Indígenas que sabiam da doença fugiam para locais distantes, um dia inteiro de jornada, adentrando na floresta e fazendo pequenos tapiris provisórios nas proximidades das roças
Indígenas que sabiam da doença fugiam para locais distantes, um dia inteiro de jornada, adentrando na floresta e fazendo pequenos tapiris provisórios nas proximidades das roças
por Jonilda Hauwer
Indígena Tariana (Talyáseri Makuía) da região do alto Rio Negro. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas – PPGAS/UFAM. Linha de pesquisa: Antropologia da Amazônia Indígena, com Título do projeto “O olhar Tariana sobre os insetos”. Membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena NEAI/UFAM. Graduada em Licenciatura em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2018). Atuou como Bolsista da Iniciação Científica do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, nas áreas de macroinvertebrados bioindicadores e desenvolveu atividades na Área de Proteção Ambiental Acariquara e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Tupé (REDES).
Abro esta resenha agradecendo pelas narrativas de meus pais, Uhiaka e Nanaĩ, que buscaram, no fundo de suas memórias, histórias de antigamente. Meu pai é filho de branco húngaro com índia tariana e minha mãe é tariana Makuya – pense na mistura.
Quando ainda criança, em 1957, a moradia de meu pai ficava em uma pequena vila chamada Santa Maria, em Iauaretê, onde as casas eram feitas de palha. Na época já havia lá pessoas que os indígenas chamavam de “branco”: eram principalmente padres europeus (fundadores da missão salesiana) e freiras vindas de outras regiões do Brasil. Na época ainda não existia o internato salesiano, e a escola local tinha apenas até o elementar (que seria a 5a série).
Já naquele tempo ouvia-se falar de doenças consideradas muito perigosas, que traumatizavam a todos, as mais conhecidas eram: a catapora, a coqueluche, o sarampo, a tuberculose e a bexiga (esta provavelmente era a varíola, uma vez que causava bolhas grandes por todo corpo e muita febre).
De modo geral, os moradores consideravam todas essas doenças como gripes que se manifestavam de diferentes formas. Entre as mais temidas dessas doenças estavam a bexiga e a tuberculose, que os moradores locais sabiam que tinham sido trazidas pelos brancos.
Infelizmente essas doenças se proliferavam de maneira rápida e mortal, por conta do modo de vida que as pessoas levavam nas aldeias ou mesmo nas comunidades, pois tinham costume de compartilhar tudo entre eles, principalmente em dias de festejo, onde era considerado até uma afronta se alguém, mesmo o “branco”, se negasse a compartilhar a mesma cuia onde se oferecia a bebida ou o alimento, e assim ia se transmitindo as doenças, chegando até mesmo aos povoados mais longínquos.
Por conseguinte, aqueles indígenas que sabiam que a transmissão ocorria dessa forma fugiam para locais distantes, um dia inteiro de jornada, adentrando na floresta e fazendo pequenos tapiris provisórios nas proximidades das roças. Isso ocorria sempre que era comentado no povoado que pessoas estavam por chegar na comunidade, provavelmente trazendo doenças. Podiam ser familiares que chegavam de viagem, às vezes já com certos sintomas de gripe, ou os próprios salesianos. Esse era o momento de fazer o isolamento, ou seja: fugir mesmo.
A maioria das famílias se isolavam em torno de 30 dias, isso porque no local onde acampavam tinha como continuar cuidando da roça e conseguir alimento, caçando e pescando nos igarapés. Após esse período, uma pessoa da família (geralmente o pai) ia até o povoado para se inteirar da situação, pois essa era uma forma segura de se certificar que a família poderia retornar às atividades junto do seu povo sem o risco de contrair esta ou aquela moléstia.
Porém a família, antes de retornar, mesmo assim fazia o wetidarese (benzimento de proteção), só para garantir.
Por outro lado, havia famílias que moravam em lugares distantes, como em ilhas e nas margem do rio, caso de Nanaĩ. As narrativas sobre as doenças perigosas chegavam até às famílias por meio de pessoas que retornavam da missão salesiana, aonde tinham ido fazer trocas de produtos como farinha, banana, peixe, tucum, moqueado entre outros, por mantimentos como anzol, sal, sabão, espoleta, chumbo, terçado, querosene etc. Essas pessoas traziam tristes notícias de mortes e doentes. Quando esses relatos se espalhavam em tempos de festejos (como Páscoa, festas juninas e Natal, por exemplo), onde todos eram convidados, as famílias não se atreviam a participar.
Além do mais, até mesmo pequenas reuniões por perto eram canceladas, tudo para evitar contato com outras famílias. Por esses familiares já estarem em condição de isolamento não era preciso adentrar na floresta, pois já estavam seguros. Pode se considerar que o medo assolava a todos quando pois haviam casos de mortes por conta do contágio.
Minha mãe narra o caso de suas duas irmãs, uma tinha um ano e outra de seis meses de vida, que faleceram de coqueluche na mesma data, a mais velha pela manhã e outra mais nova pela tarde; com certeza um grande sofrimento para a família, principalmente para uma mãe. O contágio das duas crianças supostamente ocorreu por conta dos viajantes de outros povoados que retornavam e tinham que obrigatoriamente parar naquela ilha para pernoitar, momento em que eram recebidos pelos anfitriões de maneira amistosa, tanto que o avô de minha mãe (que era Kumu) conversava com as pessoas até altas horas da noite, ali era servido alimento e bebida.
Outra forma de transmissão era por meio dos indígenas trabalhadores no seringal da Colômbia, pois ao retornarem já vinham contaminados, infelizmente.
Na atualidade, mesmo aqueles indígenas que estão em um contexto urbano, ao ficarem frente a frente com as ameaças das doenças dos “brancos”, como é o caso do Coronavírus, sentem que a forma mais concreta de proteção é ir para bem longe. Minha mãe relata que minha avó, uma idosa de 86 anos da etnia Baniwa, quando ouviu falar da chegada do Coronavírus na cidade de Manaus, ficou desesperada e com medo, e lembrou de sua infância. Minha avó disse que quando os pais ouviam falar de doenças horríveis chagavam a se isolar em meio as formações rochosas (chamadas por ela de “casa de pedra”) localizadas nas imediações das roças e próximo aos igarapés. Recordando disso, teve vontade de ir embora para esses lugares, para se proteger dos acontecimentos atuais.
Esse comportamento nada mais é do que o bom e velho isolamento social colocado em prática, já naquela época, pelos indígenas. Porém, vale notar que não deixavam de exercer suas atividades continuavam caçando, pescando e plantando, o que é uma coisa positiva considerando esse contexto.
Porém, não podemos concluir sem refletir sobre a principal doença de “branco” que assola os indígenas de todas as idades e regiões do nosso Brasil: o alcoolismo. E para essa moléstia parece não haver quarentena ou isolamento que resolva, e tampouco percebemos algum tipo de interesse, desde sempre, da parte das autoridades em encaminhar uma solução para esta enfermidade que é tão mortal quanto as descritas acima e que tanto assolaram e amedrontaram meus ascendentes.
Temos neste caso um agravante que dá uma dimensão ainda maior para o problema: enquanto antes os indígenas fugiam das doenças para se proteger, no caso do álcool eles correm atrás e não percebem que estão em um caminho sem volta que pode comprometer seriamente sua saúde e até mesmo leva-los à morte.