“Eu ando sempre olhando para baixo”. É olhando para baixo que a artista manauara Hadna Abreu anda por ruas, trilhas e galhos, em busca do material certo para retratar sua arte com características amazônicas. Nascida em Manaus, no Amazonas, o hábito foi adquirido na infância, quando tinha um laboratório caseiro próprio com folhas, pedras e insetos. “Eu era uma menina estranha”. Há mais de cinco anos, ela tornou a brincadeira de infância algo profissional, quando passou a acompanhar a pesquisa da cientista Noemia Ishikawa, que identificou, em São Gabriel da Cachoeira (AM), na região do Alto Rio Negro, uma espécie de fungo bioluminescente, a Mycena Cristiane. A descoberta só foi possível com a colaboração com indígenas da região. O fungo chama atenção por emitir luz, como se fosse uma luminária a reluzir os caminhos na floresta.
Com isso, Hadna passou a estudar, ilustrar e criar exposições com base na pesquisa, unindo arte, meio ambiente e ciência. Seus desenhos com aquarela rendem belas peças que mostram as formas e texturas dos cogumelos. A exposição “Amazônia ao Cubo”, de 2021, retratou o impacto sensorial de fungos que fazem “brilhos na floresta” e iluminam os caminhos das populações que pisam na Amazônia.
Formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Hadna é cheia de orgulho do lugar onde nasceu e vive e fala com fervor sobre a defesa do seu território. “A gente precisa ter muito cuidado com colonialismos, porque perder a nossa identidade é muito cruel, seja na arte, no desenvolvimento ambiental, na ciência. Não que não possa conhecer nossa cultura, mas dê valor às pessoas que estão ali”, afirma.
Hadna já foi professora no Centro de Artes da Ufam, ilustrou livros, realizou oficinas de pintura e, atualmente, é curadora da Manart Galeria, que reúne obras artistas manauaras em exposição e para comercialização em diferentes formatos, incluindo quadros, camisas, bottons e cadernos. Acompanhando a pesquisa de Noemia Ishikawa, Hadna também se tornou ilustradora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Em 2017, o livro “Ana Amopö: Cogumelos Yanomami”, ilustrado por ela, foi vencedor do prêmio Jabuti, na categoria gastronomia. O livro é resultado de pesquisas indígenas da região do Awaris, de Roraima, da Terra Indígena Yanomami,com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Nesta entrevista, a artista conta parte da sua trajetória, faz reflexões sobre os desafios de ser artista na Amazônia e a importância da sua identidade, além de comentar sobre a inspiração para o seu trabalho acompanhando pesquisadores da região.
InfoAmazonia – Hadna, me fala um pouco sobre a sua relação com a cidade de Manaus?
Eu sou manauara da gema. Nasci aqui e adoro morar aqui. Apesar do calor, apesar da muita chuva, tudo é muito extremo, mas eu adoro ter nascido aqui na Região Norte. A minha infância na cidade foi bem tranquila, não foi uma coisa nem tão urbana e nem tão floresta. Então era um meio termo. Nas semanas, geralmente, eu saía para balneários com meus pais, essa coisa do manauara mesmo de sair para as extremidades, pegar uma estrada. Na minha casa, tinha um canteirinho feito pelo meu avô e lá ele colocava algumas plantinhas. Uma inclusive que me marcou muito na infância, um cajueiro, que ele plantou na frente da nossa casa e dava muito caju e um caju bem gostoso.
Então nessa época você já se via imersa nessa atmosfera que envolve o contato direto com as plantas e animais?
Sim, eu sempre estava ali fazendo as minhas experiências! Lá, apareciam os insetos, apareciam diversas coisas minúsculas e faziam parte do meu imaginário e que me interessava muito, né? Os meus bichinhos de estimação eram insetos. Era uma aranha, um mosquito, as borboletas que eu caçava e colocava em potinhos. Eu era uma menina meio estranha que gostava dessas coisas, assim, estranhas. Pra gente ter ideia, eu pegava a borboleta e eu encantava as bichinhas, né? Eu domesticava elas para que elas ficassem no meu ombro, na minha testa, onde eu colocava, inclusive levava pra escola isso.
Como foi o seu encontro com a arte?
A minha primeira relação com a arte foi através do meu pai mesmo, meu pai é engenheiro civil, ele desenhava e sempre foi muito criativo. A minha mãe até hoje guarda as cartinhas que ele escrevia para ela e todas elas têm um desenhozinho, né? Ele tinha que fazer as filhas ali terem uma atividade, então ele conseguia fazer isso com a gente porque ele desenha muito bem e ali eu fui tentando também fazer igual. Ele e minha mãe ainda têm meu caderninho, meu primeiro caderninho de primeiros rabiscos assim e tem uns desenhos do meu pai junto. Todo mundo falava: ‘ah, essa menina é uma artista’, mas só na brincadeira né? Afinal de contas, quando a gente é criança todo mundo pensa assim ‘ah, vai ser médico’, ‘vai ser advogada’. Eu estava sempre desenhando na escola também, fazia muita bagunça com o desenho. Tanto o desenho quanto a escrita são muito importantes no meu trabalho. A escrita parece que sempre vem antes do desenho. Quando entrei na Universidade eu já sabia que queria ser artista, mesmo o curso sendo um curso voltado para a licenciatura, eu fui com o foco de exercer a profissão mesmo. Antes de eu formular uma exposição ou uma obra que realmente eu vá mostrar isso para uma pessoa eu desenvolvo em forma de poesia, em forma de pensamento. São várias fases da minha vida que eu vou escrevendo, que eu vou coletando coisas que eu acho no chão, como por exemplo folhas, e aquilo ali vai compondo o meu trabalho. Pode ser que um dia vira uma obra ou pode ser que um dia só virem uma página de caderno, né? Uma página da minha vida.
Hadna, como foi que você começou a retratar a floresta nas suas produções e por que isso não se deu desde o início da sua carreira?
Isso ocorreu numa espécie de dor de cotovelo. Eu quis escapar de cobranças sobre a presença da temática amazônica nas minhas produções, as pessoas sempre perguntavam. Então eu fui para o interior, juntei coisinhas, levei meu caderno, escrevi muito e fui juntando folhinhas, galhos, raízes, fui coletando e colocando isso no meu caderno. Aos poucos aquelas folhas foram sofrendo uma interferência de pintura junto, colocava ali um personagem que estava interagindo com aquelas raízes, com aquelas folhas. Isso virou uma exposição que foi “Imaginário”, em 2015. E lá foi a primeira vez que eu me conectei de fato com a natureza em termos de trabalho artístico, de exposição e a partir de lá eu fui trabalhando com aquarela, mas tudo sem muita amarração ainda. Não é que eu estava afastada da Amazônia, porque eu sempre estive ali conectada, mas para colocar isso no meu trabalho eu tinha que costurar alguma coisa que me atingisse pessoalmente, trabalhar isso com sentimentos e essa viagem me ajudou.
Hadna, você é responsável por retratar uma pesquisa muito importante, que identificou e reconheceu uma nova espécie de fungo na Amazônia, um fungo que chamou atenção principalmente pelo aspecto visual dele, que emite luz brilhante. Me fala sobre esse trabalho?
Há uns anos a Noêmia Ishikawa [responsável pela pesquisa] me procurou para ilustrar um livro dela, depois o ISA também soube do meu trabalho e fiz algumas ilustrações para eles também. Então eu comecei a entrar nesse âmbito, mas era tudo muito poético ainda. E aí eu fui criando uma relação com a Noêmia, fui me interessando e hoje a gente tem uma relação de trabalho muito bacana em que ela me me leva para o laboratório para eu ver os fungos, eu vou com ela para essas coletas também, eu tô dentro da pesquisa dos fungos com ela, também estudo junto. A partir do momento que eu foquei nessa parte dos fungos, eu realmente me vi conectada com o restante da floresta. Essa comunicação dos fungos é um mundo muito abrangente e muito bonito de se fazer reflexões. Eu tenho participado de projetos que une ciência e arte, que trabalha cosmologia, que trabalha com pesquisadores da Amazônia Internacional. Temos pesquisadores e artistas trabalhando ao mesmo tempo como conectar esses dois mundos e fazer reflexões sobre isso. Em 2021 eu também lancei a exposição ‘Amazônia ao cubo’, em que eu trabalho todos esses aspectos visuais dos cogumelos e feito de uma forma muito sensorial. Eu sempre penso a minha exposição como um ambiente de interação, então a pessoa tem que entrar e ela tem que esquecer que ela tá numa cidade, que ela tem problemas. Ela tem que ser outra pessoa depois que sai. Eu misturo isso como se estivesse fazendo receita no liquidificador e coloco sentimento. É dessa forma que uso a arte para mostrar a ciência na Amazônia.
Agora, falando um pouco sobre identidade amazônica, como você observa o impacto dessa identidade no que os artistas produzem?
A identidade é algo natural, é uma coisa que você é e ponto. Nós somos Amazônia e eu acho que a nossa identidade bonita desde a nossa fala, a nossa comida, o nosso jeito de se comportar. Os nossos artistas têm diversas maneiras de expressar essa linguagem amazônica. Eu vejo por exemplo que aqui todos os artistas praticamente têm uma paleta de cor muito mais viva. Tem sempre o amarelo do nosso sol, por exemplo. Mesmo quando eles são artistas distintos, de tempos diferentes, de pensamentos diferentes. Falando de Manaus mesmo, onde eu nasci, Manaus é uma cidade de pedra, mas ao mesmo tempo tem coisas muito bonitas. Tem o porto, a chegada dos alimentos é diferente, a gente tem nossas vivências nas estradas. Temos a convivência também com um rio que é escuro com muitas histórias. Eu vejo que os artistas sempre estiveram nesse lugar de trazer a identidade de onde moram. E, hoje, os debates são mais interessantes, porque temos em maior evidência a fala dos povos indígenas, eles não são mais o objeto de observação do artista. Ele é um artista. Ele é aquele que produz, então esse reconhecimento é muito importante.
Hadna, os artistas de Manaus promoveram recentemente várias manifestações em críticas a ManausCult, que é um dos órgãos municipais responsáveis por gerir a cultura na cidade, de quem você inclusive no passado já recebeu prêmio. Como você avalia esses protestos?
Eu acho que a crítica para um governo é essencial, ela precisa existir. Eu acredito que os nossos governantes precisam estudar um pouco. Estudar um pouco sobre a nossa cultura de fato e não é só aquela cobertura de bolo. Há muita coisa envolvida e é muito conhecimento envolvido que pode agregar e valorizar muito a nossa cidade e a nossa região. Se o prefeito atual não dialoga com as pessoas que produzem a arte, que produzem cultura, eu acredito que a gestão fica muito difícil. Não é por acaso que os artistas estão indo para as ruas fazendo as suas manifestações, é porque o artista sente todos os dias a dificuldade de mostrar o seu trabalho, de sobreviver do seu trabalho, de colocar no mercado o seu trabalho. Nós ainda temos alguns anos com essa gestão e eu acredito que é possível colocar essas questões em jogo, mas o que a gente espera é que essas pessoas sentem com a gente e que aprendam. A pessoa que está à frente de um cargo público que é voltado para a cultura precisa ter um mínimo de formação cultural, seja em qualquer linguagem.
Hadna, ainda existem artistas da região que acreditam ser necessário tentar a vida no sudeste para ter sucesso. Você já quis sair daqui alguma vez?
Primeiro que é uma escolha individual. Acho que cada artista tem uma história e tem os seus sonhos, mas eu acredito muito no potencial daqui da nossa Amazônia, eu não gostaria de sair da Amazônia. Às vezes eu até penso, porque realmente é muito difícil aqui e lá tem as melhores galerias, tem muitos espaços, os cachês são melhores. É muito difícil você lutar o tempo inteiro e resistir, resistir, tem uma hora que cansa, mas isso são momentos. Se eu puder eu não vou sair daqui nunca, como até hoje eu não saí. Eu gosto da comida daqui, eu gosto das pessoas daqui, eu gosto do meu local. Acho que é tudo muito especial.
Hadna, você sendo artista, como enxerga essa constante busca externa sobre o nosso território?
Nós temos os filhos da Terra, isso é fato. A Amazônia é terra, ela é a árvore, ela é planta e tem pessoas que cuidam dela. Não é porque você tem dinheiro que você tem a possibilidade de ter terras e terras aqui, que você se torna dono daqui, que você pode se apropriar da cultura daqui. Tem pessoas que são originárias aqui, são únicas. Que vivem, que sentem, que suam, que nadam no rio, enfim que respiram todo esse oxigênio. A gente precisa ter muito cuidado com colonialismos, porque perder a nossa identidade é muito cruel, seja na arte, no desenvolvimento ambiental, na ciência. Não que não possa conhecer nossa cultura, mas dê valor às pessoas que estão ali. Não é retirar o conhecimento daqui e levar para lá e depois usar aquele discurso ‘nossa que linda a Amazônia’. Tem que valorizar o cultivador daqui, tem que valorizar o indígena que está aqui, as pessoas que moram aqui, os manauaras, os paraenses, os acreanos. Valorizar as pessoas que nasceram aqui de fato.
Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia. A reportagem de Jullie Pereira foi realizada em parceria com Report4theworld, iniciativa da Groundtruth