Dos 62 municípios do estado, 47 estão em situação de emergência devido as cheias dos rios. De acordo com a Defesa Civil, são mais de meio milhão de amazonenses afetados.0
Janine Lima tem 29 anos e desde que nasceu mora no mesmo lugar. Uma casa na Comunidade Bariri, situada no bairro Presidente Vargas, em Manaus. O local fica a cerca de 70 metros da margem do Rio Negro. Há dois meses a rua em que ela mora ficou intrafegável. O rio começou a encher e atingiu tudo ao redor. A água é tanta que é impossível andar sem ter metade do corpo afundado. Por isso, para chegar é preciso subir por estreitos caminhos de madeira, que dão acesso às casas.
A cena é conhecida dos moradores. Todo ano as enchentes ocorrem no estado e algumas vezes o rio preenche parte da capital. Elas fazem parte do ciclo natural, mas Janine percebeu uma diferença nos últimos anos. A cada cheia o rio vai engolindo mais a comunidade. “Antigamente só alagava no início da rua e era pouca coisa. Quando eu era criança a rua não ficava assim, eu não tenho essa lembrança. Ficavam umas poças de lama só, mas nos últimos anos está desse jeito”, diz Janine, que é professora e mora com o marido e dois filhos, um de seis anos e outro de um ano.
A comunidade em que ela mora é composta por casas de alvenaria e de madeira. As mais próximas do rio são palafitas, que sofrem mais. Com toda a água ao redor, na época da enchente o volume é maior e uma porção de lixo se acumula no entorno . Pontes são feitas constantemente para que os moradores transitem e dentro das moradias os objetos são suspensos para não serem danificados.
As pontes de madeiras são estreitas e o risco de cair na água é grande. Os pais são os mais preocupados, porque as crianças parecem não ter medo. Passam correndo. Brincam com seus cachorros e de “pescar” o lixo. Em uma dessas, o primeiro filho da jovem Luana Muniz de seis anos acabou caindo dentro d’água. “Esses dias muitas crianças daqui estavam com dor de barriga, vomitando. A gente acha que é por causa da água mesmo”, disse.
A defesa civil do município é a responsável por dar assistência, mas os moradores se queixam da falta de apoio. No início do mês eles fizeram um protesto e o órgão construiu mais pontes no local, mas que ainda não são suficientes. Depois da cesta básica, a madeira é a principal necessidade na vizinhança.
Gelson Lima, de 50 anos, conta que pagou R$ 200 por uma dúzia de tábuas de madeiras. Ele mora na comunidade há 22 anos e diz que as enchentes estão piorando a cada ano. “Essa água vai subir no nível do ano passado. Estou fazendo maromba: armação de madeira feito para suspender objetos pra levantar minhas coisas, porque vai alagar tudo aqui e só piora” .
Emergência climática
A percepção de que o rio passou a encher com maior frequência e cada vez mais nos últimos anos não está errada. Uma enchente é considerada histórica quando passa da marca de 29 metros. No século passado isso aconteceu nove vezes, a mesma quantidade também foi registrada em apenas 22 anos deste século. Em 2021, foi registrada a maior cheia da história, quando o nível atingiu 30,02 metros. Nesta sexta-feira o nível está em 29,73 metros. O Cientista Florestal e pesquisador Jochen Schöngart, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), explica que esse aumento na frequência de cheias históricas tem relação com a crise climática global.
A grande quantidade de gases emitidos no mundo gera um acirramento do efeito estufa, que aquece as águas do Oceano Índico e por consequência aquece o Oceano Atlântico. Com o Atlântico aquecido e o Oceano Pacífico frio, a Célula Walker, que é uma ponte atmosférica entre os dois oceanos, é intensificada, levando mais nuvens até a bacia amazônica. O contraste da temperatura dos dois oceanos é o que gera essa intensificação das chuvas.
Jochen explica que a Bacia Amazônica concentra 20% de toda a água doce do mundo. O fato dela apresentar massivas mudanças no regime hidrológico com cheias severas é um sinal de alerta para o mundo. “Isso coloca as políticas públicas numa situação desafiadora, porque os governantes precisam reagir para mitigar os impactos dessas cheias, que provocam a perda de bens e afetam a saúde das populações que vivem em situações críticas. É principalmente pela falta das políticas que a situação vira uma catástrofe”, diz o pesquisador.
Em dados recentes, divulgados em 13 de junho, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) mostrou que a região Norte representa 60% do carbono liberado pelo Brasil e que dos 10 municípios que mais emitem gases de efeito estufa, oito estão na Amazônia. O motivo é o desmatamento da floresta, que leva as árvores a emitirem CO2, além das queimadas intensas na região. Apesar disso, o Brasil não é o maior responsável pelos danos causados ao clima e, mesmo se cumprisse as metas de redução de gases, o Amazonas ainda sofreria com as enchentes. O esforço para diminuir a frequência das grandes enchentes precisa ser global.
“A gente não pode esquecer que os maiores emissores são os países desenvolvidos como Estados Unidos, China, União Europeia. Claro que o desmatamento também contribui para os aumentos do efeito estufa, mas precisa ser um esforço global para reduzir os impactos das mudanças climáticas que estão se manifestando nas maiores bacias do mundo”, diz.
Com o cenário piorando a cada ano, o Amazonas enfrenta os danos da crise climática, com cidades completamente alagadas e famílias perdendo suas moradias e até sua renda. Dos 62 municípios do estado, 47 estão em situação de emergência e esse número aumenta com velocidade. Há um mês eram 30. De acordo com a Defesa Civil, um total de 552.482 amazonenses estão sendo afetados.
Impacto no campo
A situação é sentida nos centros urbanos e também nas zonas rurais . O agricultor Márcio Oliveira vive com a esposa em um sítio, no município de Rio Preto da Eva, situado na região metropolitana de Manaus. O casal planta alface, jambú, mastruz, espinafre, couve e outros legumes. Os produtos são vendidos em feiras da capital. No último mês, no entanto, as vendas foram interrompidas porque as plantações alagaram.
“Desde 1982 que temos esse sítio, que é da família da minha esposa, e nunca alagava, mas de oito anos pra cá isso mudou. Agora vamos nos mudar e começar tudo de novo na área mais alta do terreno, onde a água ainda não chega”, contou.
A engenheira florestal Carol Morin, do coletivo “Puxirum do Bem Viver Manaus”, que há dois anos promove ações de agroecologia e por justiça social junto aos agricultores do estado, explica que o impacto das mudanças climáticas é sentido de forma unânime. “Muitas das coisas que os agricultores produziam antes, não conseguem mais entregar, porque a planta não se desenvolve mais. Ou chove muito e mata espécies que são sensíveis ou não tem chuva suficiente e eles têm que gastar mais dinheiro e mais esforço regando”.
Outro problema que eles enfrentam é a logística de transporte. Com estradas de terra, as chuvas transformam as vias em lama e o tráfego é impossível. De forma individual eles tentam investir na proteção das plantas para garantir a colheita, mas com relação às estradas a dificuldade depende da construção e revitalização das rodovias.
As pessoas estavam acostumadas com o nível do rio até certo lugar e esses centímetros a mais já fazem a diferença.
Yago Santos, engenheiro ambiental
“As pessoas estavam acostumadas com o nível do rio até certo lugar e esses centímetros a mais já fazem a diferença. Então a pessoa que vive exclusivamente do uso da terra fica impossibilitada [de plantar por] um bom tempo. Mesmo que a água não ceda, se a terra ainda estiver muito encharcada não dá pra plantar várias coisas”, explica o engenheiro ambiental Yago Santos, também do coletivo Puxirum.
Jovens pelo clima
O Puxirum faz parte de uma rede de jovens ativistas que atuam em Manaus e criam debates sobre a emergência climática, propondo soluções e dando apoio aos grupos mais afetados. O coletivo tem uma página no Instagram em que falam frequentemente sobre as mudanças climáticas, alertando, ensinando e incentivando manifestações. O trabalho deles começou em 2020, quando a pandemia causou colapso no sistema de saúde do estado.
“Com a pandemia, quando passamos aquela situação grave em Manaus, reunimos nossos amigos e começamos a comprar alimentos de agricultores que não estavam conseguindo vender e passamos a entregar para pessoas que estavam necessitadas naquele momento”, conta Yago.
Outra ativista é Celina Pinagé. Ano passado ela foi uma das representantes do estado na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26). Celina tem 23 anos e é estudante de ciências biológicas. Ela cobra que mais ações sejam planejadas e executadas pelos governantes. “Os nossos líderes não estão pensando em adaptação climática, em como proteger a nossa população. Durante muito tempo foi pensado que a questão do meio ambiente era só do meio ambiente, mas agora estamos vendo que está tudo conectado”.
Entre as sugestões dos ativistas está a criação de um comitê de crise climática, que reúna pesquisadores, estudantes, movimentos sociais, ribeirinhos, agricultores, líderes comunitários e principalmente o poder público. Dessa forma, as decisões seriam influenciadas também por aqueles que estão sendo atingidos diretamente e por estudiosos.
Neste mês, o governo do Amazonas criou um “Auxílio Estadual Enchente”, no valor único de R$ 300, com a promessa de atender a 100 mil famílias. Segundo o próprio governo, até agora, o benefício chegou a 40 mil famílias. O estado também faz a distribuição de alimentos, kit higiene e madeira. Celina considera que essas ações são paliativas e que é necessário um plano maior para enfrentar as próximas enchentes. “Por muito tempo as pessoas falavam ‘ah daqui 50 anos os nossos netos não vão usufruir da natureza’, mas não, isso está acontecendo agora. A melhor forma de ver isso é olhar pra nossa cidade, as pessoas estão sendo atingidas e elas não fazem ideia de que isso é culpa da crise climática. As pessoas precisam entender o que está acontecendo”, disse.