Alvo da exploração mineral e da ocupação irregular de assentamentos promovidos pelo Incra durante a Ditadura Militar, a Terra Uru-Eu-Wau-Wau segue sofrendo com invasões, desmatamento e esbulho que contam com a falta de fiscalização do Estado brasileiro.

No contexto de uma disputa eleitoral acirrada, aldeias indígenas de todo País viveram nos últimos meses ataques vorazes de seus invasores. A cobiça desse período reflete o que podem ser os últimos dias de uma política de Estado inspirada na Ditadura Militar que se eximiu sistematicamente de suas obrigações de fiscalização territorial e estimulou o avanço de interesses anti-indígenas. Como exemplo desse modelo de política indigenista, despontam as violações contra a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau.

Homologada em 1991 com quase dois milhões de hectares pelo ex-presidente Fernando Collor, a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau é sobreposta ao Parque Nacional de Pacaás Novos, a maior unidade de conservação de Rondônia. O território é ocupado por aproximadamente 200 indígenas : Os povos que vivem hoje na TI Uru-EU-Wau-Wau são Amondawa, Isolados Bananeira, Isolados do Cautário, Isolados no Igarapé Oriente, Isolados no Igarapé Tiradentes, Juma, Kawahiva Isolado do Rio Muqui, Oro Win e Uru-Eu-Wau-Wau e ainda abriga grupos em isolamento voluntário. Apesar de ser reconhecida como área de proteção ambiental, a região é uma das mais impactadas pelo agronegócio e pela exploração ilegal de madeira.

CCCA
Aldeia Jamari na TI Uru-Eu-Wau-Wau

As violações atuais, endossadas pelos discursos e ações do presidente Jair Bolsonaro, contudo, são fruto de um histórico de invasões e ações ilegais que foram intensificadas no período da Ditadura Militar, quando houve a interiorização do Brasil, com a implantação do Plano de Integração Nacional (PIN) : Gestado no governo Castelo Branco, Plano de Integração Nacional (PIN), teve início no ano de 1970 com ditador general Emílio Garrastazu Médici e seus principais objetivos eram implementar grandes obras de infra-estrutura e colonizar seus entornos com latifúndios e assentamentos, gestado desde o governo do ditador general Castelo Branco para expandir as fronteiras internas do Brasil, criando cidades, ampliando negócios, rodovias e o escoamento de matérias-primas. 

Foi nesse período que se enraizou no imaginário dos brasileiros a visão de que a Floresta Amazônica é um território a ser explorado. Se a lógica do colonizador norteou historicamente a interiorização do país desde a chegada dos invasores portugueses ao Brasil, foi na Ditadura que ela ganhou um pacote ideológico mais ambicioso, incluindo peças de propaganda que se mantêm vivas até hoje, mesmo para aqueles que nasceram depois, como os slogans “integrar para não entregar” e “terra sem homens para homens sem terra”, ignorando a vida que já habitava em muitos desses territórios. 

A marcha ao interior do país significou assassinatos, perseguições, criminalizações, prisões e torturas de lideranças indígenas que lutavam por seus territórios ou que tivessem comportamento considerado “inadequado” frente à política de desenvolvimento do governo posto. No caso dos Uru-Eu-Wau-Wau, gerou contato antecipado, mortes, intervenções para construção de estradas e um histórico de ocupação irregular das suas terras tradicionais.

Em documento entregue ao então Ministério do Interior em 1983, intitulado “Providências urgentes para a defesa dos Uru-Eu-Wau-Wau e Uru-Pa-In” , os antropólogos Betty Mindlin e Mauro Leonel apontam que o contato antecipado, sem planejamento, com os povos da região – ocasionado pela ampliação dos conflitos – gerou redução significativa da população indígena – “as menos atingidas foram reduzidas à metade” – e resultou no início dos processos de demarcação da TI.

Reprodução Armazém Memória
O Jornal Porantim destaca que mesmo depois da Constituição de 1988, o Estado investia contra A TI Uru-Eu-Wau-Wau

“Pelo menos há duas décadas estas comunidades confrontam-se esporadicamente com os seringueiros, mateiros, colonos, garimpeiros e pesquisadores de minério que perambulam pela região. (…) A repetição dos confrontos obriga o então presidente da Funai, Ismarth de Araújo Oliveira, a declarar uma área de 879.800 ha no município de Guajará-Mirim, considerando-a área dos índios Uru-Pa-In e Uru-Eu-Wau-Wau”, descrevem os antropólogos.

No entanto, a medida não garantiu direitos aos indígenas e não impediu, por exemplo, que o Conselho Nacional de Pesquisas Minerais continuasse a enviar equipes para analisar e futuramente explorar as riquezas da TI. Os antropólogos relatam no documento que uma reserva de cassiterita, de proporção não divulgada à época, e explorada por empresas privadas, gerou mais um impacto na TI: a construção de uma estrada em plena área de ocupação dos indígenas para a extração do minério, a RO-1. 

“Sob ponto de vista legal, a portaria não oferece nenhuma garantia legal. Prova é que os índios já perderam, nos últimos cinco anos, várias partes de seu território”, descrevem no relatório Mindlin e Leonel.

Reprodução Armazém Memória
Boletim de 1980 da Comissão Pró-Indio denunciava os avanços das rodovias sobre as TI´s

O relatório também alertava que, futuramente, outras estradas, como a RO-2, e a BR-364, rasgariam a terra indígena, intensificando assim o comércio e roubo de madeira, minério e as invasões no território dos Uru-Eu.

O interesse conflitante na região arrastou o processo de demarcação do território, que só foi concluído 13 anos depois, no governo Collor, mas sem resolver as rixas e ocupações ilegais dentro da área. Documentos sobre este histórico de conflitos podem ser consultados no Armazém Memória.

Poderosos interesses

As investidas do Estado contra o território durante a Ditadura seguem repercutindo. Em audiência na Comissão de Agricultura do Senado, em 2018, o ex-governador de Rondônia e então senador pelo PP, Ivo Cassol, endossou a postura da política indigenista dos governos militares no Parlamento. Afirmou que o colegiado por ele presidido à época deveria “agir a favor dos agricultores do estado, levados pelo regime militar para ocupar a região”, e defendeu a exploração das terras indígenas.

A família Cassol é a representação fiel da ocupação da região. Chegou em Rondônia em 1976, oriunda de Santa Catarina. Estabeleceu-se no novo estado, onde fez fortuna, primeiro com a exploração de madeira, e depois no setor elétrico. Hoje, age politicamente na defesa da manutenção do modelo de exploração das áreas protegidas.

Marcos Oliveira/Agência Senado
Ivo Cassol (PP-RO), em reunião sobre agricultura no Senado

Em entrevista à revista Cenarium Amazônia, o líder indígena Awapu Uru-Eu-Wau-Wau afirmou que políticos locais, alinhados ao governo federal, defendem a expansão do agronegócio a todo custo e alimentam as invasões quando deveriam ajudar a coibir os crimes ambientais no estado. 

“Nosso território é enorme e muitos políticos incentivam que os invasores entrem no nosso território, deputados, senadores… Falam que a TI é grande, que os invasores podem entrar e que eles podem, assim, conseguir algum título [de terra]. É o que dá esperança para que os invasores continuem tendo força”, critica Awapu.

Muitos políticos incentivam que os invasores entrem no nosso território, deputados, senadores… Falam que a TI é grande, que os invasores podem entrar e que eles podem, assim, conseguir algum título [de terra]

Awapu Uru-Eu-Wau-Wau, Líder indígena

O investimento em desmatamento é reforçado na crença de uma mudança na legislação, pauta  primordial do governo federal e da bancada do agronegócio no Congresso. No governo Bolsonaro, os acenos à legalização das infrações ambientais são gritantes. Em setembro deste ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anulou multas num montante de R$ 16,2 bilhões e um novo despacho do órgão pode levar à prescrição de 45 mil multas no valor de R$ 18,8 bilhões.

Levantamento feito pela Repórter Brasil aponta que ao menos 16 deputados federais somam mais de R$ 1 milhão em multas ambientais do Ibama. Desmatamento, caça e pesca ilegais, bem como construção em área de preservação sem autorização prévia, estão entre as principais infrações cometidas pelos parlamentares multados. E é dentro desta lógica que o desmatamento no entorno da TI Uru-Eu-Wau-Wau,  que perpassa 12 municípios do estado, vai ampliando a pressão, inclusive em territórios ocupados por grupos isolados. Segundo dados do Imazon, a TI Uru-Eu-Wau-Wau foi, em 2021, a área mais cercada pelo desmatamento. O alerta, de acordo com a pesquisadora Larissa Amorim, deveria gerar uma ação preventiva para proteção do território. Mas não é o que acontece.

“Ainda não houve intensificação desse desmatamento dentro do limite territorial. Este é um exemplo de onde deve ocorrer ação preventiva de forma que proteja esse território e impeça que ocorram invasões ilegais dentro dela”, alertou a pesquisadora no início deste ano, no lançamento do estudo Luta e Resistência dos Povos Indígenas

O sentimento é de abandono pelos órgãos federais. “A Funai e a PF quando vêm aqui fazem uma megaoperação num dia, mas depois não voltam”, alerta o líder Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau.

A Funai e a PF quando vêm aqui fazem uma megaoperação num dia, mas depois não voltam

Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, lider indígena

Dessa forma, os próprios indígenas têm agido em defesa de seu território, com monitoramento por meio de drones, e acompanhamento de abertura de novas picadas na floresta.

“A Funai não tem presença efetiva na região. Os coordenadores nunca foram em algumas aldeias. É como se não existisse. Não temos como contar com eles”, afirma a indigenista Neidinha Suruí, que atua há 30 anos na região. Para ela, o descaso na região foi intensificado após a morte do sertanista Rieli Franciscato em 2020. Ele trabalhava desde a década de 1980 na região e desde 2010 na Frente de Proteção Etnoambiental da Fundação Nacional do Índio (Funai) na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Trabalhou até sua morte, consequência direta do contexto político e do aumento de invasões. Rieli morreu flechado no peito por um grupo de isolados. Segundo os Uru-Eu-Wau-Wau, desde então a Funai presta pouca assistência a eles.

Divulgação / Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental

Burareiro, ocupação ilegal promovida pelo Incra

Uma região conhecida como Burareiro, onde há um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobreposto à terra indígena, é o ponto-chave das disputas territoriais vividas há décadas pelo povo Jupaú. Nessa área, o desmatamento para abertura de fazendas de gado bateu recordes nos últimos anos. 

“A disputa territorial é muito grande no Burareiro. Nosso território foi prejudicado, porque o Incra entrou e distribuiu cartas de títulos. E a gente tá correndo atrás disso para ter esse território de volta. Nessa área temos vários cemitérios antigos, e queremos ter isso de volta. É uma disputa entre nós e grandes fazendeiros, não são pequenos. Essa é uma preocupação grande”, conta Bitaté.

A intensificação dos conflitos com não-indígenas nessa região teve início em 1974, quando o Incra expediu 122 títulos definitivos a agricultores no interior da terra indígena ainda não homologada pelo Estado. À época, houve notificação pela Funai contra os assentamentos. O Incra chegou a interditar a área, mas até hoje não há solução. Já em 1980, o Incra concedeu mais 113 títulos indevidamente na parte sul do Projeto Burareiro. Apenas em 1985, o Instituto reconheceu que o assentamento era inviável devido à falta de estradas de acesso. Mas não reassentou os titulados em outra região. 

Na Justiça, a Funai questionou o Incra e os títulos concedidos, porém o caso segue sem definição, uma vez que o entendimento é que o foco da ação não deveria ser o Incra, mas os detentores dos títulos concedidos. Dessa forma, sem um ponto final para o litígio, as disputas permanecem até hoje, dando margem para o aumento das ocupações ilegais.

“A gente não tá trabalhando como grileiro, mas com documento do próprio Incra. Se você tem um documento que diz que a terra é sua, não pode vender?”, questiona Nelson Bispo dos Santos, no documentário Uru-Eu-Wau-Wau: terra em disputa, produzido em 2019 e veiculado pelo InfoAmazonia. 

Ele foi preso em 2017 por venda de lotes dentro da terra indígena, após uma megaoperação da Polícia Federal denominada Jurerei. A ação da PF foi resultado da investigação feita pelos indígenas, que, por falta de atuação dos órgãos competentes, decidiram retirar os invasores de suas terras naquele ano.

Apesar de ser reincidente no crime, Nelson Bispo dos Santos está em prisão domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica, aguardando julgamento. Enquanto isso, as lideranças indígenas denunciam que ele permanece agindo ilegalmente dentro do território Uru-Eu-Wau-Wau. 

De acordo com o Ministério Público Federal em Rondônia, não são grupos pequenos que estão envolvidos na ocupação do território indígena, mas verdadeiras “quadrilhas”.

Conforme a investigação independente dos Uru-Eu-Wau-Wau, à época, haveria de 800 a 5000 pessoas acampadas irregularmente dentro da terra indígena, aguardando a regularização de lotes pelo Incra. As quadrilhas haviam desmatado mais de 1000 hectares de floresta da reserva.

O roubo de madeira e o desmatamento ilegal indicam o padrão da grilagem em Rondônia. Uma vez desmatadas, as terras se tornam mais valorizadas e por isso são loteadas e vendidas. A partir daí se instalam litigâncias para a solução do caos fundiário.

Em um documento da década de 1990, o antropólogo Manoel Leonel, responsável por vários estudos relacionados aos Uru-Eu-Wau-Wau, já identificara o modus operandi na região: “a estratégia do Incra, do governo de Rondônia e do lobby organizado por políticos e comerciantes é a do estímulo à invasão, criando situações sem retorno”, descreveu.

“Esse é o tipo de ação que se repete há décadas. E é intensificada, agora, com o discurso do atual presidente, pois levou as pessoas a se sentirem ainda mais empoderadas”, destaca Neidinha Suruí.


Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.

Sobre o autor
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Christiane Peres

Jornalista e indigenista, acompanha as demandas indígenas há quase duas décadas. Foi idealizadora e editora da revista Índio e repórter da revista Brasil Indígena, da Funai. Colaborou com diversos...

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