A cena, no Palácio do Planalto, lembrava um culto. Ou um comício. No centro, um pastor evangélico indígena. Ao redor, o presidente Jair Bolsonaro (PL), o presidente da Funai e delegado da Polícia Federal, Marcelo Xavier, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da presidência, general Augusto Heleno, o deputado federal Nelson Barburo (PSL-MT) e o cantor Sérgio Reis. “Tudo isso vai dar certo”, disse o pastor a Xavier.
Na transmissão ao vivo do encontro pela TVBrasilGov, em agosto de 2021, Bolsonaro explicou o que era “tudo isso”. Sem usar máscara, cercado por uma pequena multidão e por seguranças, o presidente afirmou que deseja aos indígenas o mesmo direito do “irmão fazendeiro”, de explorar suas terras, e que Xavier está fazendo um “trabalho excepcional”. No Youtube, o vídeo ultrapassou 308 mil visualizações e teve mais de 1400 comentários, como “PRESIDENTE, SUA AÇÃO É MUITO ACERTADA EM RELAÇÃO AOS ÍNDIOS!”e “Parabéns índios patriotas”.
Em um outro vídeo, de abril de 2021, com 160 mil visualizações, Bolsonaro afirma que a “nova FUNAI” interage cada vez mais com os indígenas, sem explicar o que isso significa na prática. A tese da “‘nova Funai’ e do “novo índio” – nomenclatura que não é aceita entre as comunidades, uma vez que os indígenas habitavam o Brasil antes da colonização –, é repetida em uma série de outros vídeos do presidente no YouTube e repercutida por canais de extrema direita.
Esse é resultado de uma análise dos conteúdos mais vistos no YouTube pelo projeto Amazonas: mentira tem preço. O levantamento, realizado pela Novelo, agência especializada em dados, reuniu os conteúdos mais vistos desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL) a partir de palavras-chave recorrentes na temática ambiental e indígena.
A narrativa distorcida da “nova Funai” e do “novo índio”, presente em um conjunto de vídeos virais, diz Leila Saraiva, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), lembra a política do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), da Ditadura Militar, responsável pelas frentes de colonização agrícola que se utilizavam da mão-de-obra indígena forçada. “É um projeto marcado fundamentalmente pela assimilação e pelo extermínio.”
Um dos vídeos, com quase 140 mil views, repercute uma declaração do presidente: “São irmãos nossos e tem gente que trata como se fosse alguém que tem que ser escondido em reserva, não querem deixar que eles evoluam, não quer deixar que eles plantem na sua terra, que explorem, que garimpem, que possuam pequena central hidrelétrica, que recebam internet.”
Para a Apib, entidade que representa comunidades indígenas de todo o país, “a ‘Nova Funai’ é sinônimo de Fundação Nacional de INTIMIDAÇÃO do Índio. A organização também denunciou Bolsonaro por crime contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional de Haia. “Denunciamos de forma inédita a política genocida e ecocida no Tribunal Penal Internacional e estamos pedindo o afastamento e condenação do presidente da Funai na Justiça Federal”. Em abril do ano passado, a Funai solicitou à Polícia Federal que investigasse uma das lideranças da APIB, Sônia Guajajara, por supostamente fazer campanha de calúnia e difamação contra o governo federal.
Em janeiro deste ano, a APIB entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra decisão recente da Funai, que retirou medidas protetivas de terras indígenas não homologadas (penúltima etapa do processo de demarcação de terras, em que o presidente em exercício homologa por decreto).
A pedido do MPF, diversas ações para proteger territórios indígenas chegaram à Justiça. Em uma delas, o presidente da Funai virou réu, sob acusação de improbidade administrativa, por descumprir decisão judicial que determinava avanços para demarcação de terra indigena Munduruku, no Pará.
Nos três anos de governo Bolsonaro, nenhuma terra indígena foi demarcada. Em contraponto, levantamento da APIB a partir de dados públicos, mostrou que o governo certificou, até maio de 2020, “114 fazendas no sistema de gestão de terras (Sigef), que sobrepõem áreas indígenas não homologadas, contrariando pareceres jurídicos prévios.” Juntas, essas fazendas equivalem a uma vez e meia a cidade de São Paulo.
“A Funai está em frangalhos e não respeita os povos indígenas. Não estamos falando de um povo ou de uma comunidade, são mais de 300 povos”, afirma a advogada Vanessa Teixeira, doutora em Filosofia do Direito pela USP, especialista em direito dos povos indígenas. “Não ter o território demarcado, direito previsto na Constituição Federal e nos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, significa não ter acesso à saúde, educação e políticas públicas.” Na pandemia, o presidente vetou a obrigação de o governo garantir acesso a água e leitos para comunidades indígenas.
Desde pelo menos 2013, ano após ano, a Funai vem sofrendo cortes financeiros sistemáticos e batendo recordes de “menor orçamento”. No governo Bolsonaro, o que se viu foi um movimento atípico: o aumento no orçamento destinado ao órgão. Em 2018, mostram dados da Transparência Brasil, foram R$ 596,9 milhões em despesas previstas e R$ 477,9 milhões executadas. Em 2021, R$ 642,9 milhões e R$ 507,9 milhões, respectivamente.
Ainda assim, mostra análise do Inesc, os gastos do órgão têm ficado aquém do desejado. “Ainda que a execução financeira esteja significativamente mais elevada em 2021, boa parte dos gastos diz respeito a restos a pagar, ou seja, compromissos firmados em anos anteriores”, apontou o relatório.
O convite à exploração
Uma das bandeiras da “nova Funai” é o incentivo ao etnodesenvolvimento. “O grande futuro para as Terras Indígenas… A Nova Funai é parceira dos indígenas nos projetos de etnodesenvolvimento e está aqui para orientá-los corretamente na direção mais segura de realizar suas atividades”, afirmou presidente da Funai, em artigo publicado pelo governo.
O etnodesenvolvimento é uma ferramenta para desenvolver projetos economicamente sustentáveis em terras indígenas, e já fazia parte da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída em 2012 por decreto presidencial. Mas, no novo governo, vem sendo usado como sinônimo para atividades exploratórias, na opinião de Domingos Barreto, 55 anos, do povo Tukano, que trabalhou como assistente técnico na Funai de São Gabriel de 2009 a 2011, e como coordenador regional de 2012 até 2018 e hoje atua na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Foirn.
“É preciso ser feito um debate honesto e sério sobre desenvolvimento. A proposta do Governo é desinformar e causar divisões com mentiras para a agenda ruralista avançar. Não existe preocupação em desenvolvimento social e econômico dos povos indígenas”, diz a APIB.
Do YouTube, a campanha da “nova Funai” de oportunidades chegou a grupos públicos do Amazonas no Whatsapp monitorados pela reportagem. Há registros de encontros organizados pela Funai e pelo governo. Um dos povos mais citados nesses vídeos são os Paresí, a “vanguarda do que queremos para os índios do Brasil”, como divulgado em vídeo no canal de YouTube do presidente em setembro de 2020, publicado também no canal da Funai, no Facebook do governo de Mato Grosso e no site do governo brasileiro. Eles são representantes e porta-vozes do “Grupo de Agricultores, Produtores, Caciques e Lideranças Indígenas do Brasil”, com integrantes no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Maranhão, Rio Grande do Sul e Pará. Uma minoria entre os povos, lamentou Bolsonaro em um dos encontros em Brasília.
Arnaldo Paresi contou que, em 2021, mais de 34 lideranças de diferentes povos ao redor do Brasil visitaram as terras Paresi para aprender com a experiência deles. Os Paresí são parceiros de fazendeiros na produção de soja em Mato Grosso e um case do governo estadual, com direito a vídeo institucional produzido – e compartilhado pela Funai. “Quando a gente fala em desenvolvimento econômico, a gente não tá falando necessariamente de agricultura, mas qualquer outro tipo de fonte de renda que possa ser explorada de maneira sustentável, é claro, para desenvolver a economia dos povos indígenas.”
O discurso do presidente Jair Bolsonaro afirmando que não demarcaria “nenhum centímetro” de terras indígenas, por exemplo, amplamente difundido pelas redes sociais, foi um dos fatores que contribuíram para o avanço das invasões de grileiros para dentro da Terra Indígena (TIs) Piripkura, no mesmo Mato Grosso dos Paresí, aponta o Ministério Público Federal no Pará. Atualmente há pelo menos 15 fazendas dentro da terra indígena.
A “nova Funai” militarizada no Amazonas
No Amazonas, existem seis coordenadorias regionais, responsáveis por implementar a política pública indigenista na ponta. Todas elas hoje são coordenadas por membros das Forças Armadas Brasileiras ou policiais.
“A entrada de militares em posições de chefia das coordenações e em outros postos tem dois impactos diretos. Primeiro, leva a lógica da polícia no Brasil sendo aplicada às comunidades indígenas. Segundo, tira de posições-chave técnicos e funcionários especializados”, pondera Leila Saraiva, assessora política do Inesc.
O ex-coordenador regional da Funai do Vale do Javari, Henry Charlles Lima da Silva, tenente da reserva do Exército, falou em “meter fogo” em indígenas isolados como resolução de conflito em julho de 2021. O militar fez ainda declarações mentirosas, dizendo que os povos isolados falavam português e recebiam cestas básicas. A Funai, à época, informou que a fala do funcionário não representava a posição da instituição. Lima só foi exonerado quatro meses depois pelo Ministério da Justiça.
No Rio Negro, o atual coordenador é Feliciano Borges Neto, subtenente do Exército e ex-vereador de São Gabriel da Cachoeira, conhecido como Borjão. Ele se candidatou nas eleições de 2020 mas não se reelegeu. Enquanto vereador, em 2019 Borjão entregou uma homenagem ao comerciante Manuel Carneiro Pinto, preso pela Polícia Federal em 2013 durante a operação Cunhantã, por crimes de exploração sexual contra meninas indígenas.
No Médio Purus, a coordenação fica a cargo de Manoel Arnóbio Teixeira Alves, policial militar, nomeado em junho de 2021. O coordenador da regional sediada em Humaitá, região do rio Madeira, também faz parte das Forças Armadas. É o tenente do Exército Cláudio Rocha, que foi acusado por representantes do povo indígena Mura de desviar voadeiras e motores de popa avaliados em R$ 60 mil, segundo investigação da Amazônia Real, em maio de 2021. A Funai negou qualquer irregularidade.
Outro lado
O governo federal não respondeu aos pedidos de posicionamento feitos pela reportagem, mas a Funai encaminhou, via assessoria de imprensa, uma nota em que “esclarece que, em vez de trabalhar com assertivas falsas, tem atuado, efetivamente, com medidas práticas de apoio à população indígena, a exemplo do investimento de cerca de R$ 34 milhões em ações de fiscalização em Terras Indígenas de todo o país em 2021. As atividades são fundamentais para coibir ilícitos, tais como extração ilegal de madeira, atividade de garimpo e caça e pesca predatórias”. O texto ainda menciona ações conjuntas de fiscalização e a afirma que houve redução de 22,75% no desmatamento em Terras Indígenas da Amazônia Legal entre 2020 e 2021, segundo o Inpe. Para conferir a nota na íntegra, clique aqui.
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