“Os povos indígenas possuem práticas terapêuticas milenares. Todo esse conjunto de conhecimento especifico dos povos indígenas está cada vez mais sob ameaça, principalmente pela falta de reconhecimento enquanto regime de conhecimento diferenciado. Hoje, diante da pandemia podemos ver a vitalidade do conhecimento indígena na cura dos corpos-ambiente.”
João Paulo Barreto Tukano e Thiago Mota Cardoso*
Os povos indígenas estão presentes nessa terra há milênios. As culturas indígenas foram responsáveis pelo desenvolvimento de tecnologias em arquitetura, cerâmica, manejo da floresta, manejo da terra, manejo dos rios, no desenvolvimento da medicina e cuidados com o corpo.
Estes conhecimentos foram esquecidos pela ciência e politicas de Estado, e os povos foram obrigados a negar seu próprio mundo, seus saberes e memória. Como consequência, as línguas e os conhecimentos indígenas, que poderiam ser importantes para a sobrevivência da floresta e a manutenção de sua biodiversidade, sofreram um apagamento ao longo do tempo.
Na Amazônia, em tempos de pandemia, o coronavírus esta levando os mais velhos, morrem com eles todas as memórias de um povo. Uma verdadeira hecatombe que atinge os povos indígenas e afeta a existência de corpos e saberes. Todavia, ao mesmo tempo a pandemia mostrou que os conhecimentos indígenas têm vitalidade e importância para toda humanidade.
É bom lembrar que todas as sociedades tem explicações para os ciclos de saúde e doenças, e é bom sabermos que para estas sociedades o corpo se constrói em relação com o ambiente. Todas as sociedades tem suas formas de compreender a doença, seus curadores e suas ciências de cura. Em geral, os povos indígenas que vivem na Amazônia compreendem a doença e fazem suas curas com o olho no corpo e suas relações sociais e ambientais de acordo com suas cosmologias.
Os povos indígenas do alto Rio Negro, por exemplo, habitantes da Amazônia brasileira, tem entendimento próprio deste complexo de doença e cura. Para estes povos é importante olharmos a noção de corpo e como esta noção é diferente da perspectiva dos médicos do mundo ocidental. Para o povo indígena Tukano o corpo se constitui da seguinte forma: corpo se faz boreyuse kahtiro (luz/vida), yuku kahtiro (floresta/vida), dita kahtiro (terra/vida), ahko kahtiro (água/vida), waikurã kahtiro (animais/vida), ome kahtiro (ar/vida) e mahsã kahtiro (mahsã/vida). O corpo é a síntese de todos os elementos e um equalizador das substâncias, para manter o equilíbrio.
Segundo os kumuã (pajés), o corpo humano é uma combinação de seis substâncias feita sob medida. O seu desequilíbrio é entendido como consequência de desequilíbrio das substâncias.
O equilibro do corpo envolve nossas relações com o ambiente. Do ponto de vista indígena, o ser humano está inserido numa teia de relações com outros seres, com os waimahsã, com os animais, os especialistas, com seus parentes e outras pessoas. A má relação que estabelecemos com o mundo terrestre e os seres que habitam no cosmo se manifesta num conjunto de fatos “anormais” sob formas de doenças desconhecidas, grandes impactos de fenômenos naturais, escassez de recursos naturais, desequilíbrio de bioindicadores de tempo, entre outros fenômenos anormais, afetando nossa vida social, política, econômica e ambiental”.
O povo indígena Munduruku, que habita o vale do Rio Tapajós, também na Amazônia, também possui seus conhecimentos que ligam corpo e as relações com o cosmo. Diante da construção de hidrelétricas em seu território e da proliferação de garimpo, os Munduruku diagnosticam o aumento de doenças causadas pelo desequilíbrio que envolve a relação dos corpos indígenas com outros seres que habitam a awaidip (seres/mata/floresta) e o idixidi (água/rio/maior). Cabe aos pajés Munduruku aplacar as doenças causadas pelo desequilíbrio imposto pelas perturbações que lhes são impostas.
Os povos indígenas possuem práticas terapêuticas milenares e no Alto Rio Negro são ainda muito difundidas. Assim como os Munduruku, têm o pajé como especialista da maior importância. Estas práticas envolvem a bahsese e uso das plantas medicinais. Bahsese (benzimentos) – são conjuntos de fórmulas de “benzimentos” usadas pelos especialistas indígenas, mais conhecidos como pajés, para curar as doenças.
Em outros termos, bahsese é o poder e habilidade dos especialistas (pajés) em evocar, invocar as substâncias curativas dos vegetais, minerais e animais. E por em ação as qualidades sensíveis (amargura, doçura, acidez, frieza, etc) que produzem efeito de abrandamento e curar da doença. Nesses momentos são utilizadas plantas medicinais da floresta e dos quintais para prevenção e tratamentos de doenças.
Todo esse conjunto de conhecimento especifico dos povos indígenas está cada vez mais sob ameaça, principalmente pela falta de reconhecimento enquanto regime de conhecimento diferenciado pelo Estado.
Ainda é mais eminente o impacto aos conhecimentos dos povos indígenas quando na implementação da politica de saúde e de medicalização nas comunidades e aldeias indígenas. No processo de contato, foram levados a negar o próprio conhecimento durante décadas e, agora, são doutrinados pela ciência que impõe o esquecimento como politica. Incentiva-se a dependência química e científica.
Há um desafio de promover dialogo simétrico entre os conhecimentos científicos construídos nos centros de pesquisas com os modelos indígenas. São teorias e modelos de conhecimento distintos. Os conhecimentos gerados pela ciência devem levar em consideração o que já foi produzido pelos povos indígenas em suas terras, um trabalho reverso ao que foi feito ao longo de décadas, desde a colonização do Brasil.
Precisamos de conhecimentos que seja capaz de dialogar com esse modelo de compreensão do mundo. Os conhecimento indígena não está focado apenas na questão objetiva, como na ciência. Estes conhecimentos estão muito além.
A cooperação entre ciências pode começar com a descolonização do pensamento para lidar com as populações indígenas. Para isso, a ciência deve estar aberta para outros modelos de conhecimentos. O entendimento é essencial para a construção de novas cooperações com conhecimentos milenares, como os dos povos indígenas. Os “brancos” estão abertos ao diálogo?
*João Paulo Tukano é Yepamahsã (Tukano). Graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Antropologia Social pela UFAM. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena – NEAI e fundador do Centro de Medicina Indigena Bahserikowi.
Thiago Cardoso é biólogo e professor de Antropologia na UFAM. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena – NEAI
Pandemias na Amazônia é um mapeamento colaborativo das narrativas e relatos sobre os modos de pensamentos e as estratégias dos povos indígenas e comunidades tradicionais em torno das crises epidêmicas e ambientais na Amazônia.
O projeto desenvolvido pelo NEAI/UFAM (Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena) com o InfoAmazonia permite às comunidades e/ou seus mediadores inserir em uma plataforma digital conteúdo de texto, áudio e vídeo