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Relato: vi a pandemia mais perto do que esperava

Em 13 de março de 2020, o primeiro caso oficial de Covid-19 era registrado em Manaus. Um ano depois, a jornalista Izabel Santos relata como tem sido viver o caos, a insegurança e as perdas da pandemia na cidade que ainda é epicentro da doença na Amazônia.

Em 11 de março de 2020, eu nem sabia o que era uma pandemia. Mas, pelas notícias que chegavam de fora, e pela proporção que a situação estava tomando, foi fácil entender o que significava. O primeiro caso oficial do novo coronavírus, porque Covid-19 ainda era uma palavra muito difícil, foi confirmado em Manaus no dia 13. Era uma mulher de 39 anos, recém-chegada de Londres, Inglaterra. Oficialmente, ela não foi um quadro grave, teve sintomas leves e logo se curou. Poucos dias depois, na noite do dia 24, chegou a notícia da primeira morte. Um morador de Parintins, município no interior do Amazonas, que tinha vindo para um evento de pesca em Manaus e voltado contaminado à sua cidade. Dias depois, ele foi transferido em estado grave e morreu no Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz.

No dia em que o primeiro caso foi anunciado em Manaus, eu já recebi a orientação de permanecer em casa e assim fiz. Uma semana depois, meu marido entrou em home office. Nesse intervalo, minha cunhada teve as aulas da faculdade suspensas. Desde então, a vida congelou aqui em casa, onde moro com os dois e com minha sogra, de 63 anos.

Alex Pazuello / Semcom
Alex Pazuello/Semcom

Muita coisa mudou, mas pouca coisa evoluiu. Um exemplo é minha cunhada, de 19 anos. Ela se esforçou muito para passar no vestibular na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Era um sonho coletivo vê-la finalmente caminhando rumo à vida adulta. Mas ela só teve uma semana de aula. Todo o material “escolar”, a mochila nova, o caderno, está tudo sobre a escrivaninha aguardando o dia que nunca chega de serem usados. Ela é a minha régua de progressão do tempo e da vida nessa pandemia.

Entre abril e maio eu achava que muita gente estava infectada. Praticamente todos os meus amigos jornalistas contraíram Covid-19. Conto nos dedos aqueles que disseram que não tiveram sintomas ou a doença. Sabíamos muito pouco sobre ela e uma orientação da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM) era que não usássemos máscaras, para evitar a autocontaminação e a falta do item no mercado. Logo isso foi revisto e todo mundo passou a usar máscaras.

Não tardou muito, a pandemia começou a se materializar em imagens chocantes. Teve um dia que saí para ir a casa da minha mãe e vi filas enormes nos bancos pelo caminho, pessoas de todas idades e em todas as condições (até mães com crianças) se aglomerando debaixo do sol do verão amazônico, aguardando para receber algum dinheiro do auxílio emergencial. Os enterros em valas coletivas, cavadas com retroescavadeiras, corpos aguardando remoção dentro das UTIs e câmaras frias nas áreas externas dos hospitais completaram o cenário de terror.

Raphael Alves/Amazônia Real
Sepultamento de vítima da Covid no Cemitério Nossa Senhora Aparecida no Tarumã, Manaus, em 01 de março de 2021.

Para falar a verdade, o que vivemos entre dezembro e janeiro de 2021 até me fez esquecer o que vi em abril e maio de 2020.

Depois que a primeira onda “passou” a maior parte dos manauaras esqueceu o que aconteceu e retomou a vida praticamente normal. Repetiam “Ah, mas todo mundo já pegou! Já estamos praticamente imunizados aqui”,  “Manaus venceu o vírus ignorando a Covid-19”. O discurso estava embasado na famigerada teoria da imunidade de rebanho, ou imunidade coletiva.

E sim, a vida meio que voltou ao que era antes. Revi alguns amigos pessoalmente, saía algumas vezes, mas sempre evitando locais fechados ou com muita gente.

Com a chegada do fim do ano e todo aquele clima de Natal e Ano Novo, as pessoas ficaram eufóricas, o comércio animado para faturar e as pessoas pareciam ter perdido a noção do perigo. Teve confraternizações, centros comerciais lotados… aí começaram a surgir mais casos e internações. A essa altura, já estávamos sob restrições mais severas, mas a maioria das pessoas estava mais preocupada com o impacto econômico da pandemia. Isso resultou em manifestações de rua que obrigaram o governo a recuar e flexibilizar as regras que nem eram tão rígidas assim.

De uma hora pra outra tivemos uma explosão de casos. Muita gente, mas muita gente mesmo, contraiu o novo coronavírus. Foi justamente nessa época que a Fiocruz Amazônia identificou a circulação da variante P1 na cidade. Não demorou para a situação começar a repercutir nos hospitais que, lotados, entraram em novo colapso em menos de um ano.

Logo depois do Natal, lá pelo dia 28, minha cunhada começou a ter tosse. Era uma tosse que não passava. A menina tossia dia e noite. Ingenuamente, nós achávamos que tinha a ver com a chuva, pois desde outubro chove muito em Manaus. Não. A tosse só fez piorar, depois veio a fraqueza, vômito, irritação intestinal, falta de apetite, calafrios, febre…foram mais ou menos 15 dias de cama. A Covid-19 tinha entrado na nossa casa e a gente não sabia como.

No auge do desespero, fomos atrás de atendimento médico, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e em um hospital estadual. Demos com a cara na porta em ambos. A justificativa era que não tinha médico e que minha cunhada “não estava tão mal, pois tinha saturação acima de 95”.

Uma coisa me chamou a atenção na UBS. A porta de entrada do público era uma só. Pela mesma porta entravam todas as pessoas, inclusive mulheres grávidas. Tinha uma grávida, com um barrigão, na mesma recepção que estávamos. Uma recepção fechada, com ar-condicionado.

A Covid-19 passou. Minha cunhada hoje está bem de saúde, mas ainda tem crises de dermatite intensa e, agora, queda de cabelo.

Mas nunca vou esquecer da sensação de estar no olho do  furacão. Achava que minha família estava protegida, porque tomávamos todas medidas para evitar a infecção, mas de repente nos vi igual a todo mundo: indo às farmácias lotadas, usando duas máscaras e face shield, atrás de termômetro, oxímetro e testagem.

Perdi muita gente querida, de amigos a conhecidos que vão fazer falta ao mundo, gente que eu admirava muito. Mas as perdas não pararam, quase todo dia morre algum conhecido e junto com ele morre um pouco do mundo que eu conheço (ou conhecia?) também.

É muito doloroso passar perto do Cemitério do Tarumã, na zona Oeste de Manaus, o cemitério público que mais recebe sepultamentos na cidade. As pessoas que não podem entrar para acompanhar as cerimônias lotam as grades do local com homenagens aos entes queridos, com coroas de flores, fitas, cartazes.

Um dia passei por lá e tinha uma fila de mais de um quarteirão de carros enfileirados esperando a vez dos enterros. Outra vez, no espaço de 15 minutos contei oito, isso mesmo OITO, cortejos fúnebres, com filas e filas de veículos, seguindo em direção a esse cemitério para a despedida de pessoas que tinham uma história, que vão fazer falta para outras pessoas. Não dá pra não chorar ou ficar angustiada ouvindo a sirene dos carros das funerárias.

Em 14 de janeiro, Manaus parou de respirar. Foi o dia que acabou oxigênio nos hospitais públicos da cidade, o dia da asfixia. Uma verdadeira demonstração de descaso e falta de humanidade. Naquele dia, famílias foram destruídas, vidas mudaram para sempre. Imagina a revolta que é saber que sua mãe, seu pai, seu filho, um amigo, seu amor, um dos seus avós, pessoas queridas morreram asfixiadas? Naquele momento TODOS os hospitais da cidade, públicos e particulares, estavam colapsados.

Ninguém nos deu, ainda, uma explicação, uma justificativa ou fez um pedido de perdão. Nada.

Os hospitais continuam muito cheios em Manaus. A situação ainda requer muita atenção e cuidado, mas infelizmente parece que o manauara está se adaptando a essa vida. Eu não percebo mais ninguém com a apreensão que a pandemia pede. Acho que isso se deve à normalidade com que as autoridades tratam a situação. Ver o presidente da República esnobando o novo coronavírus e o governador não chamar lockdown de lockdown, deixa as pessoas tranquilas. Parece que está tudo sob controle, mas não está. A gente tem que dar os nomes certos às coisas por uma questão de honestidade.

A vacina chegou e trouxe um pouco de alívio à tensão do confinamento. Pelo menos agora a gente espera ter menos chances de morrer de Covid-19. Os idosos da minha família já não aguentam o isolamento. Meu pai diz que não consegue mais andar direito. “Vivo dentro de casa, trancado. Tô até com dificuldade de ouvir e enxergar, porque não converso e não vejo mais meus amigos”, diz.

Por outro lado, minha sogra, que adorava dançar nos boleros por aí, diz que não sabe se quer retomar a atividade. “Morreu muita gente, acho que mais da metade dos meus colegas de dança”.

A gente vai precisar se adaptar ao que restou dos nossos mundos. Acredito que o Amazonas ainda vai conviver por um tempo com a Covid-19. Mas espero que na próxima crise sanitária, o estado não tenha que enterrar  mais de 11 mil pessoas para aprender a lição. E, também, que não seja necessário testemunhar o adoecimento e todas as consequências de uma doença na vida de 330 mil pessoas. Nada justifica e nem explica a desumanização e crise humanitária que foram impostas à população de Manaus. A pergunta que fica é: quantas vezes vamos ter que viver isso?

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Izabel Santos

Jornalista formada pela Faculdade Martha Falcão, mora em Manaus (AM), tem mais de dez anos de atuação em comunicação multimídia com passagem por veículos como rádio CBN Amazônia, TV Amazon Sat,...

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