O Brasil tem mais de oito milhões de alunos matriculados no ensino superior, mas estima-se que apenas dois mil sejam quilombolas. Essa parcela da população é alvo de negligência histórica por parte do poder público e só recentemente foi contemplada com políticas públicas que possibilitaram o acesso dela às universidades. No Pará, estado que abriga a região conhecida como Palmares da Amazônia, existe o Processo Seletivo Especial Quilombola (PSEQ), iniciativa da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) resultante de anos de luta de movimentos e organizações, que se fez possível através de ações afirmativas do governo federal. Mas, torná-lo prático e funcional, dentro da realidade que cerca esta população, envolve outros processos de luta.
“O PSEQ foi uma política conquistada e não foi tão simples, foi bem dificultoso, foram muitas reuniões, embates políticos, mas nós não desistimos, porque entendemos que era preciso lutar por ela. Não é tão simples consegui-la e fazer com que ela se concretize de fato”, explica o presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (Foqs), Mário Augusto Pantoja de Sousa. Ele destaca, ainda, que a integralização do PSEQ na Ufopa foi um processo de construção coletiva, entre a instituição e a Foqs, que começou em 2013 com lideranças históricas como Dileudo, Raimundo Bena, João Lira e Aldo do quilombo de Saracura, em busca do direito pelo acesso à educação.
Após a candidatura ao processo seletivo, a Foqs faz o acompanhamento dos candidatos, auxiliando com a documentação e declarações necessárias para o ingresso na universidade. “É importante entender que o PSEQ é de fundamental importância para os jovens que estão dentro do território concluindo os seus estudos e partindo para o lado acadêmico”, explica Mário Augusto.
O Pará é um dos poucos estados da Amazônia Legal onde universidades possuem um processo seletivo com reserva de vagas específicas para quilombolas. Além dele, somente o Tocantins e o Mato Grosso destinam vagas dessa forma. No Pará, além da Ufopa, a Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, também possui processo seletivo especial.
De acordo com levantamento feito pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), até 2019, das 383,3 mil vagas ofertadas pelas universidades federais e estaduais do país, apenas 2 mil foram destinadas exclusivamente para quilombolas. Sendo assim, apenas 20% das universidades do Brasil possuem cotas para quilombolas.
Na Amazônia Legal foram 876 vagas destinadas para o grupo. O levantamento é pioneiro e exclusivo, porque nem mesmo o Censo do Ensino Superior, organizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), inclui o grupo.
Essas iniciativas de reservas de vagas para quilombolas não são uma exigência federal, mas foram todas organizadas pelas universidades com resoluções próprias, fruto de cobranças feitas pelos quilombolas.
Essa defasagem leva a um atraso na formação e na emancipação. Foi só em 2012 que o Brasil teve sua primeira doutora quilombola, por exemplo. Edimara Gonçalves Soares, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) apresentou a tese “Educação escolar quilombola: quando a política pública diferenciada é indiferente” e hoje é uma referência na área educacional.
Foi em 2021 que a primeira quilombola mestra em Direito conseguiu passar num doutorado. Vercilene Francisco Dias, quilombola do território Kalunga, de Goiás, passou no doutorado em Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Impacto da política de acesso
Belliny Valente, quilombola do território de Pea-Fú, localizado no município de Monte Alegre (PA), é um exemplo desta política de acesso. Ele foi o primeiro do seu território a ingressar no ensino superior, o destino foi o bacharelado em Antropologia, na Ufopa, em 2015, através do PSEQ. “Ocupar esse espaço faz parte de um longo processo de resistência e luta por igualdade. Sempre que dialogamos sobre nosso acesso e permanência na universidade, colocamos em pauta a importância de um retorno para a nossa comunidade e, reforço, que isso me motivou na escolha de estudar Antropologia, com o objetivo de aprofundamento sobre nossa dinâmica cultural, identidade e ancestralidade”, disse Belinny.
O antropólogo também aponta o distanciamento físico do território como fator que exige atenção para a manutenção da permanência de alunos quilombolas na universidade.
A dificuldade de acesso é só a primeira barreira para um aluno quilombola, pois, quando aprovado, ele precisa deixar o território e mudar para a sede do município, ou até mesmo de município, para estudar na sede da instituição de ensino. Via de regra, eles vêm de famílias de renda menor e precisam de auxílio para se manter em outra cidade e ingressar na universidade pelo processo especial não garante nenhum tipo de bolsa. Nos governos Temer e Bolsonaro, a situação ficou ainda mais difícil com o desmantelamento de políticas públicas. Muitos alunos ingressantes do ano de 2020, 2021 e 2022 na Ufopa continuam sem receber qualquer tipo de auxílio para se manterem na faculdade.
Este é um dos principais fatores para a desistência de muitos, por falta de recursos ou até mesmo pela distância da família. Essa situação tem recebido atenção especial das universidades, coletivos e centros acadêmicos de alunos quilombolas (CEQs), que, na prática, funcionam como um diretório acadêmico, uma rede de apoio para os alunos quilombolas e também para aqueles que ainda estão tentando ingressar na universidade. Eles, ainda, defendem direitos e promovem atividades que valorizam a cultura afro-brasileira dentro da universidade.
Território e educação
O reconhecimento do território também é uma questão que influencia diretamente no acesso dos quilombolas à faculdade, pois algumas instituições exigem a comprovação de nascimento e vínculo com o local, o que implica, também, no reconhecimento formal por parte do governo da existência do quilombo. Nem todos os quilombos são territórios formalmente demarcados e reconhecidos pelo governo.
A situação, inclusive, tem impulsionado estudantes quilombolas a iniciarem suas próprias pesquisas de documentação sobre a história dos seus territórios e, até, de quilombolas na Amazônia e no Brasil.
É o caso do trabalho de conclusão de curso do Belliny, que documentou a história do seu território. “Meu trabalho de conclusão, eu coloco ele assim a frente até mesmo do curso, porque foi onde eu consegui homenagear minha avó, homenagear os curandeiros e benzedeiras do município de Monte Alegre, e isso pra mim foi o maior orgulho. Nasci e me criei em religião afro-brasileira, e em todas minhas caminhadas é essa força ancestral que me mantém de pé. Aprendi muita coisa na universidade, no meu curso, mas também compartilhei muito da minha vivência, do meu território. Sempre que faziam algum debate, algum evento, eu sempre fiz questão de colocar em pauta religiões afro que muitas vezes são esquecidas, até mesmo nos eventos quilombolas”, relatou Belliny.
É o caso também da Jamilly de Souza, autora da pesquisa “A Festa de São Benedito no bairro da Praça 14”, que conta a história do primeiro quilombo urbano da Amazônia, situado em Manaus, capital do Amazonas. A pesquisa compõe ainda uma obra chamada “O fim do silêncio: presença negra na Amazônia”, que reúne artigos de pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) que se debruçam sobre a presença do povo negro na Amazônia.
Em 2020, o selo Sueli Carneiro lançou ainda o livro “Mulheres quilombolas: territórios de existências negras femininas”, que reúne a história de 18 mulheres quilombolas que ocupam territórios diferentes no Brasil e contam sobre a luta por seus territórios e as dificuldades enfrentadas por questões de gênero.
Os quilombolas não possuem um Censo demográfico próprio e não estão inclusos nos levantamentos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem acesso às informações específicas sobre o número de famílias quilombolas no Brasil ou mesmo sobre o número de comunidades e territórios certificados, cabe aos estudantes fazerem os registros de sua própria história, evitando o apagamento dos seus ancestrais. Existe a expectativa de que o primeiro Censo Quilombola do país seja lançado neste ano. O IBGE iniciou o levantamento em agosto do ano passado.
Identidade cultural e racismo
Uma das preocupações levantadas pela Foqs é que os estudantes não percam sua identidade cultural, por isso, a federação busca realizar a conscientização dos alunos para que eles se sintam à vontade para ocupar as universidades enquanto quilombolas. Esse trabalho também empodera os alunos para lidar com casos de racismo, que alguns não chegam a formalizar denúncias por receio de represálias.
Segundo a Foqs, os alunos são orientados, durante ou após terem concluído seus estudos, a trazerem benefícios em termos de evolução e de conhecimento para dentro do território, de acordo com o seu curso acadêmico.
Durante sua trajetória acadêmica, Heloina procurou participar de projetos e pesquisas que pudessem dar um retorno a sua comunidade como no seu TCC, intitulado “O Racismo institucional e a titulação de um território quilombola dentro da zona urbana de Santarém: o caso do quilombo de Maicá”, para dar visibilidade à situação do seu território. Maicá é parcialmente titulado pela prefeitura de Santarém, porém não conta com nenhum tipo de política pública do governo municipal, que cria entraves de acesso dos moradores a serviços básicos e fundamentais.
Em seu mestrado, Heloina pretende pesquisar sobre a “Invisibilidade das comunidades quilombolas de Santarém no processo de licenciamento dos Portos do Maicá”. Ela conta que, quando estava terminando seu TCC, sua orientadora a incentivou a escrever um projeto de pesquisa, e se inscreveu no mestrado mesmo com muita insegurança, e somente após ter sido aprovada em todas as fases e com a divulgação do resultado final foi que Heloina contou à sua família.
“O meu ingresso no mestrado, não foi uma conquista só minha, mas da minha comunidade, da minha família e dos inúmeros professores da Ufopa que nos incentivam a continuar nossa carreira acadêmica, como por exemplo a professora Judith Vieira e o professor Luiz Fernando de França”, disse Heloina ao TdF.
Belliny e Heloina retratam, na prática, como é a vida acadêmica de um aluno quilombola: ambos venceram todas as dificuldades, seja de acesso, adaptação e permanência. Infelizmente muitos outros não conseguem e acabam desistindo do curso.
“Na minha opinião esse índice [de desistência] cresceu na Ufopa entre os anos de 2018 a 2022, quando o governo Bolsonaro cortou verbas destinadas ao pagamento da bolsa permanência dos estudantes. Como eu vou estudar sem ter dinheiro pra pagar meu transporte, minha alimentação, meu aluguel. Isso causa impacto muito grande, porque sem dinheiro o estudante tem que retornar pra comunidade, tem que procurar um emprego e desistir do seu sonho”, comentou Heloina.
Aliado a isso, outro fator de desistência é a dificuldade de aprendizado do estudante quilombola, que na maioria das vezes teve um ensino precário nas escolas quilombolas. “Quando ele vai explicar sua realidade ao professor, pedir um suporte, o professor diz que ‘o lugar dele não é ali’”, acrescentou Heloina.
“É difícil ver e saber que um colega quilombola desistiu do curso, porém isso somente demonstra que a Ufopa ainda não tem todo o suporte necessário para atender as especificidades dos estudantes quilombolas e ainda não tem mecanismos eficazes para combater o racismo institucional”, pontuou Heloina.
Avaliando todo esse contexto acadêmico, a conclusão do curso se torna sinônimo de luta, resistência e vitória não só para os alunos, mas para todo o território quilombola. Para Belliny, uma das suas maiores conquistas foi o de motivar outras pessoas, outros “irmãos quilombolas” através da conclusão de seu curso.
Essas histórias são exemplos do que milhares de alunos quilombolas vivenciam todos os dias por todo país, cada um com sua especificidade, com sua luta, mas com objetivos comuns, oportunidade de melhorar de vida. O panorama apresentado demonstra que ainda é preciso evoluir quando falamos sobre políticas públicas, quando falamos sobre igualdade de oportunidade, em um país que foi construído sob um sistema racial preconceituoso, onde alguns grupos étnicos se sentem superiores a outros. É preciso entender que as cotas, o PSEQ, não são favores, privilégios, facilitações e nem boa vontade do governo, mas um direito conquistado após anos de luta por reparação histórica.
*Colaborou Jullie Pereira
Este conteúdo foi produzido como parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos produzidos por mídias amazônicas.