Lideranças indígenas relataram manipulação e pressão do órgão indigenista do governo federal para obter autorização para reconstrução da estrada que liga Porto Velho a Manaus.
Lideranças indígenas, Ministério Público Federal (MPF) e pesquisadores apontam que a Fundação Nacional do Índio (Funai) teria manipulado reuniões administrativas em aldeias no Amazonas para acelerar o processo de licenciamento de reconstrução da BR-319, sem cumprir os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que assegura a consulta livre, prévia e informada aos povos afetados por obras de infraestrutura.
No último 6 de maio, durante reunião promovida pelo Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia, a coordenadora de licenciamento ambiental da Funai, Carla Fonseca de Aquino Costa, afirmou que o órgão havia concluído a consulta prévia das comunidades indígenas, o que abre caminho para a emissão da licença para reconstruir a parte mais crítica da rodovia, o chamado ‘trecho do meio’ (km 250 a 655,7). recuperando a ligação terrestre entre Porto Velho (RO) a Manaus (AM).
O MPF e pesquisadores presentes no encontro foram pegos de surpresa com a informação e contestaram a realização das consultas. Lideranças indígenas ouvidas pela reportagem também relataram a pressão da Funai pela autorização para construção da estrada.
O cacique Apurinã, Zé Bajaga, presidente da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), afirma que indígenas teriam sido pressionados a assinarem as atas que dizem sim à obra, o que fere o caráter livre da consulta. “Eles relataram que as reuniões não ocorreram como eles queriam”, disse Bajaga.
Outro indígena, que pediu para não ser identificado, relatou que, em uma das aldeias, a comunidade queria mais aprofundamento dos estudos, mas representantes do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e da Funai afirmaram que não havia mais tempo para estudos. “Fomos informados que se os indígenas não aceitassem correriam o risco de ficar de fora das compensações, e que não tinham mais tempo para novos estudos”.
Para o MPF, a Funai violou os termos da Convenção 169 ao considerar a realização da consulta prévia em reuniões que não tinham tal finalidade, descumprindo o caráter prévio, livre e informado do tratado internacional. “Os povos indígenas e comunidades tradicionais (ribeirinhos/extrativistas) não estão sendo consultados sobre a BR-319 nos moldes da convenção, e estão tendo seus direitos violados”, disse o MPF ao InfoAmazonia.
O MPF também contesta a abrangência da consulta, que se limitou apenas às comunidades no raio de 40 quilômetros do trecho a ser licenciado, ignorando os impactos que a obra terá em toda a região considerada de influência da BR-319, que inclui abertura de vias planejadas e de ramais (estradas secundárias) por causa da rodovia. “Esse modelo que está sendo adotado é bastante inadequado”, criticou o procurador Fernando Merloto, do MPF do Amazonas. A Funai diz seguir as regras estabelecidas pela portaria interministerial 60/2015, que aponta perímetros mínimos para o licenciamento ambiental e se pautar pelas as normas da convenção 169 da OIT.
Segundo o órgão indigenista oficial, as consultas aos indígenas foram realizadas durante a elaboração do Estudo do Componente Indígena (ECI) e audiências públicas nas terras indígenas Lago Capanã, Ipixuna, Nove de Janeiro, Ariramba, Apurinã do Igarapé Tauamirim e Apurinã do Igarapé São João, que estão no raio de 40 km da rodovia. “O processo de consulta começa quando a gente vai apresentar a equipe e o plano de trabalho para explicar para os indígenas como eles vão ser estudados”, justificou Carla Fonseca, durante a reunião do PPI.
Ao InfoAmazonia, por meio de nota, a Funai diz que não aplicou “nenhum tipo de coação para decisão [dos indígenas]” e que “criar novos procedimentos não previstos pode ser uma forma indireta de postergar a decisão sobre a viabilidade do projeto e paralisá-lo”.
Fernanda Meirelles, secretária executiva do Observatório BR-319 (OBR-319), diz que há uma tendência do governo federal em relativizar os processos de consulta ao considerar audiências e reuniões, como as do ECI, como consulta prevista nos tratados internacionais. “Não existiu consulta prévia dos povos, o que ocorreu foram etapas dentro de um processo administrativo de licenciamento ambiental, apresentação do ECI e audiências públicas, etapas previstas no processo de licenciamento, mas que não podem ser confundidas com a consulta nos termos da Convenção 169”, afirma.
Promessa pressiona 68 terras indígenas
A reconstrução da BR-319 é uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL), no entanto, a obra não avançou como esperado, em boa parte pelo não cumprimento das etapas ambientais cobradas pelo MPF e organizações que acompanham o processo para sua construção.
Um estudo liderado pelo biólogo Lucas Ferrante, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), e assinado com o antropólogo Mércio Pereira Gomes, ex-presidente da Funai, explica que as obras da BR-319 vão afetar pelo menos 68 terras indígenas, cinco delas em fase de estudo, incluindo áreas com populações em isolamento voluntário. O estudo chegou a ser apresentado à Funai, mas o órgão só reconheceu cinco terras indígenas como afetadas pela obra. Ferrante disse à nossa reportagem que o órgão ignora pesquisas e estudos científicos que comprovam falhas no licenciamento ambiental.
O pesquisador indica uma forte relação da obra com o avanço do desmatamento na Amazônia. “A taxa de desmatamento na área de influência da BR já é duas vezes e meia maior do que em todo território amazônico. O desmatamento nessa área pode colapsar os rios voadores que irrigam o sul e o sudeste do Brasil”, destacou.