Em entrevista, ex-ministra do Meio Ambiente e candidata à Câmara dos Deputados responde aos ataques que sofreu de influenciadores bolsonaristas e fala como a desinformação socioambiental trabalha contra o meio ambiente e a favor da desmoralização da ciência
Desde que formalizou apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a ex-ministra do Meio Ambiente e candidata a deputada federal Marina Silva (Rede) passou a ser atacada por grupos bolsonaristas em plataformas digitais como Youtube e aplicativos de troca de mensagens.
Monitoramento realizado pelo projeto Mentira Tem Preço mostra que influenciadores e produtores de conteúdo – inclusive um que se apresenta como pastor – têm produzido desinformação para tentar desmontar a trajetória política de Marina, com mais de 4 décadas em defesa do meio ambiente e de populações tradicionais.
Dos vídeos mapeados, dois deles somavam mais de 400 mil visualizações até essa reportagem ser publicada. Em um dos conteúdos, Marina tem seu nome associado a grandes empresas e bancos. No outro, a ex-ministra é vista como uma ameaça à soberania nacional por querer internacionalizar a Amazônia. Nenhum apresenta provas ou indica a origem das informações.
“A desinformação entra com toda força para manter o atual sistema altamente concentrador de riquezas, produtor de enormes mazelas sociais e grandes impactos ambientais”, diz Marina Silvia. Em entrevista à FALA e ao InfoAmazonia, a candidata, que também é historiadora, professora e ambientalista, explica como a desinformação socioambiental impacta negativamente as eleições, as políticas públicas e coloca em risco a democracia.
InfoAmazonia: Monitoramento do projeto Mentira Tem Preço mapeou vídeos que a acusam, sem provas, de ajudar a vender a Amazônia aos estrangeiros e de uma suposta ligação com empresários e banqueiros. Qual é o impacto da desinformação socioambiental nas eleições e na construção de políticas públicas?
Marina Silva: O impacto negativo é muito grande, sobretudo na própria dinâmica social, no que concerne aos aspectos políticos, projetos, visões e estruturas que precisam ser criadas e ganhar força para trazer a transformação do modelo insustentável para o modelo sustentável, que pressupõe prosperidade, combate à desigualdade e fortalecimento da democracia. A desinformação – a mentira, as fake news, o negacionismo – entra com toda força para manter o atual sistema concentrador de riquezas, produtor de enormes mazelas sociais e grandes impactos ambientais.
Muitos dizem que aqueles que querem proteger a floresta e os povos tradicionais, respeitando a Constituição, estão querendo vender a Amazônia ou prejudicar a soberania do Brasil. Na verdade, o que vemos é quem está quem está entregando a Amazônia são os que estão destruindo a floresta pela grilagem, pelo garimpo ilegal, a exploração ilegal de madeira, a pesca ilegal, o tráfico de drogas e de armas. Esses, sim, são uma verdadeira ameaça à soberania que está fora de controle. A Amazônia concentra hoje mais de 12 mil pistas clandestinas que servem ao crime organizado de todas as maneiras, sobretudo por regiões sensíveis, como é o caso do Vale do Javari [Terra Indígena no oeste do estado do Amazonas com pelo menos quatro povos indígenas isolados].
Essas mentiras tentam, o tempo todo, inviabilizar qualquer projeto — seja do ponto de vista científico, político e até mesmo empresarial — que possa concorrer ou ameaçar o modelo predatório de destruir recursos de milhares de anos pelo lucro de poucas décadas. É um grande prejuízo. A sociedade brasileira está mostrando, na dinâmica eleitoral, que não quer o caminho que os negacionistas, em aliança com o crime organizado, querem impor para o país.
Como fazemos o monitoramento:
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
Nas plataformas digitais, mapeamos negacionismo científico, inclusive de dados produzidos por instituições governamentais, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Nessa narrativa paralela fictícia, o Brasil não sofre nem com queimadas nem com desmatamento, apesar dos dados indicarem o extremo oposto. Como chegamos a esse momento? De que maneira isso prejudica a proteção das florestas e das comunidades tradicionais?
É um longo processo de tentar desacreditar as instituições públicas, os agentes públicos, ativistas socioambientais e a própria comunidade científica. Alinhados aos interesses econômicos mais retrógrados, [esses grupos] conseguem patrocinar e fazer se espalhar pelo tecido social essas desinformações e essas formas de desacreditar e desautorizar a comunidade científica. Quando fui ministra do Meio Ambiente, o senhor Evaristo de Miranda [ideólogo da política ambiental de Jair Bolsonaro], junto com os governos de Rondônia e Mato Grosso, fizeram de tudo para desacreditar os dados do INPE.
Ao lado do Ministério de Ciência e Tecnologia, lançamos mão de todos os meios que dispúnhamos do ponto de vista institucional para desmoralizá-los. Cheguei ao ponto de desafiar o governo do estado do Mato Grosso e os seus supostos técnicos fazendo uma visita in loco, levando a uma averiguação das informações, polígono por polígono, de onde tinha desmatamento. Tive que me jogar na frente e fazer essa operação e eles não conseguiram desmoralizar o INPE.
A diferença é que agora o próprio presidente da República, o presidente do Ibama, o ministro do Meio Ambiente, o ministro de Ciência e Tecnologia, todos eles colaboram para essas atitudes negacionistas, mentirosas, que tentam desqualificar a ciência. Eles não têm compromisso com a ética, a moral pública e a verdade de nenhuma natureza. É uma disputa muito difícil, traz prejuízos, e um deles é a punição. O Ricardo Galvão [ex-presidente do INPE] foi exonerado porque não concordou em esconder as informações sobre o desmatamento. As equipes são enfraquecidas, substituídas por militares que não entendem de meio ambiente, de monitoramento, de gestão e muito menos de fiscalização e autuação.
E para a sociedade, qual é o legado da desinformação que pode levar a crer em uma realidade paralela que não existe?
Para a sociedade, o prejuízo é triplo. Leva a ter uma opinião pública desinformada, lidando com informações mentirosas e falsas, com muitas pessoas sendo manipuladas. A outra coisa é que você enfraquece qualquer política pública. E o terceiro prejuízo é o fato de termos cortes enormes na área de ciência, tecnologia e inovação. Além da punição de ficar dentro dos órgãos públicos o tempo todo sendo ameaçado e assediado, o profissional não tem como fazer o trabalho porque não tem meios de realizar a sua função institucional, seja por uma questão financeira ou até mesmo de segurança da sua própria vida. O Estado te entrega à própria sorte. Isso quando não te pune com exonerações, como foi o caso do delegado Alexandre Saraiva [exonerado depois de apresentar uma notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles por conivência com grilagem de terras no Pará] e do diretor de Proteção Ambiental do Ibama [Samuel Vieira de Souza foi exonerado depois de realizar uma operação contra o garimpo ilegal na terra indígena Yanomami].
Como Bruno Pereira, servidor da Funai exonerado, que foi assassinado no Vale do Javari (AM)…
Nesse caso aí é algo extremo. A ausência do Estado e a conivência com o crime faz com que os criminosos assumam o controle e tirem a vida das pessoas de bem que estão fazendo aquilo que o Estado deveria estar fazendo, como no caso dos assassinatos de Bruno Pereira e do [jornalista britânico] Dom Phillips, a ponto do próprio presidente [Jair Bolsonaro] dizer que eles tinham ido “se aventurar”. Disseram: “Por que eles foram para um lugar que não deveriam ter ido? Por que foram incomodar quem estava lá?” Como se as pessoas de bem, que respeitam a lei, que defendem os direitos humanos e a proteção do meio ambiente fossem os errados, como se os criminosos devessem ficar livres, leves e soltos na lógica do Bolsonaro.
Plataformas digitais não possuem políticas sobre crise do clima, permitindo que conteúdos relacionados ao negacionismo climático, por exemplo, circulem livremente em um momento que combater a crise do clima é uma agenda mundial. Como a senhora avalia o papel das plataformas digitais e dos investidores das mesmas?
Como essas plataformas têm um poder gigante e alcance de levar e de fazer circular conteúdos em uma escala inalcançável, é uma responsabilidade que precisa ser levada a cabo por essas plataformas, mas também devemos buscar algum meio de regulação para que haja responsabilidade com o futuro do planeta, a paz social, a saúde pública, buscar mecanismos que contenham o avanço desses grupos predadores da democracia, do equilíbrio climático, da saúde pública, das instituições democráticas. Obviamente essa deve ser uma exigência do tecido social que não quer ver o mundo caminhar para o precipício da barbárie social, econômica, cultural e civilizatória.
Também precisamos encontrar caminhos, seja de alguma regulação global, seja atitudes de compliance, para esses grupos, no âmbito dos estados nacionais que muitas vezes não conseguem dar conta disso porque [esses grupos] não respeitam fronteiras. Como grupos que não conseguem operar no país e buscam “paraísos digitais” — eu estou inventando esse nome agora —, que acabam degradando o processo de articulação da informação à distância. Exemplo disso foi o Telegram. Isso ficou muito claro nos EUA e aqui, com o esforço do Tribunal Superior Eleitoral de conter essas mentiras que levam ao descrédito das urnas eletrônicas e de ameaças à democracia no Brasil.
No projeto Mentira Tem Preço, monitoramos o horário eleitoral de todos os candidatos ao cargo de governador nos nove estados da Amazônia Legal. Encontramos pouquíssimo conteúdo com foco em questões socioambientais, quando desmatamento e queimadas batem recordes no país. Por que a defesa da Amazônia e do meio ambiente, das comunidades tradicionais e da produção sustentável ainda não entrou para os planos dos governadores da Amazônia Legal?
Infelizmente, a maior parte dos governos vão para essa disputa não para legitimar uma alternativa ao modelo predatório, mas com discurso “fácil” do desenvolvimentismo. A economia que valoriza a floresta destruída em lugar de ela protegida é o que prevalece nas campanhas. São pouquíssimos os que têm coragem de fazer uma inflexão na direção de um outro modelo de desenvolvimento. Você verifica que os governadores fazem uma articulação, participam de fóruns internacionais, tentam captar recursos em nome da proteção da Amazônia e, no próprio estado do Pará, o governo acaba de fazer um processo de regularização fundiária vendendo hectare de floresta para ser regularizado a cerca de R$ 40. É um absurdo uma coisa dessas. Os governadores têm sim mecanismos para também fazer seus planos de prevenção e controle do desmatamento. Quando fui ministra do Meio Ambiente nós, além do plano de controle do desmatamento, fizemos o plano de desenvolvimento sustentável da Amazônia e um das populações tradicionais. O passo seguinte era envolver os estados para que eles tivessem seus planos de combate ao desmatamento e seus planos de desenvolvimento sustentável. Infelizmente, saí do governo alguns dias depois do plano ter ficado pronto. Quem assumiu o plano foi o filósofo e teórico social Roberto] Mangabeira Unger, que não encaminhou absolutamente nada. Tudo o que ele fez foi, junto dos governadores da Amazônia, pressionar para uma regularização fundiária em 2009, que regularizou 47 milhões de hectares de terras griladas.
O Estado do Amazonas bateu recorde de queimadas, mas nenhum candidato apresentou proposta de combate. No Pará, mineração é “vocação”, mas recursos bilionários não mudam a vida da população das cidades que mais arrecadam. No Acre, florestania passou a ser atrelada à miséria, quando as estatísticas mostram o contrário. Como a senhora avalia esse cenário na Amazônia Legal? Tem saída?
Tem saída. Numa democracia, essa saída será sempre no terreno da democracia. Agora, quem tem a oportunidade de democraticamente assumir um governo tem que ter um compromisso de mudar essa realidade para que a gente comece a obter ganhos com a lógica da floresta em pé, do respeito a uma economia diversificada na Amazônia, compatível com a proteção da sua biodiversidade e seus povos originários.
Não dá mais para a grilagem ser premiada governo após governo com regularização fundiária, tornando aqueles que roubaram terras públicas em proprietários. Não dá mais para o Fundo Safra, que agora é de R$ 340 bilhões, ter apenas um 1% desses recursos para agricultura de baixo carbono e a outra parte do recurso para agricultura convencional. É preciso que esse recurso seja a base da transição e que haja um conjunto de metas a serem alcançadas para reaver novos investimentos.
Um outro aspecto é criar toda uma infraestrutura voltada para o desenvolvimento sustentável; consolidar áreas que podem ser para a agricultura mas também um lugar para as populações indígenas e quilombolas, extrativistas. A meta do Brasil é reflorestar algo em torno de 12 milhões de hectares. Isso tem um potencial de gerar 2 milhões de empregos.
Então existe, sim, saída. Agora, essas saídas precisam que quem esteja no governo faça aquilo que é necessário, o que eu chamo de política de longo prazo, para institucionalizar esse ganho para quem vier depois. Políticas públicas precisam ser institucionalizadas, e o que puder ser transformado em lei tem que virar lei para evitar que quem vem depois desmonte tudo, como fez o Bolsonaro.
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.
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