Prazo de 48h determinado pela Justiça para renovação da portaria termina nesta sexta-feira. Expedição realizada em 2021 por técnicos do própria Funai identificou vestígios de isolados e recomendou manutenção da restrição de uso na terra indígena paraense.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) se recusa a cumprir decisão judicial que determinou renovação da restrição de uso na Terra Indígena (TI) Ituna-Itatá, no Pará, onde desde a década de 1970 há registros da presença de povos isolados. O órgão resiste em reconhecer os laudos dos próprios técnicos que atestaram a necessidade de renovar a portaria de restrição de uso para conclusão dos estudos de identificação dos povos isolados. A área, interditada desde 2011, é disputada por fazendeiros que tentam regularizar propriedades privadas dentro da terra pública, com apoio do senador Zequinha Marinho (PL-PA).
Nessa quarta-feira, 26, a Justiça Federal no Pará estabeleceu prazo de 48 horas (até sexta, 28) para a Funai renovar a portaria de restrição de uso e proibir a entrada de não indígenas na TI. A portaria tinha vencido no dia anterior, 25 de janeiro (terça-feira). A decisão atende a pedidos do Ministério Público Federal (MPF) e determina também a retirada de grileiros e invasores do território. Segundo o MPF, a não renovação da portaria coloca em risco a integridade física dos isolados, considerada única proteção jurídica oferecida atualmente aos povos da TI Ituna-Itatá.
A presença dos isolados está atestada em um relatório técnico da Funai, apresentado em dezembro do ano passado à Coordenadoria do órgão. Em expedição realizada na região em 2021, com apoio de indígenas de terras próximas, os técnicos da Funai identificaram que os povos isolados da Ituna-Itatá seguem se movimentando pela terra indígena:
“Foram localizados vestígios relevantes que apontam para necessidade de prosseguimento com os estudos de localização geográfica”, diz trecho do documento que pede a renovação da portaria de restrição e o apoio da Polícia Federal e Ibama para as ações de fiscalização.
No entanto, o diretor de Proteção Territorial da Funai, César Augusto Martinez, não acatou o relatório técnico. Logo após a decisão da Justiça Federal que determinou a renovação da restrição de uso, contradizendo o laudo técnico, a Funai, afirmou ao InfoAmazonia que não vê motivos para renovar a portaria: “A Funai entende que não há elementos que justifiquem a edição de uma nova portaria de interdição da área”, disse o órgão em nota enviada à reportagem. A manifestação ignora os apontamentos da área técnica sobre os vestígios coletados na última expedição e cita apenas trecho do estudo que informou não ter avistado os indígenas. (íntegra da nota aqui).
O MPF, que também teve acesso ao relatório, disse à reportagem que “houve sim detecção de vestígios da presença dos isolados, além deles terem sido avistados inúmeras vezes entre 1970 e 2020”.
“Tanto é assim que o setor pericial do MPF, ao analisar o relatório, concordou com sua conclusão: de que é fundamental manter a interdição de uso sobre a TI Ituna-Itatá para continuidade das pesquisas”. O relatório da equipe técnica da Funai e o laudo pericial do MPF fundamentam os pedidos feitos à Justiça para manter a interdição da área. Na ação, o MPF argumentou que a Funai estaria “contrariando a sua missão institucional de proteger os povos indígenas brasileiros”.
A Terra Indígena Ituna-Itatá foi interditada para estudos em 2011 com pedido de restrição de uso. A restrição é o mecanismo legal que facilita os trabalhos técnicos para reconhecimento do território e impede que não índios e pessoas não autorizadas se aproximem dos isolados. O dispositivo também proíbe qualquer tipo de atividade econômica dentro do território.
Desmatamento e invasões
Ituna-Itatá está entre as terras indígenas mais desmatadas da Amazônia. Desde 2016, os invasores já destruíram mais de 21 mil hectares da área para retirada de madeira e abertura de pastos.
Sem a restrição de uso, o território ficaria mais vulnerável às invasões e, por ainda não estar homologada, também à possibilidade de regularização das áreas invadidas. O MPF destaca que, em 2020, o presidente da Funai e delegado federal Marcelo Xavier editou instrução normativa, considerada ilegal em várias decisões judiciais, que retira a proteção de terras indígenas ainda não homologadas e permite o registro de propriedades privadas sobre essas terras.
“É o caso da Ituna-Itatá, que até hoje não teve sua demarcação concluída, apesar dos inúmeros avistamentos de isolados na área ocorridos desde a década de 1970”, destacam os procuradores do MPF que atuam no caso.
Ainda em fase de estudo, a terra indígena tem praticamente todo o território autodeclarado como propriedades privadas no Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Em 2020, 94% da TI tinha sido registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) em nome de ‘proprietários’ autodeclarados. No mapa, clique sobre as áreas cadastradas para ver informações sobre tamanho (ha), situação e código de cada cadastro. Compare as camadas clicando nas setas azuis da legenda.
O indigenista Leonardo Lenin Santos, que já atuou como coordenador de Proteção de Índios Isolados da Funai, entre 2011 e 2014, fala em avanço do aparelhamento político dentro da instituição diante da pressão econômica e política.
“O que chama a atenção não é só a política retrógrada do atual presidente da Funai, isso já era esperado desde que ele assumiu, mas sim a conivência das Coordenações, incluindo a de povos isolados, que considera o discurso de propriedade privada dos ruralistas contrário ao direito territorial dos índios garantidos na Constituição”, aponta Santos. Exonerado da Funai em 2016, após dez anos de atuação no órgão de proteção indígena, Santos atualmente faz parte do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI).
Em 2020, a OPI denunciou os riscos de extinção forçada dos isolados da Ituna-Itatá diante dos sinais da presidência da Funai para a não renovação da restrição de uso. Na época, o grupo teve acesso a mapas com duas propostas extra-oficiais de diminuição da terra indígena.
Com base nos apontamentos da denúncia, o Conselho Nacional dos Direitos Humanos recomendou a retirada dos invasores e a construção de um Posto de Vigilância com brevidade e urgência para“assegurar a implementação do princípio da precaução que favorece a proteção da vida dos povos isolados”.
A construção do Posto de Vigilância para proteger a terra indígena é uma das condicionantes ambientais da construção da hidrelétrica de Belo Monte, imposta como garantia de que os impactos decorrentes da pressão da usina sobre as terras indígenas seriam devidamente controlados e prevenidos.
“Isso não vem acontecendo. Antes de Belo Monte e do projeto da Belo Sun, a terra indígena não sofria tanto essa pressão. Com as invasões, o trabalho de identificação da área técnica e a fiscalização começaram a ser impedidas pelos invasores. As condicionantes impostas para Belo Monte estão sendo ignoradas e colocando a existência desses indígenas em risco”, avalia Leonardo Lenin Santos.
Senador articula fim da terra indígena que beneficiará latifundiários
Desde 2016 —com o avanço das invasões, impulsionadas pelos empreendimentos da usina de Belo Monte e da mina de Belo Sun, segundo especialistas ouvidos pelo InfoAmazonia—, a TI Ituna-Itatá vem sendo fortemente pressionada por ruralistas.
Um dos principais articuladores pela suspensão dos estudos em Ituna-Itatá é o senador paraense Zequinha Marinho, que recentemente se filiou ao PL em busca de maior alinhamento político com o governo do presidente Jair Bolsonaro ( PL).
Em 2020, Zequinha Marinho e o antropólogo Edward Luz se reuniram com o ex-ministro Ricardo Salles para articular a permanência “dos produtores”, como chama o senador, dentro dos limites da terra indígena. A medida teria eficácia entre fevereiro e março daquele ano, mas nunca foi oficializada. Enquanto recebia garantias de Salles, o senador apresentou Projeto de Decreto Legislativo para suspender a portaria de restrição de uso da Ituna Itatá.
Duas semanas após o encontro, Edward Luz foi detido por fiscais do Ibama por estar ilegalmente dentro da terra indígena. Aos fiscais, ele disse que estava cumprindo o acordo firmado dias antes entre Salles e Zequinha contra destruição de “patrimônio de população em situação de fragilidade”. Salles disse que não conhecia o antropólogo.
Edward Mantoanelli Luz atua ao lado do seu pai, o missionário evangélico Edward Gomes Luz, que comanda a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). Segundo relatos, eles estariam produzindo estudos para provar que não existem isolados no território delimitado para os povos de Ituna-Itatá.
“Esse contra-estudo que tenta provar a não existência de isolados é totalmente desconexo da realidade já identificada pela Funai. Sem a restrição, esse povo está fadado à aniquilação”, afirma Gilderlan Rodrigues, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Ja vimos isso acontecer na história, à medida que a terra indígena é invadida esses povos isolados vão desaparecendo”, completa Rodrigues.
Os dados do CAR mostram que os pedidos para regularização de propriedade dentro da terra indígena não correspondem a pequenas propriedades, mas sim a grandes áreas.
Entre os que se auto declaram proprietários de parte da terra pública, está o empresário Jassonio Costa Leite, que em abril do ano passado gravou vídeo ao lado do senador Zequinha Marinho, em qual o senador critica a atuação dos técnicos do Ibama nas áreas invadidas pelo empresário. “Não é função do Ibama fazer desintrusão de terra indígena. Ituna-Itatá é uma pretensa terra indígena, o que é muito chato”, declarou o senador que chamou os fiscais do Ibama de “servidores bandidos e malandros”.
Naquele mês, Costa Leite recebeu três multas por desmatamento na terra indígena, que somam R$105 milhões, na operação que o identificou como um dos principais grileiros de Ituna-Itatá.
Fontes ouvidas pela reportagem informaram que o senador Zequinha Marinho participou de ao menos duas reuniões recentes na direção da Funai, onde teria tido acesso aos estudos da área técnica.
O InfoAmazonia questionou Zequinha Marinho, através de sua assessoria, sobre as afirmações da não presença de indígenas na região. “Quanto às questões técnicas, embora o senador tenha conhecimento que naquela área não existe a ocorrência de índios isolados, não emitirá opinião sobre o relatório. Novamente destacamos que sua atuação tem o único propósito de resolver o conflito agrário na região do município de Senador José Porfírio, que já se estende há mais de uma década.”
Não conseguimos contato com Edward Luz e com a Norte Energia, responsável pela usina de Belo Monte.
Apesar de ter se manifestado após decisão da Justiça Federal que determinou que o órgão emita a portaria de restrição para Ituna-Itatá, a Funai não disse se vai recorrer da decisão.