Sob argumento de prevenção de doenças, estado monitora rebanhos na Resex Jaci-Paraná, mesmo após Justiça restabelecer limites da unidade de conservação onde atividade é proibida.
O governo de Rondônia continua vacinando e fazendo o controle sanitário de rebanhos ilegais na Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná. As 160 mil cabeças de gado que hoje existem dentro da Resex, onde é proibida a pecuária extensiva, são monitoradas pela Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril de Rondônia (IDARON), vinculada à Secretaria de Agricultura do estado, sob a justificativa de manter os animais longe de doenças e assegurar a condição de estado livre da febre aftosa.
Em novembro de 2021, a Justiça de Rondônia anulou lei estadual aprovada seis meses antes, que tinha reduzido 90% da reserva, abrindo a possibilidade da regularização da área ocupada por mais de 500 pecuaristas registrados pelo IDARON.
Com a manutenção dos limites originais da Resex, todo gado em Jaci-Paraná é considerado ilegal, aponta o Ministério Público de Rondônia. Mas a proibição não inibe os invasores, que seguem criando e comercializando gado.
Plínio Augusto Ben Carloto, um dos maiores empresários de Rondônia, é dono de rebanhos que estão ilegalmente dentro da Reserva Extrativista Jaci-Paraná. O empresário confirma que seu gado é acompanhado pelo IDARON, responsável pelo controle vacinal e pelo cadastramento dos proprietários e arrendatários das fazendas.
Além do controle sanitário dos rebanhos, o IDARON também segue autorizando normalmente o transporte de animais de dentro da unidade de conservação.
Questionado sobre a ilegalidade do seu rebanho, Carloto aposta em “uma solução” que o livre de ser processado por manter pecuária extensiva dentro de uma área protegida. “Confio sempre na solução. Para tudo tem jeito, só a morte não se muda né?”, afirmou Carloto ao InfoAmazonia.
Carloto diz que nunca foi procurado pela fiscalização e que não enfrenta dificuldades para comercializar o gado criado dentro da reserva. “O GTA [Guia de Transporte Animal] está liberado lá dentro. O dia que proibirem, eu tiro meu gado de lá e levo para minha outra fazenda fora”, emendou.
O governador Marcos Rocha (PSL), que teria poder de determinar a fiscalização na Resex através dos órgãos ambientais do estado, não dá sinais de que vai agir para retirar o gado ilegal que se multiplica na unidade de conservação.
Excesso de reservas
Em 2020, o governador disse que Rondônia tem “excesso de reservas” e prometeu atuar junto com o governo Bolsonaro para reduzir essas áreas e avançar com a regularização fundiária.
Em maio de 2021, Rocha sancionou a Lei Complementar 1.089/21, aprovada a toque de caixa pela Assembleia de Rondônia, que tentou riscar do mapa uma área de 174 mil hectares da Resex, maior do que a área do município de São Paulo (152 mil ha). A mesma lei também reduziu 20% do Parque Estadual do Guajará-Mirim, a sudeste da reserva.
A medida abriria caminho para legalização do gado e das terras griladas ao longo de mais de duas décadas [ver box Duas décadas de invasões], e vigorou apenas por seis meses. O Ministério Público de Rondônia recorreu e, em novembro de 2021, a Justiça considerou a lei inconstitucional. O gado nessas áreas voltou a ser ilegal.
O Ministério Público confirma que vacinação e controle dos rebanhos continuam acontecendo. “É uma questão de saúde pública”, disse o promotor Marcelo de Lima, da Promotoria Ambiental de Rondônia. Ele diz que o MP tem combatido a situação com ações civis públicas de reintegração com base nos dados do IDARON e que a adoção de medida mais drástica sobre a vacinação poderia levar os mesmos produtores a buscarem a certificação do gado de outras formas. “Na prática, não evitaria que o gado fosse vacinado, só dificultaria o controle sanitário”.
O promotor também alega dificuldade para agir pois “existem diversas pessoas que são usadas como laranjas”, o que dificulta a responsabilização dos verdadeiros grileiros e donos dos bois.
Desde 2004, o MP já ajuizou mais de cinquenta ações civis públicas contra invasores na Resex. Parte desses inquéritos tiveram ganho de causa para a reintegração de posse, retirada dos animais e invasores. Mas a iniciativa contrasta com as ações dos governos estadual e federal. Em uma das ações, contra o próprio IDARON, o MP de Rondônia argumenta conivência histórica do órgão com a entrada de animais na reserva sob alegação de que a atividade da autarquia não é a fiscalização ambiental.
Por se tratar de reserva estadual, a competência da fiscalização ambiental da Resex fica a cargo da Sedam (Secretaria do Desenvolvimento Ambiental), mas o crescimento dos rebanhos dentro da reserva demonstra a falta de atuação do órgão. Em 2016, havia 80 mil cabeças de gado na Resex. Em 2020, quando Marcos Rocha enviou projeto de lei para redução da Resex à Assembleia, eram 120 mil animais. Este ano, segundo os próprios produtores, já são mais de 160 mil cabeças de gado no interior da reserva.
“Desde antes [da lei de 2021], nós já estávamos entrando com ações públicas contra os proprietários para saírem da área de reserva e perderem os bens, inclusive os animais, algumas ações chegaram a ficar paradas por causa da lei, mas agora voltam a tramitar normalmente”, explica o promotor Marcelo de Lima.
A vacinação do gado, tanto dentro como fora da reserva, é realizada por veterinários cadastrados e informada ao IDARON. Os técnicos da agência estadual atuam no controle da vacinação da brucelose, que é obrigatória em todo o estado, e também vacinando dentro da reserva, quando identificados focos graves de doenças como a raiva. O órgão também faz o monitoramento sorológico, por amostragem, e realiza a contagem de todo o rebanho da reserva semestralmente.
Associações e políticos que defendem a permanência do gado em Jaci-Paraná argumentam que a produção agropecuária na unidade de conservação é de pequenos agricultores que já ocupavam a região em busca de terra antes mesmo da criação da Resex.
“Em termos de documentação, existem mesmo famílias sofredoras vivendo lá e que sonham em ter um pedacinho de chão”, justificou Amilton da Silva, presidente da Associação dos Produtores Rurais de Minas Novas (Asprumin), também proprietário de gado em Jaci-Paraná, durante os debates que discutiram a redução da reserva.
Ivaneide Bandeira Cardozo, pesquisadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, de Rondônia, diz que apesar da decisão recente, que reestabeleceu os limites da Resex, nada mudou.
“A lei [que alterou os limites da Resex] foi declarada inconstitucional, mas os invasores continuam lá dentro e os danos ambientais continuam sendo praticados”, afirmou.
Em dezembro de 2020, Ivaneide apresentou manifesto assinado por mais de 50 entidades, incluindo WWF, Greenpeace, SOS Amazônia e associações indígenas, denunciado a destruição da floresta e o risco que correm os povos indígenas com o avanço do desmatamento e da agropecuária em áreas protegidas da Amazônia.
A Resex integra um mosaico de áreas de proteção que estão próximas ou no limite das terras indígenas Karitiana, Karipuna, Uru Eu Wau Wau, Rio Negro Ocaia, Lage e Ribeirão e das unidades de conservação Parque Estadual do Guajará Mirim, Parque Nacional dos Pakaas Novos, Flona do Bom Futuro e Resex Rio Ouro Preto.
“O ideal era fazer a desintrusão da área e todos que estão lá fossem retirados, o gado leiloado e que tivessem que pagar pelos danos ambientais que causaram à unidade de conservação”, afirma Ivaneide.
Na campanha eleitoral de 2018, em passagem por Porto Velho, Bolsonaro reclamou que Rondônia tem 25 terras indígenas e 53 unidades de conservação. “É um absurdo o que se faz no Brasil usando o nome ambiental”, protestou. Na verdade, o estado agrega 23 terras indígenas demarcadas e homologadas, além de 40 unidades de conservação estaduais e 24 federais.
Duas décadas de invasões
Quando foi criada, em 1996, a reserva de Jaci-Paraná tinha mais de 99% da sua área coberta por floresta. A região começou a sofrer as primeiras invasões na passagem da década de 1990 para os anos 2000. Proclamando-se donos das terras, os invasores expulsaram os extrativistas que moravam ali e que usavam os recursos naturais de maneira sustentável. Desde então, o gado ilegal se multiplica sob os olhos das autoridades e coloca a Resex entre as unidades de conservação mais desmatadas da Amazônia.
Em 2017, a área de pasto nos limites da reserva superou a quantidade de floresta em pé. Dados do MapBiomas mostram uma correlação direta entre desmatamento e áreas de pastagem.
Em 2004, o Ministério Público Estadual e o Federal começaram a mover processos coletivos com o intuito de reprimir as ocupações, mas nem sempre tiveram sucesso. As ações que tentavam obrigar o Estado, Incra e Ibama a fazer valer a legislação que protege a unidade de conservação do desmatamento não prosperaram. Passada uma década, em 2014, quando se estimavam 44 mil cabeças de gado na reserva, o MP decidiu pedir a suspensão da emissão das guias de transporte animal (GTA) dentro da área. Mais uma vez a medida não se efetivou.
Na época, o MP sustentou que “a emissão de Guia de Transporte Animal por parte do IDARON para proprietários de gado que está sendo criado no interior da Resex Jaci-Paraná fomenta a permanência de invasores e gera expectativa de futura regulamentação fundiária por parte do Estado, contrariando os anseios de proteção da própria UC”.
Em 2019, 49.223 animais que estavam dentro de Jaci-Paraná foram transferidos para fazendas e frigoríficos localizados fora da unidade de conservação, de onde a carne e o couro são vendidos ao mercado sem deixar pistas da ilegalidade. A manobra, conhecida como “lavagem de gado”, entrou no radar da Anistia Internacional, depois que a entidade analisou dados obtidos do IDARON, com base na Lei de Acesso à Informação. O relatório da Anistia mostrou que grandes frigoríficos compraram, por diversas vezes, gado de fazendeiros que criam os animais de modo ilegal.
Prefeito amigo da boiada
Roni Irmãozinho quase sempre usa chapéu de caubói em eventos oficiais. Dono de fazendas e de uma empresa de produtos veterinários para bovinos em Buritis, onde é prefeito no segundo mandato pelo PDT, Roni vestiu a camisa dos produtores que criam gado na Reserva Extrativista de Jaci-Paraná, segundo disse em publicação nas redes sociais, porque ajuda a economia do município a crescer.
Na campanha eleitoral de 2020, Roni Irmãozinho recebeu doação de campanha de pessoas que mantêm gado na Resex, como Andreia Correia de Paiva, que naquele ano criava mais de 500 cabeças de gado na reserva, segundo dados obtidos nos registros do Idaron. Até o procurador-geral do município, Fernando Bertuol Pietrobon, nomeado por Roni para o cargo em 2017, é dono de fazenda em Jaci-Paraná com mais de 400 cabeças de gado.
Os registros do IDARON também revelam que os próprios donos de gado na área da Resex atuam como auxiliares nas campanhas de vacinação, sendo treinados pelos veterinários do órgão. Na listagem dos auxiliares para vacinação em dezembro de 2021, Denilson Legora, dono de mais de 800 cabeças de gado na Resex, é listado para atuar na vacinação dos rebanhos em Buritis.
Fundado em 1995, um ano antes da criação da unidade de conservação, o município de Buritis tem pouco mais de 40 mil habitantes e abriga 21,65% da Resex.Em dezembro do ano passado, Buritis foi escolhido para realizar a última reunião da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado que debate a flexibilização da regularização fundiária nos projetos de leis 2.633/2020 e 510/2021. No encontro, portando seu chapéu de caubói ao lado do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), que conduziu a audiência, Roni Irmãozinho disse que “os produtores rurais precisam regularizar suas propriedades para conseguirem mais financiamentos”.
Do senador Gurgacz, o prefeito ouviu que as duas matérias que tramitam no Congresso vão beneficiar os produtores de Rondônia. Além de facilitar as regras para regularização fundiária em terras da União, as medidas abrem a possibilidade de autodeclaração dessas ocupações e de anistia a grileiros e criminosos ambientais.
Candidato à reeleição em 2022, Marcos Rocha já anunciou uma forma de continuar incentivando e apoiando os produtores de gado. Para isso, lançou uma nova modalidade de crédito rural para atender os produtores que não possuem títulos de propriedades da terra, atualmente exigidos pelas financeiras.
A nova legislação já está em vigor no estado e permite a obtenção de crédito rural somente com a apresentação do rebanho bovino disponível na propriedade como garantia e com anuência do IDARON, que fica com a tutela dos animais disponibilizados na negociação financeira. Com isso, o governo dribla as exigências de avalista e apresentação de escritura da propriedade, documentos que os invasores não possuem.
Questionamos o governador Marcos Rocha sobre a imposição de restrições para a atividade agropecuária na reserva e a continuidade da vacinação dos rebanhos ilegais, mas ele não respondeu. Ao InfoAmazonia, a assessoria do governador disse apenas que a decisão da Justiça de Rondônia, de novembro, “ainda será analisada”.
O presidente do IDARON, Júlio Cesar Rocha Peres, nos disse que “não é competência do órgão agir sobre questões ambientais e fundiárias”, e que a vacinação e o controle do rebanho se tratam de questões sanitárias.
“Nós precisamos ter conhecimento de origem e movimentação do gado independente da questão da regularidade fundiária ou ambiental, ou qualquer que seja a outra esfera”, afirmou. Segundo o superintendente, após o estado ter conquistado o selo de livre de aftosa, as exigências sanitárias —que garantem melhores contratos— aumentaram: “Em todos os estados que são livres de febre aftosa, o controle de todo o rebanho do estado se faz necessário”.
Contatado através de sua assessoria, o prefeito Roni Irmãozinho não atendeu a reportagem.
Também enviamos questionamento à Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (SEDAM), que não respondeu até o fechamento desta reportagem.