Infoamazonia teve acesso exclusivo a documento que comprova lista de 25 que deixam cargos de confiança, entre militares e policiais. No governo Bolsonaro, só 2 das 39 coordenações regionais eram chefiadas por servidores de carreira.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai: Órgão federal criado em 1967 e responsável pela execução das políticas de proteção e de promoção dos direitos indígenas em todo o território nacional.) prepara uma reorganização interna do primeiro escalão após ter tido um número recorde de militares e policiais ocupando cargos de confiança dentro do órgão. Entre as mudanças prioritárias está a retirada de ao menos 25 pessoas indicadas pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, que ficou três anos na presidência da Funai de Jair Bolsonaro, e foi exonerado em 28 de dezembro. Desses cargos, 21 foram coordenadores regionais em 10 estados e, entre eles, estão oito capitães da reserva do Exército, um subtenente, um sargento, um fuzileiro da marinha e um policial militar.
Prestes a ser chefiada pela primeira vez na história por uma mulher indígena, a advogada e ainda deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), a Funai vem passando por mudanças desde o início do governo do presidente Lula (PT). A lista de 25 nomes de confiança da gestão anterior da Funai já encaminhados para exoneração e dispensa (no caso de servidores) foi obtida com exclusividade e confirmada pela reportagem com servidores do órgão. Os nomes são conhecidos entre os efetivos e, além disso, o quadro de servidores da Funai é pequeno.
De saída do Ministério da Justiça para o inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o órgão está sob a presidência substituta da servidora de carreira Maria Janete Albuquerque de Carvalho, filha do indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho e sem ligação com a gestão de Jair Bolsonaro. Foi sob sua assinatura que nos Diários Oficiais da União de quarta-feira (18) e quinta-feira (19) foram publicadas parte das primeiras mudanças no quadro da Funai: sete dispensas, e 11 nomeações de servidores como substitutos para cargos em coordenações gerais e regionais, gabinete da presidência e procuradoria. A reportagem apurou que os nomeados são servidores que ficam como substitutos até que titulares sejam nomeados pela nova presidência do órgão.
Mudanças além dos cargos
As mudanças vão além dos servidores e gestores. Na terça-feira (17), a Funai e o Ibama revogaram a normativa 12 de 2022 que permitia a extração de madeira em terras indígenas até mesmo por não indígenas, outra herança da gestão Bolsonaro/Xavier.
Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que, desde a transição de governo, as lideranças do movimento indígena estão cobrando a retirada de militares de cargos estratégicos da Funai, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Educação Indígena. A indicação é para que esses cargos sejam ocupados por profissionais indígenas.
“Pedimos a exoneração de todas essas pessoas e que sejam dadas oportunidades para o protagonismo de indígenas qualificados, técnicos, políticos, que consigam assumir essas pastas e consigam dar uma ‘cara’ mais indígena dentro do atual governo”, disse Kleber Karipuna.
Ele considera que o momento de criação do MPI é histórico e disse que a Apib também discute com o novo governo uma agenda positiva junto aos povos indígenas. A Apib entregou ao presidente Lula uma lista tríplice para a nomeação no ministério. Além de Sônia Guajajara, já empossada, estavam Joenia, que deve ser empossada em fevereiro na Funai, e Weibe Tapeba, primeiro indígena a comandar a Sesai.
“Nunca na história a gente tinha sido convidado e também composto uma transição de governo. Eu diria também que não foi apenas um simples convite. Também tivemos que incidir diretamente para poder ter acesso a esses espaços de debate”, ressaltou Karipuna.
E ele completa: “estamos propondo retomar a implementação da PNGATI [Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas], que foi uma das políticas que mais se construiu coletivamente em conjunto com os povos indígenas. A gente não teve nem tempo de conseguir implementá-la. Ela foi decretada em 2012 e na sequência aconteceu tudo que aconteceu, até os dias de hoje”.
Ele avalia que os últimos anos de governo Bolsonaro podem ser resumidos a “muito pouco”: “foi uma política de muito retrocesso, de muita perseguição. Retrocesso porque tudo o que ajudamos a construir coletivamente lá atrás, ficou inerte, paralisado ou foi extinto. É o caso do Conselho Nacional de Política Indigenista que ficou paralisado esses anos todos, do Comitê Gestor da PNGATI, que foi extinto e era formado por indígenas e não-indígenas dentro da Funai com Ministério do Meio Ambiente para ajudar a tocar na prática a PNGATI, assim como outras políticas que foram paralisadas”.
Os ‘25 prioritários’
Na lista dos agora ex-coordenadores regionais da Funai estão Raimundo Pereira dos Santos Neto, capitão do Exército reformado, que respondeu pela Coordenação Regional Kayapó-Sul do Pará. Em 2021, a revista Piauí apontou ligação dele com um conhecido garimpeiro ilegal da região. A reportagem revisou documentos sobre o caso da base instalada às margens do rio Iriri em apoio aos Kayapó, mas que oito meses mais tarde foi encontrada servindo de base de apoio para garimpeiros ilegais da Terra Indígena Menkragnoti, e foi destruída por fiscais do Ibama: Autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente responsável por fiscalização, licenciamento e outras funções na área ambiental..
Outro militar que agora deve sair de cena é o ex-capitão da reserva do exército Álvaro Luís de Carvalho Peres. Ele esteve à frente da Coordenação de Barra dos Garças-MT, ponto central para o controverso projeto Agro Xavante, que criou uma cooperativa agrícola para o monocultivo de arroz dentro do território dos Xavante. Em 2022, ele também foi gravado falando sobre a possível legalização de garimpo e extração de madeira em terras indígenas junto com o então presidente da Funai, Marcelo Xavier.
Além de Santos Neto e Carvalho Peres, outros coordenadores a serem exonerados são os também capitães da reserva do exército: Valdir Rollof, da Coordenação Regional de Dourados-MS; José Patta Moreira, da Coordenação Regional de Ponta-Porã; José Ciro Monteiro Junior, da Coordenação Regional Alto Purus; Adalberto da Conceição Oliveira, da Coordenação Regional Baixo Tocantins; Osmar Gomes de Lima, da Coordenação Regional Araguaia Tocantins; e Francisco Emanoel Cunha Sousa, da Coordenação Regional Nordeste II.
Outros militares da lista são: Martim Correia de Freitas, sargento da reserva do Exército, da Coordenação Regional Tapajós; Feliciano Borges Neto, subtenente do Exército, da Coordenação Regional Rio Negro; Jorge Gerson Baruf, fuzileiro naval da reserva da Marinha, da Coordenação Regional Alto Solimões; e Ilton Lima da Silva, policial militar, da Coordenação Regional Amapá e Norte do Pará.
A Infoamazonia também teve acesso a um e-mail enviado aos 25 ex-chefes, informando que eles tiveram as exonerações e dispensas solicitadas e confirmou o conteúdo da mensagem com um servidor. O e-mail foi disparado no início desta semana pela Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas e diz aos destinatários que eles tiveram as exonerações e dispensas solicitadas a partir de 18 de janeiro, mas que por atrasos na tramitação dos pedidos, os atos podem demorar a sair no DOU.
Fim da ‘Funai anti-indígena’
“Acabou a era militar, são novos tempos”, disse à Folha de São Paulo a nova ministra Sonia Guajajara logo após ter sido anunciada para o inédito Ministério dos Povos Indígenas.
“Os cargos que foram ocupados por bolsonaristas, nós vamos retirar todo mundo que estava no comando”, disse Joenia Wapichana ao g1 ao prometer um “renovaço geral”, no ato de retomada simbólico na Coordenação Regional da Funai em Roraima em 6 de janeiro – a sede da Funai em Brasília também foi retomada, em 2 de janeiro.
Em junho de 2022, o dossiê Fundação Anti-Indígena, produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Indigenistas Associados (Ina), denunciou em quase 200 páginas a situação do órgão, entre elas, a militarização sem precedentes e esvaziamento do quadro, com só 2 das 39 Coordenações Regionais da Funai ocupadas por servidores públicos – 19 delas por oficiais das Forças Armadas; 3 por policiais militares; 2 por policiais federais; e o restante por servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública.
O dossiê, resultado de três anos de monitoramento da gestão Bolsonaro na Funai, também concluiu que a Funai implementou uma política anti-indigenista caracterizada pela não-demarcação de territórios, perseguição a servidores e lideranças indígenas, esvaziamento orçamentário, assédio institucional, alinhamento com a agenda ruralista e omissões na esfera judicial.
“O que se alinhava à ideologia desse governo, ele se somava para a destruição. E a política indígena, discutida com os povos, ficou totalmente paralisada nesses últimos 4, 5 anos, e até mesmo sendo esfacelada”, completou Kleber Karipuna, da Apib. “Para além da militarização dos órgãos houve um processo de perseguição tanto a profissionais indígenas e não-indígenas que de alguma forma se alinhavam ao movimento indígena. Eram perseguidos, eram ameaçados, uma pressão psicológica sobre essas pessoas, tanto na sede em Brasília, tanto na Funai, como na Sesai, nas regiões, dentro dos Dseis [Distritos de Saúde, vinculados à Sesai] e dentro das coordenações regionais da Funai com a política de perseguição”, disse.
Na cerimônia de posse de Sonia, a deputada federal e também liderança indigena Célia Xakriabá (PSOL-MG) foi quem fez a fala de abertura. Fez questão de marcar, que naquele momento, 523 anos desde o início da colonização do Brasil, a criação do
MPI é o início de uma reparação histórica. “Esse ministério é novo, mas na verdade é ancestral”, disse.
Estrutura da Funai
- Órgão federal responsável pela política indigenista brasileira, a Funai foi criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967.
- Até dezembro de 2022, conforme a Informação Técnica nº 87/2022/CODEP/CGGP/DAGES-FUNAI, o quadro da Funai contava com 2360 servidores, dos quais só 1.359 efetivos.
- A Funai tem 293 unidades descentralizadas do órgão, sendo 39 Coordenações Regionais , 11 Coordenações de Frente de Proteção Etnoambiental e o Museu do Índio), e 242 microunidades (240 Coordenações Técnicas Locais; o Centro Cultural Ikuipá em Cuiabá e o Centro Audiovisual em Goiânia.
Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.