Sob incertezas de continuidade e omissões de informações aos investidores americanos, empresa canadense firma contrato para exploração de milhões de toneladas de potássio com família Maggi e conquista apoio dentro do governo federal para avançar na exploração em terras indígenas dos Mura, em Autazes, no Amazonas.
A mineradora canadense Potássio do Brasil voltou a esconder de seus investidores a possibilidade de que seu projeto para exploração de potássio na Amazônia esteja totalmente dentro da autodeclarada Terra Indígena Soares/Urucurituba, ocupada há mais de 200 anos pelo povo Mura.
O projeto para exploração de potássio na Amazônia já esteve no centro de diversas polêmicas, mas a mineradora sempre argumentou que o empreendimento não estava em terra indígena, mas sim no entorno.
Essa situação mudou em 3 de abril deste ano, quando uma decisão da Justiça Federal do Amazonas determinou abertura do processo de demarcação da TI Soares/Urucurituba, no município de Autazes, a 113 quilômetros de Manaus, onde a mineradora pretende fazer as escavações para construir uma mina e uma planta de beneficiamento para produção de fertilizantes.
O despacho da juíza Jaiza Maria Pinto Fraxe tem como base um relatório antropológico preparado a pedido do Ministério Público Federal (MPF) e que identificou registros históricos sobre a ocupação. O pedido de demarcação do território estava parado na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), desde 2003.
“Os direitos dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam são de natureza originária. Isso significa que são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial”, diz trecho da decisão que estipulou prazo de 30 dias para Funai criar um grupo de trabalho para estudar a demarcação.
Ao invés disso, após os estudos antropológicos e a decisão da Justiça, em 28 de abril a mineradora informou à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC -Securities and Exchange Commission, em inglês) que celebrou um contrato de exclusividade para venda de 2,4 milhões de toneladas de potássio com o conglomerado agrícola Amaggi, da família de Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura do governo Temer (2016-2019) e maior produtor de soja do Brasil. O contrato foi assinado mesmo sem nenhuma garantia formal sobre a viabilidade ou aprovação do projeto.
No relatório enviado, a empresa, que é controlada pelo banco canadense Forbes & Manhattan, indicou que o licenciamento ambiental do projeto para início das obras de escavações estaria pendente apenas da conclusão da consulta indígena— determinada pela Justiça Federal em um acordo com a empresa, em 2017, após o MPF apontar violações dos direitos indígenas. O acordo exige a consulta livre, prévia e informada conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na mesma tarde de 28 de abril, enquanto os executivos da Potássio protocolavam o relatório na bolsa de valores americana para seu projeto em Autazes, que tem custo previsto de 2,4 bilhões de dólares para instalação, os procuradores federais anunciavam durante uma coletiva de imprensa a necessidade da paralisação imediata do projeto.
“Pedimos judicialmente que se suspenda todo o processo de consulta e toda a questão que envolve qualquer andamento em relação à mineração [de potássio], justamente porque nossa Constituição não permite mineração em terras indígenas”, afirmou o procurador Fernando Merloto Soave, do Ministério Público Federal do Amazonas, que emendou “se esses estudos comprovarem de fato os elementos da tradicionalidade e da ocupação, se extingue o projeto [da Potássio do Brasil]”.
O MPF também questiona a competência do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), órgão ambiental estadual, sobre o licenciamento da obra, como insiste a mineradora. Segundo os procuradores, devido ao alto impacto ambiental e influência sobre terras indígenas, o licenciamento deveria ser realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e com a participação da Funai por “ocorrência de potenciais danos irreparáveis ao povo indígena Mura”.
A Funai informou à reportagem da InfoAmazonia que realizou os trabalhos de qualificação da área para demarcação do território Mura no fim de março, e que “após a etapa de campo, foi iniciada a análise dos dados em âmbito interno, com o objetivo de motivar, oportunamente, a constituição de grupo técnico multidisciplinar, responsável por realizar os estudos necessários à identificação e delimitação da área com base na legislação vigente”.
Em 18 de abril, após participar de uma audiência na Comissão de Minas e Energia na Câmara dos Deputados, o diretor-geral da Agência Nacional de Mineração (ANM), Mauro Sousa, disse à nossa reportagem que o órgão “está avaliando o plano de aproveitamento econômico” do projeto de potássio em Autazes, que segue tramitando na agência. “Mas se não tiver o licenciamento ambiental não podemos emitir a portaria de lavra”, afirmou.
A Potássio do Brasil tem 177 requerimentos de mineração registrados na ANM. O projeto Potássio-Autazes, segundo informações divulgadas pela própria mineradora, é o maior dentro de um planejamento que prevê exploração em vários outros municípios no leito do Rio Madeira.
Chamado de Potássio-Autazes, o projeto apresentado pela Potássio do Brasil para exploração e produção de fertilizante em plena Amazônia pretende escavar o subsolo a quase um quilômetro de profundidade, onde pretende abrir galerias em uma área de 13 quilômetros de comprimento com 10 quilômetros de largura.
Estimativas apontam que em 30 anos podem ser explorados 227 milhões de toneladas de material escavado, gerando 165 milhões de toneladas de outras substâncias, principalmente cloreto de sódio (sal de cozinha). E 62 milhões de toneladas de potássio.
Especialistas, ouvidos pela InfoAmazonia em abril de 2022, apontavam para os riscos ambientais e sociais de uma obra deste tamanho em região alagada e sensível na confluência dos rios Madeira e Amazonas. Um estudo, realizado em 2018 por pesquisadores do Brasil e Estados Unidos, mostra que o complexo de Autazes traz riscos para o solo, a estrutura geológica, a vegetação, os aquíferos e até a drenagem da superfície.
Projeto da Potássio do Brasil está sobre áreas requerida para demarcação da Terra Indígena Soares/Urucurituba e a 8 quilômetros de outros territórios Mura já demarcados.
Meias verdades
A Potássio do Brasil não cita em nenhuma linha de seu relatório aos acionistas a necessidade dos estudos para reconhecimento da Terra Indígena Soares/Urucurituba, que podem alterar profundamente seu projeto. Nem mesmo que a consulta dos povos indígenas pode ser negativa, o que também inviabilizaria o projeto naquele local. A empresa também não fala sobre os questionamentos da competência sobre o licenciamento ambiental da obra apontados pelo MPF.
Ao mercado financeiro, a Potássio do Brasil afirma apenas que obteve licença ambiental através do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) em 2015, órgão ambiental estadual, mas que após questionamentos do MPF “concordou com o tribunal” em realizar “consultas adicionais” aos povos indígenas.
Em 25 de abril, três dias antes de enviar o relatório, a mineradora conseguiu derrubar no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) a decisão que impedia o licenciamento ambiental da obra, abrindo uma brecha para a empresa voltar ao órgão ambiental do estado para obter licenças.
Aos investidores, a Potássio ainda assinala que a emissão da licença de instalação do projeto está “em progresso”.
Para o procurador regional da República, Felício Pontes, que recorreu da decisão do TRF-1, o que caiu foi apenas a proibição do licenciamento sem autorização judicial, e que não interfere nas outras decisões, inclusive sobre a demarcação do território.
“A decisão dizia que não poderia haver licença sem decisão judicial, e o que o desembargador decidiu é que o órgão ambiental tem autonomia para fazer isso. É uma parte bem pequena de todas as decisões que temos no caso envolvendo a Potássio e os Mura”, afirmou Pontes.
“Nós queremos que o caso seja julgado pelo Tribunal para que seja reconhecido que a competência [de licenciamento] desse caso é federal por várias razões, mas uma especial está bem clara, o projeto afeta povos indígenas. Se afeta os povos indígenas, a competência é federal”.
Mas apesar de não informar nada sobre essas questões, a Potássio do Brasil se resguarda de ter que comunicar aos investidores retroativamente qualquer mudanças no rumo do projeto: “Todas as declarações prospectivas aqui contidas referem-se apenas à data deste Relatório Semestral. Não assumimos nenhuma obrigação de atualizar ou revisar, ou anunciar publicamente qualquer atualização ou revisão de qualquer uma das declarações prospectivas aqui contidas, seja como resultado de novas informações, eventos futuros ou outros, após a data deste Relatório Semestral”.
E essa não é a primeira vez que a empresa apresenta informações imprecisas sobre seu projeto de mineração na Amazônia. Em maio de 2021, a InfoAmazonia já havia revelado que a Potássio do Brasil atropelou o acordo com a Justiça brasileira e anunciou contrato bilionário para obra da mina com a chinesa CITIC.
“Vamos ajudar”, Alckmin embarca no lobby da Potássio
Os planos da mineradora canadense para explorar potássio em Autazes têm sido permeados por conflitos e disputas judiciais desde 2008, quando os canadenses adquiriram direitos para reativar projetos abandonados pela Petrobrás na bacia do Rio Madeira. Na época, a estatal chegou a desistir do negócio, mas os canadenses contornaram a situação e conseguiram comprar os direitos minerários.
Desde então, o lobby político e as denúncias de assédios na região do projeto Potássio-Autazes se tornaram uma marca da empreitada.
No início de março deste ano, o fundador da Potássio, Stan Bharti, e o presidente da companhia no Brasil, Adriano Espeschit, se reuniram com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), em São Paulo, em busca de apoio da nova gestão do governo federal em um encontro que não consta na agenda oficial do vice-presidente. Em 24 de março, desta vez em evento oficial da agenda do vice-presidente, eles voltaram a se encontrar na 308ª reunião ordinária do Conselho de Administração da Suframa (CAS), que foi presidida por Alckmin.
Essa aproximação com Brasília já existia na gestão do ex-presidente Bolsonaro (PL), que chegou a usar o projeto da Potássio do Brasil como argumento para tentar liberar a mineração em terras indígenas, como mostramos na época.
Ao lado do prefeito de Autazes, Anderson Cavalcante (PSC), Alckmin gravou um vídeo em que afirma que “o Brasil é um dos grandes produtores do mundo de alimentos e somos um dos maiores importadores de fertilizantes”. No final do vídeo, o vice-presidente chegou a prometer ajudar a viabilizar o projeto:
“Vamos ajudar, sim, para viabilizar o projeto que vai gerar emprego e riqueza”.
Com alta demanda na produção de grãos, a exploração de potássio na Amazônia brasileira vende a promessa do fim da dependência das importações. Segundo o setor, o Brasil importa 98% do potássio utilizado como fertilizante nas lavouras. E o Canadá é o principal fornecedor.
Não é difícil entender a aproximação dos canadenses com o grupo Amaggi e os interesses diretos do agronegócio. Além de um contrato de 15 anos para comercialização direta do potássio, que até agora não tem nenhuma garantia de que será explorado na região, o grupo Amaggi também negociou toda a logística para o transporte de fertilizantes pelo rio Madeira e Amazonas através de seu braço na navegação, a Hermasa.
As empresas de Blairo Maggi querem atuar no chamado frete de retorno, em que as barcaças que levam soja das regiões produtivas para os portos voltem com fertilizantes.
Projeto de conflito: “O cara disse que ia me dar um tiro”
Ainda em abril, o MPF incluiu lideranças do povo Mura no programa de proteção de pessoas ameaçadas por conta dos conflitos gerados com não indígenas da região defensores do projeto de mineração .
Presentes na coletiva, indígenas relataram episódios de ameaças e pressões. As influências locais da mineradora, com políticos e empresários, têm gerado um ambiente hostil, “que joga a população contra os indígenas”, segundo relatou o presidente do Conselho Indigenista Mura, José Claudio Pereira Yuaka.
Sérgio do Nascimento, tuxaua (líder político) da aldeia Soares, contou aos jornalistas ter sido ameaçado de morte: “O cara disse que ia me dar um tiro porque a gente ia tomar a terra dele”, relatou.
No ano passado, após inspeção judicial, a Justiça Federal apontou aliciamento de indígenas por parte da empresa para venda de imóveis na área do empreendimento, incluindo ameaças de que os ocupantes perderiam suas terras.
Dezenas de indígenas e ribeirinhos venderam suas casas, onde foram fincadas placas de propriedades da Potássio. Segundo a Justiça, as negociações são ilegais.
A reivindicação dos Mura para demarcação do território data da década de 1990, mas foi só em 2003 que o pedido foi oficializado à Funai. Nesse período, eles autodemarcaram o território e apresentaram os mapas ao órgão indigenista. Mas o processo nunca andou, o que contribuiu para que o pedido de mineração fosse aceito pela ANM e tivesse uma licença emitida pelo órgão estadual.
Desde 2010, a mineradora Potássio do Brasil realizou pelo menos 43 perfurações em Autazes, incluindo sondagens de solo sem autorização na Terra Indígena Jauary, identificada em 2008 pela Funai, e na autodemarcada Terra Indígena Soares/Urucurituba.
Através da influência local, a empresa também conseguiu emplacar um geólogo dentro do processo livre e informado de consulta dos povos indígenas conforme a OIT 169. O especialista Daniel Nava, indicado através de um convênio com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que deveria auxiliar os indígenas sobre os riscos e impactos do projeto nas comunidades, foi denunciado pelas lideranças indígenas por defender a exploração de potássio com consentimento dos indígenas —uma suposta tentativa de manipular a decisão dos Mura.
O posicionamento de Nava já constava em sua tese de doutorado, defendida em 2019, onde recomendou que os Mura aceitassem a mineração e exigissem a participação nos lucros da atividade.
Nava foi secretário de Minas e Energia do Amazonas, atuou como consultor do Ipaam, órgão de licenciamento estadual, e analisou o estudo de impacto ambiental encomendado pela Potássio do Brasil. “Foi o melhor estudo que eu já analisei dentro da minha vida profissional”, declarou durante um debate em março de 2022. E não poupa elogios à mineradora em artigos e entrevistas.
Resistência histórica
Uma carta de 1838, do tenente-coronel Joaquim José Luiz de Souza, comandante da expedição militar ao Amazonas na revolta da Cabanagem, narra o ataque mortal do povo Mura contra as forças coloniais na região conhecida como Lago Soares, em 6 de agosto daquele ano. Além de detalhar a destreza dos indígenas em defender seu território naquela região onde o rio Madeira encontra o grande Amazonas, o informe do tenente coronel também provaria a ocupação secular dos Mura.
A carta do tenente-coronel é apenas uma das provas colecionadas pelo perito em Antropologia do Ministério Público da União (MPU), Walter Coutinho Jr.
“Os Mura que ocupam presentemente o lago do Soares remontam sua ocupação histórica ao indígena João Gabriel de Arcângelo Barbosa, quem teria se estabelecido no local ao tempo da Cabanagem”, diz trecho do estudo antropológico que serviu como base para Justiça Federal exigir o início dos estudos na área ocupada pelos indígenas.
Outro lado
A assessoria de imprensa do Ministério da Indústria e Comércio (MDIC) disse que “Alckmin limitou-se a defender uma solução jurídica para o impasse sobre qual órgão seria competente para decidir a respeito de um pedido de licenciamento ambiental”.
“O vice-presidente e ministro entende, portanto, que a segurança jurídica é uma condição indispensável para atrair investimentos, pois gera um ambiente de previsibilidade para os negócios. Investimentos, sejam na região amazônica ou em outras do território nacional, ocorrerão nos termos da lei, e, sobretudo, com respeito ao meio ambiente”, diz a nota.
O vice-presidente não comentou sobre o encontro com executivos da Potássio do Brasil em São Paulo fora da agenda nem sobre a possibilidade de o projeto estar totalmente dentro de terras indígenas.
A Potássio do Brasil não respondeu aos pedidos de entrevista.