Ameaçado por fazendeiros, povo Parakanã aguarda providências. Ministério Público Federal pediu à Justiça a punição do governo federal com uma multa diária enquanto a desintrusão não for feita.

Desde o último dia 16, representantes do povo Parakanã tem denunciado às autoridades a ocupação de suas terras  por um rebanho de cerca de 100 cabeças de gado. As lideranças indígenas apontam como responsáveis pela intrusão fazendeiros locais que, há 15 anos, invadiram a Terra Apyterew.  

“Tem muitos fazendeiros. É muito problema sobre a nossa terra, os fazendeiros mandam ameaças e cada vez mais está entrando gente”, conta Tye Parakanã. 

Em 17 de maio a Polícia Federal (PF) esteve na TI e confirmou a invasão. Um relatório da visita foi enviado ao Ministério Público Federal (MPF), que acompanha o caso, e afirma que os fatos estão sendo investigados. A reportagem solicitou o documento, mas o órgão não enviou alegando que os dados são sigilosos. Em nota, o MPF disse que “estuda novas medidas para garantir a segurança dos indígenas” e que já pediu à Justiça a punição do governo federal com uma multa diária enquanto a desintrusão não for feita. 

Polícia Federal
Gado visto do helicóptero sobre a Terra Indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA)

Em janeiro de 2020, o MPF recomendou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) iniciasse a desintrusão do local retirando os fazendeiros. A medida está sendo cobrada por via judicial desde 2005. De acordo com o MPF, menos de 20% da área total da Terra Indígena Apyterewa está sob a plena posse dos indígenas.

A TI Apyterewa tem 773 mil hectares e foi homologada em 2007, o que na teoria garante que não seja usada ou invadida por não-indígenas. Na prática isso não ocorre e a situação só tem piorado a cada ano. O território passa por forte pressão dos fazendeiros e a invasão dos bovinos, em maio, faz parte de uma série de estratégias para  fazer os Parakanã desistirem de parte de suas terras.

Por ora, o gado permanece no local afetando a vida nas aldeias que ficam às margens do Rio Xingu, no município de São Félix do Xingu, sudeste do Pará.  “O gado não foi retirado de lá. Eles continuam colocando em quantidade e intensamente, além de desmatarem e criarem estradas”, denuncia Kawore Parakanã, presidente da Associação Tato’a, que representa o povo Parakanã. 

“A terra está homologada, demarcada, registrada, mas ninguém está respeitando a lei. Aqui no Brasil eu acho que não tem lei. Nós já fomos muitas vezes a Brasília e ninguém resolve nada. E cada vez mais invasores e mais garimpeiros estão entrando”, lamentou Tye Parakanã. 

“A terra está homologada, demarcada, registrada, mas ninguém está respeitando a lei

Tye Parakanã, liderança da Terra Apyterewa

Guerra judicial

Os fazendeiros que invadiram o espaço Parakanã tentam na Justiça reaver uma parte da terra indígena. Em 2007, eles entraram com um mandado de segurança solicitando que o decreto de homologação da TI fosse revisto e um novo estudo antropológico fosse feito, para, dessa vez, ceder grande parte da área aos ruralistas. Desde então teve início uma batalha judicial que envolve a Associação dos Pequenos Agricultores Rurais do Projeto Paredão, o Município de São Félix do Xingu, que apoia os fazendeiros, e os indígenas do povo Parakanã. 

Em maio de 2020, o ministro Gilmar Mendes solicitou que a União promovesse uma “conciliação” entre as partes. “Tendo em conta que grande parte das ações relativas a conflitos entre agricultores e indígenas decorrem, muitas vezes, da ausência de prévio diálogo sobre a possibilidade de solução amigável, intime-se a União sobre o interesse na tentativa de conciliação proposta pelo Município de São Félix do Xingu”, registrou Mendes em sua decisão. 

Em setembro daquele ano, a prefeitura de São Félix do Xingú solicitou da ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que uma equipe do ministério fosse enviada ao município, em caráter de urgência, para “observar os direitos humanos básicos de subsistência de colonos não-indígenas”.

A visita ocorreu no mês seguinte. Logo após, a vinda do ministério os indígenas denunciaram que foram chamados para uma reunião na base de proteção da Funai, mas foram levados para a sede de uma fazenda.”Neste momento, ficou claro o objetivo da reunião: pressionar as lideranças presentes para aceitarem a proposta de redução dos limites do território”, denunciou por nota a Associação Tato’a. 

Em dezembro de 2021, o ministro Gilmar Mendes encerrou as tentativas de conciliação. Os fazendeiros insistiram na conciliação, porém, em 24 de maio deste ano, Mendes negou o pedido. Isto fez com que a ordem de desintrusão fosse mantida. O Conselho Indígena Missionário (Cimi) acompanha o caso e afirma que a invasão com o gado é uma resposta a essa última parte do processo.  “Os fazendeiros ficaram desesperados porque perceberam que o único trunfo deles, que poderia ser essa negociação, se foi. Quando isso acontece eles invadem o território, daí existe ameaça. É nesse tensionamento que ocorre essa invasão”, explica o advogado do Cimi, Rafael Modesto. 

Os fazendeiros ficaram desesperados porque perceberam que o único trunfo deles, que poderia ser essa negociação, se foi. Quando isso acontece eles invadem o território, daí  existe ameaça. É nesse tensionamento que ocorre essa invasão

Rafael Modesto, advogado do Cimi

O prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber de Souza Torres (MDB), é um dos que apoiam a conciliação pedida pelos fazendeiros. Na eleição de 2020, ele declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter 11,8 mil cabeças de gado. Em 2011 e 2014 ele foi multado pelo Ibama, por desmatamento, em 6,7 milhões de reais. Procurado pela reportagem Torres não quis responder.

Retirada dos fazendeiros

A Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) esteve nas aldeias do Povo Parakanã no último ano e coletou relatos dos indígenas que denunciaram as ameaças e os danos causados ao território. “Nós ouvimos as lideranças, as mulheres foram muito firmes dizendo que o território está sendo devastado pelos invasores, que elas tem medo de sofrer represália e que o território é do povo Parakanã, pertencente aos idosos e crianças”, disse Ronaldo Amanayé, tesoureiro da Fepipa.

A partir de agora,  a expectativa do povo Parakanã  é que as recomendações do MPF e as decisões judiciais do STF sejam cumpridas pelos órgãos do executivo, como a Funai, o Ibama e a Polícia Federal. “É papel do estado brasileiro é demarcar e proteger as terras. Nós temos um governo anti-indígena que consegue controlar os órgãos e impedir que não cumpram suas obrigações e deveres”, reclama Amanayé. 

Como a TI já foi homologada, o processo de desintrusão deveria ter sido feito de forma urgente. “Falta vontade política, ou a orientação é para não fazer. Enquanto isso, eles estão em risco, sob ameaça, com território cada vez mais degradado pelas invasões”, diz o advogado Rafael Modesto, do Cimi.

Devastação e crise climática 

De acordo com dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia por Satélites (Prodes), a Terra Indígena Apyterewa foi a mais devastada do país em 2021, com 68 km2 desmatados, contabilizando 19% do desmatamento em todas as TIs, 

Este cenário não é único. Em 2019, as TIs da Amazônia Legal tiveram a maior taxa de desmatamento já registrada, foram 497 km2; em 2020 a taxa caiu para 429 km2 e em 2021 para 365 km2. Apesar da queda, em contexto de pandemia, nos anos de  2020 e 2021 em relação à 2019, a taxa de desmatamento média desses últimos 3 anos em TIs da Amazônia Legal é 83% maior do que a média dos últimos 10 anos.

O geógrafo Guilherme Mataveli, pós-doutorando na Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Instituto de Pesquisa Espacial (INPE), explica que esse desmatamento está associado ao uso do fogo para manuseio de pastagem e tem causado impacto climático na região. Mataveli é um dos autores do artigo “Rápida Incursão Recente de Desmatamento em Terra Indígena Vulnerável na Amazônia Brasileira e Emissões Incendiárias de Particulados Finos Poluentes Aerossóis”, que estudou o desmatamento na TI Apyterewa e foi publicado pela MDPI, revista científica suíça, em 2020.

“O aumento das emissões associadas à queima, como foi identificado no artigo, tem como principais impactos a alteração da composição da terra, o aumento da temperatura, a diminuição das chuvas e a degradação da qualidade do ar. Além disso, o aumento das emissões pela queima possui impacto direto sobre a saúde humana por estar associado ao aumento de doenças respiratórias, outra ameaça sobre os indígenas que habitam Apyterewa”, explica Mataveli. 

O aumento das emissões pela queima possui impacto direto sobre a saúde humana por estar associado ao aumento de doenças respiratórias, outra ameaça sobre os indígenas que habitam Apyterewa

Guilherme Mataveli, geógrafo

O estudo mostra que de 2016 a 2019 as áreas antropizadas, ou seja, que foram modificadas para pastagem, mineração e outras atividades humanas, cresceram de 362 km 2 para 570 km 2 dentro da TI. Esse resultado evidencia que a terra está sendo desmatada e novamente compromete os avanços das políticas climáticas.

A Funai, o  Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Polícia Federal foram procuradas pela reportagem, mas não retornaram contato. A reportagem não conseguiu contato com a Associação dos Pequenos Agricultores Rurais do Projeto Paredão.

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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