ser dirimida ali. E que a opinião pública tenha o mínimo de informação para formar juízo de valor sobre cada iniciativa dessas. Agora, que a cuíca vai roncar aí, vai.
A Câmara atropelou o debate e aprovou o PL 490, que entre outros, quer estabelecer a tese do Marco Temporal. Isso a menos de nove dias do julgamento do assunto ser retomado no STF. Como você vê esse movimento dos deputados e o quanto eles podem influenciar a opinião pública e os ministros do STF?
O PL 490 é destruidor e vai muito além da destruição que é a tese do Marco Temporal. Existem várias outras aberrações dentro desse projeto de lei, e que tem se falado pouco nas discussões, mas que não são de menor importância. Como puxar a discussão sobre demarcação para o Congresso Nacional, obrigar a Funai a forçar contato com grupos de isolados, arrendamento de terras, abertura de estradas, enfim.
Esperamos que o STF dê um rumo a essa história, o que certamente terá impacto na tramitação do PL 490. Embora o projeto vá além da questão do Marco Temporal em si. De qualquer maneira, o que vier a ser aprovado pelo Congresso ainda cabe veto presidencial, novos recursos ao STF. Talvez a questão não se resolva de forma tão rápida e possamos ter novos capítulos dessa história.