Como forma de combater a repetição dos crimes de genocídio praticados na ditadura militar, procuradores, indígenas e ativistas dos direitos humanos defendem a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade.

A tragédia humanitária do povo Yanomami, vitimado pelo garimpo, fome extrema e doenças curáveis promovida  pelo governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, trata-se de uma repetição. Mais uma vez são os corpos Yanomami que, expostos ao mundo para denunciar o holocausto,  simbolizam  o horror de um projeto político com aspirações genocidas. 

Desde o momento em que a Ditadura Militar (1964-1985) facilitou a chegada do garimpo nas terras Yanomami, com o Projeto Radam e a abertura das rodovias BR 210 e BR 174, a sombra do genocídio não se desfez por completo e nos últimos anos se impôs como um eclipse total dos direitos básicos deste povo. 

Bruce Albert/Acervo ISA
1975 – Grupo yanomami caminha pela rodovia BR-210, a Perimetral Norte

É fortalecendo a necessidade de reparar os povos vitimados pelas violações e violências do passado, e para garantir que as tragédias não se repitam no presente e no futuro, que em dezembro de 2022 o Ministério Público Federal (MPF) divulgou nota técnica sobre a necessidade da criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV).

A comissão é uma das 12 recomendações do relatório final do Capítulo Indígena da Comissão Nacional da Verdade (CNV). “O trabalho da CNV foi limitado, só tateou (a questão indígena), investigou algumas situações, e não teve a capacidade de afirmar em seu relatório as milhares de mortes dos indígenas como vítimas da Ditadura Militar. É uma incoerência que precisa ser solucionada pela CNIV”, diz o procurador da República Marlon Weichert.

Não se trata de coincidência o general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI) durante a gestão Bolsonaro, ter autorizado sete projetos para o garimpo de ouro na Amazônia. A decisão foi tomada por ele em nome do Conselho de Defesa Nacional e se soma a o projeto de militarização da Funai

Se colocada em curso, a CNIV deve tratar de casos como o dos Yanomami e, estima-se, centenas de outros,  crimes contra os direitos humanos contra essas populações que nunca foram reparados e, como consequência, não foram criados mecanismos de não repetição.

O que o MPF, indígenas, indigenistas e ativistas de direitos humanos defendem com a CNIV é que as investigações dela sejam matéria  para a Justiça de Transição, uma doutrina jurídica que se refere ao conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas como reparação das violações de direitos humanos – com destaque para períodos de ditaduras militares.  

O período Bolsonaro é uma espécie de soluço autoritário de projeto militarista conduzido por um presidente que quando deputado saudou o maior torturador da ditadura, o Brilhante Ustra

Marlon Weichert, procurador da República

“Nós só tivemos esses últimos quatro anos porque não tivemos Justiça de Transição no momento oportuno. O período Bolsonaro é uma espécie de soluço autoritário de projeto militarista conduzido por um presidente que quando deputado saudou o maior torturador da ditadura, o Brilhante Ustra. Por que ele não foi cassado por essa declaração?”, questiona Weichert.

O procurador da República Edmundo Antônio Dias, que assina a nota técnica do MPF, ressalta que “a confirmação da criação do Ministério dos Povos Indígenas pelo governo federal traz a oportunidade para o aprofundamento da proposta e da incorporação da instituição de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade no plano de ação da nova gestão”.

Ele destaca o agravamento, nos últimos quatro anos, da situação de violações aos direitos dos povos indígenas, por ação do Estado e de agentes privados, diante da leniência governamental.

“Esse contexto recente de ataques aos povos indígenas é indissociável do histórico de atentados aos direitos das populações originárias ocorridos durante a ditadura militar”, diz.

Os procuradores da República defendem que a CNIV esteja alocada no Ministério dos Povos Indígenas porque entendem que para ela acontecer é preciso respeitar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ou seja, é preciso que os indígenas definam como as investigações devem ser feitas.

Realizar a consulta prévia é a diferença fundamental, no campo da Justiça de Transição, entre casos de indígenas e não -indígenas, tendo como caso exemplar o dos desaparecidos e mortos políticos pela Ditadura Militar.

“Alguns povos lidam com a morte através do esquecimento. É preciso esquecer os mortos para que se siga adiante. Esse é um trabalho de resgate da memória. Como fazer? Então a própria construção da ideia precisa partir de uma consulta prévia. Por isso trabalhamos com o Ministério dos Povos Indígenas”, explica Weichert.

O Ministério criado há pouco mais de um mês e com atribuições em definição, a equipe da ministra Sônia Guajajara planeja, nos próximos meses, levar adiante a discussão sobre a criação da CNIV.

CNIV: crimes passados e atuais

Conforme o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do relatório final da CNV, publicado em 2014, estima-se que 8.350 indígenas foram mortos no período investigado (1946-1988). Mas o número deve ser ainda maior já que apenas 10 entre os 305 povos participaram da investigação.

O trabalho dessa comissão é encarado por defensores dos direitos indígenas e procuradores da República como o marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos pelo histórico de violações.

Ligia Simonian, 1987 / Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Famílias Krenak na Fazenda Guarani retiradas à força de suas terras.

A comissão também é tratada como uma forma implícita de reparação, mas por si só não é o instrumento que impedirá a repetição das violações. Marcelo Zelic, coordenador do projeto Armazém Memória, que possui quase 2 milhões de páginas de acervo histórico online, destaca a ação civil pública a respeito da reparação envolvendo o campo de concentração chamado Reformatório Krenak

“A Justiça de Transição vem sendo entendida como uma forma de garantir direitos. Inclusive pelos povos indígenas. Em Minas Gerais, no caso do Reformatório Krenak, o MPF conseguiu fazer dessa ação civil pública uma reparação inclusive com a juíza decidindo na sentença do processo pela demarcação da Terra Indígena Krenak“, destaca Zelic.    

No entendimento do MPF, a CNIV “há de ser essencial para a construção dos alicerces do processo de efetivação dos direitos dos povos indígenas no país”. As reparações devem incluir o reconhecimento e a proteção de seus territórios.

“É preciso que haja amplo e público conhecimento das violações de direitos perpetradas contra os povos indígenas no Brasil, e sob quais condições sociais, políticas e econômicas tais violações aconteceram, de forma a se construir políticas reparatórias e reformas institucionais aptas a garantir os direitos dos povos originários no país”, diz trecho da nota.

A nota técnica do MPF engloba os quatro pilares da Justiça de Transição: o binômio verdade/memória, reparação, responsabilização e a reforma das instituições. A CNIV não seria a garantia imediata destes quatro pilares, que reunidos e em prática efetiva podem garantir a não repetição de genocídios.

“A CNV e a CNIV são comissões de investigação. Entregam relatórios e esses documentos ficam abertos à sociedade, com a verdade revelada. A CNIV visa render outros frutos, que são ações judiciais no escopo da Justiça de Transição e então entrar no campo das reparações e dos mecanismos de não repetição”. Quem explica é a advogada Maíra Pankararu. Ocorre que para ela a CNIV hoje se desdobra em importância não apenas para reparar os crimes de um determinado período de arbítrio, mas também os praticados por Bolsonaro.

“Bolsonaro se comportou como os militares da ditadura, colocou em curso aquela ideia do fim dos povos indígenas e a CNIV é uma forma de aprofundar o que Bolsonaro fez em interface com o passado autoritário. São crimes que não podem se repetir mais”, salienta.  

Bolsonaro se comportou como os militares da ditadura, colocou em curso aquela ideia do fim dos povos indígenas

Maíra Pankararu, advogada

A advogada cita os números levantados pela CNV para mostrar que os indígenas foram os que mais morreram durante o período de abrangência do Golpe de 1964. Ela lembra que os números, porém, foram tratados pela própria CNV como subestimados.

“Durante a gestão Bolsonaro, nós indígenas voltamos a ser os que mais morreram: desta vez na pandemia. Podemos falar de um genocídio perpetrado pelo Bolsonaro. Ele passou todo o tempo nos colocando como atrasados, um entrave ao desenvolvimento, autorizou e incentivou garimpos, tratou as terras indígenas como um espaço a ser recuperado por um nacionalismo desvirtuado”.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ordenou no dia 30 de janeiro que autoridades da gestão de Jair Bolsonaro sejam investigadas por crime de genocídio de indígenas e desobediência de decisões judiciais.

“Tais fatos e os demais noticiados nos autos ilustram quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos, com a participação de altas autoridades federais”, afirma Barroso em seu despacho. Jair Bolsonaro já responde, pessoalmente, a processo por crime contra a humanidade.

Em setembro de 2022, a sentença do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) que condenou o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade durante a pandemia de Covid-19 foi anexada à denúncia feita pela Comissão Arns e pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que já corre no Tribunal Penal Internacional (TPI), o Tribunal de Haia.

O assassinato de 16 Yanomami por garimpeiros, em 1993, conhecido como “Massacre de Haximu”, é o único caso do crime de genocídio confirmado pela Justiça brasileira.

Não repetição: o principal desafio

O procurador Weichert destaca que as medidas de reparação devem manter o olhar na não repetição. “Na questão indígena, a não repetição é fundamental. Inclusive com as notícias horrorosas de hoje sobre os Yanomami), entender qual a conexão desses últimos quatro anos com os 21 da ditadura”, ressalta.  

Para Marcelo Zelic, é preciso perceber que o que vivemos de retrocesso com a política indigenista nos últimos quatro anos é senão a própria abordagem militar aplicada a políticas de Estado, na medida em que Bolsonaro inflou de militares a gestão pública, inclusive órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai).  

“É o pensamento de que ou os indígenas se adaptam ou são eliminados e que vem se repetindo desde a Colônia. Eles não podem existir conforme seus usos e costumes, sua própria cultura e, acima de tudo, com o território autodeterminado. Não repetir esse pensamento se mostra como um importante desafio”, pontua.    

A engenheira florestal e pesquisadora Suliete Baré tem trabalhado em relatórios produzidos pela equipe do Armazém Memória a partir dos acervos indigenistas digitalizados e disponibilizados pelo portal. Em suas pesquisas, se depara com documentos que revelam um quadro de sucessivas repetições de violações de direitos, sendo o território um direito dos mais violados pelo Estado, seus agentes ou por inação.   

“Em 1978, por exemplo, descobri que quem se responsabiliza pela demarcação da Terra Indígena Myky (no Mato Grosso) é o próprio fazendeiro que invadiu as terras. Ele se mete a dizer qual é o tamanho da terra do povo. E hoje nos deparamos com a situação de que o território Myky é menor do que o reivindicado, existe essa demanda pendente. O que gera conflito”, explica Suliete. 

Casos como o dos Myky, em que o Estado sob a Ditadura Militar autorizou a grilagem de terras, seguem se repetindo. Como Suliete destaca, desta vez sob o governo Bolsonaro: “a Instrução Normativa 09 da Funai, de 16 de abril de 2020, facilitou a grilagem ao declarar que pessoas não-indígenas podem possuir e declarar posse de lotes de terras indígenas que estejam em disputa judicial”. 

A indígena lembra que por mais que agora, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva, a instrução 09, entre outras, pode cair, de abril de 2020 para cá centenas de hectares de terras indígenas foram invadidos, violências foram perpetradas contra os povos ocupantes e mais demandas judiciais serão mobilizadas retardando a saída de quem se aproveitou da instrução.    


Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.

Sobre o autor
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Renato Santana

Jornalista com mais de uma década de trabalho entre povos indígenas e cobertura de questões socioambientais e de direitos humanos. Trabalhou na imprensa sindical e em jornais diários. Colaborou com...

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