A quarentena, imposta pela Covid 19, em pleno período de quaresma. conduz-nos à uma reflexão de que esse modelo de vida social, política e econômica que desconsidera os Outros, habitantes do domínio aquático, terra/floresta e aéreo, é capaz de provocar desequilíbrios sem precedentes
A quarentena, imposta pela Covid 19, em pleno período de quaresma. conduz-nos à uma reflexão de que esse modelo de vida social, política e econômica que desconsidera os Outros, habitantes do domínio aquático, terra/floresta e aéreo, é capaz de provocar desequilíbrios sem precedentes
por João Paulo Lima Barreto
Indígena do povo Yepamahsã (Tukano), nascido na aldeia São Domingos, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Graduado em Filosofia, Mestre e Doutorando em Antropologia Social pelo programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas. Pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Antropólogo, professor, consultor, idealizador e co-fundador do Centro de Medicina Indígena da Amazônia. Temas de atuação: Cultura e conhecimentos indígenas, educação escolar indígena, saúde indígena, formação de lideranças indígenas, consultoria e assessoria ao movimento indígena.
Antes de começar, eu gostaria de saudar aos meus parentes afins, Silvio Bará e Justino Tuyuca, que me precederam escrevendo textos reflexivos sobre o tempo sombrio que estamos vivendo, analisando, a partir da lógica indígena, os riscos e perigos do Covid-19. Na oportunidade, agradeço também aos os amigos do NEAI que nos incentivam a escrever, em especial ao mestre Gilton Mendes, que, com seu entusiasmo e desafio motivacional, nos contagia para pensar e escrever textos sobre temas relevantes e necessários.
Seja coincidência ou não, independentemente de fé e credo, estamos em tempo de Quaresma, ou melhor de Quarentena, decretado pelos riscos de pandemia que o Covid-19 representa à saúde pública. Para os cristãos, a Páscoa é precedida pelo tempo de Quaresma, período dedicado, sobretudo, à penitência em preparação à Páscoa, e esta tem a ver com a morte e sua transformação.
A quarentena imposta pelo Covid-19 para todos, talvez seja o tempo com sentido de quaresma, um período de remorso, com experiência de lidar com as mortes todos os dias. Dessa experiência buscar outra maneira de relacionar com tudo que existe ao nosso redor e com os Outros.
Eu nasci e cresci em Huremiripa (Corredeiras do Rouxinol), lugar conhecido como comunidade São Domingos, no Rio Tiquié, Alto Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Quando eu era menino já grandinho, antes de minha partida para o internato dos Salesianos, para continuar os estudos entre a quinta e a oitava série, o que hoje correspondem ao ensino fundamental, minha mãe resolveu visitar seus “parentes” que moravam na fronteira entre Brasil e Colômbia, na comunidade chamada de Porto Ayacucho. Antes de partir, meu pai dedicou um bom período para pescar e armazenar peixes moqueados para ofertar aos seus cunhados.
Também dedicou seu tempo para esculpir bancos para serem levados e doados aos seus cunhados especialistas.
No dia marcado, viajamos. Depois de alguns dias remando rio acima chegamos à comunidade dos irmãos de minha mãe. Todos já esperavam nossa chegada, mas a estrela da viagem era minha mãe. Os anfitriões esperavam ansiosamente sua chegada, pois ela era a irmã primogênita de todo aquele grupo de irmãos. Lembro que nossa chegada foi uma verdadeira festa. Depois de acomodados no aposento especificamente preparado para nós, meus pais começaram a distribuir os presentes e dividir os peixes moqueados.
Os “bancos tukano” e os peixes moqueados representavam o estilo especifico de vida dos Yepamahsã (Tukano). Assim, presentear com o banco e distribuir peixes, foi como estender os bens mais preciosos da vida dos yepamahsã aos parentes afins, os cunhados. Ficamos entre meus tios e avós maternos por cerca de quinze dias. Durante esse período, eu sempre vi meu pai acompanhar os seus cunhados kumuã, seja para ir ao roçado apanhar folhas de patu, ou para torrar, pilar e pulverizar o produto. Ao anoitecer ele participava da roda de conversa dos kumuã seus cunhados, consumindo o pó de patu até altas horas da noite. Às vezes eu ficava perto do meu pai, até adormecer.
Nessas horas eu ouvia os kumuã contarem as narrativas míticas (kihtiukuse), fazer o bahsesee falar sobre as cerimônias rituais do bahsamori, só que a linguagem era de outro nível, não era aquela do dia a dia que meus avós contavam para as crianças no pátio da comunidade. Era conversa de gente adulta, como costumavam dizer.
Passados aqueles dias de convivência intensa, minha mãe comunicou aos seus parentes o dia do nosso retorno. Com o aviso, todos os anfitriões se mobilizaram para promover uma grande festa (poose) para minha mãe. Dividindo-se em pequenos grupos partiram para a caça, outros foram esculpir canoa e outros foram coletar buriti. Minha mãe, junto com as mulheres anfitriãs, fez muito caxiri (cerveja) e os kumuã dedicaram-se ao preparo do patu, do tabaco e do bahsese de apaziguamento.
Antes da festa de poose (dabucuri) todos se pintaram, inclusive as crianças. A pintura corporal tinha o mesmo objetivo, isto é, proteger o corpo contra o ataque dos waimahsã (que poderiam “invadir” a festa para vingar das caçadas aos seus bichos de estimação, das coletas dos frutos dos seus quintais) e também dos confrontos interpessoais, além da estética corporal.
Aquele poose durou dois dias, com começo, meio e fim. Entendi, a partir de toda explicação da minha mãe, que a festa de poose seguia uma lógica própria. Era um momento de socialização, ao mesmo tempo era momento de interação com os waimahsã.
Após os dias de festa de poose, houve um período de descanso dos que participaram diretamente da festa. Eles tiveram que cumprir um período de dieta.
No momento da partida minha mãe ganhou de presente carne de caça em grande quantidade. Meu pai ganhou muito patu, duas canoas pequenas para a pesca e uma grande para as viagens longas. Além de tudo isso, voltamos com muita polpa de buriti. Quando chegamos em casa, meus pais distribuíram a carne de caça e a polpa para as famílias da comunidade. Esta era uma atitude esperada pelas de quem voltasse de uma visita aos seus afins, sogros e cunhados.
Breve comentário
O estilo e a dinâmica de vida dos povos indígenas do alto Rio Negro seguem um modelo bem definido que norteia as relações entre os humanos, e destes com os waimhasã, que habitam no domínio aquático, terra/floresta e aéreo, que são responsáveis/guardiões pelos recursos naturais do seu habitat.
O usufruto dos recursos naturais implica em acessar as coisas que estão sob os cuidados dos waimahsã que moram naqueles lugares, seja a caça, a pesca e qualquer outro tipo de recurso. Dessa maneira, antes de grandes excursões de caça ou de pesca, os especialistas entram em contato com os waimahsã daqueles lugares por meio do bahsese, para comunicar a atividade de caça ou de pesca. Segundo os especialistas, a ação, além de comunicar a entrada das pessoas para caçar ou pescar naqueles lugares, também consiste em oferecer objetos como tabaco, ipadu, caxiri e artefatos como troca. Isto é feito como forma de agradecer aos responsáveis pela gentileza em dispor daqueles recursos que estão sob sua responsabilidade.
Essa troca garante uma relação equilibrada, como também garante que os responsáveis pelos recursos nunca faltem. Caso contrário, os seus responsáveis podem provocar a infestação de doenças para atingir o maior numero de morte de pessoas como forma de atacar e exigir a troca. Essa é a regra imprescindível.
O usufruto exacerbado dos recursos naturais, seja de natureza animal ou vegetal, sem a devida interação e comunicação com os seus responsáveis/guardiões, do ponto de vistas dos especialistas indígenas, é uma evocação ao conflito e ao desequilíbrio ambiental sem precedente.
A manifestação de desiquilíbrio se dá nas formas de surtos de doenças, falta de recursos, conflitos, acidentes, entre muitas outras anormalidades. Os especialistas dizem que é a vingança dos waimahsã.
Assim as relações interpessoais é fundada na reciprocidade de certas práticas concretas: partilha, produção de alimentos, solidariedade, cuidado com as pessoas.
A partilha, para os povos indígenas, tem um significado muito especial, é uma prática fundamentada na noção de unidade social, chamada de nikuporãtise. Numa tradução literal seria: “filhos de um mesmo homem, ou originários das mesmas condições”. Desse ponto de vista, a partilha não representa apenas um sentido de divisão entre as pessoas, mas uma representação de unidade e significações, pois não se partilha o excedente, partilha-se o que se tem. A partilha mantem e dá continuidade à rede de sociabilidade. Não partilhar tem um sentido de auto-isolamento, fechamento à sociabilidade. Este caso é chamado de nikuporãmarigu (anti social) pelos Yepamahsã (Tukano).
Consequentemente, é uma maneira de negar-se a solidariedade. Olhar a partilha como o simples gesto de dar é extremamente redutivo, uma vez que a partilha está diretamente ligada à obrigação moral e à solidariedade.
A Produção de alimentos está associada diretamente à prática da solidariedade. Nessa perspectiva, a capacidade produtiva não só objetiva resolver a alimentação, mas uma prática de compromisso, através da qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada uma delas a todas, movidas pelo espírito de nikuporãtise. As caçadas, pescarias e expedições de coleta, quando são bem-sucedidas, todos são convidados para participarem dos resultados, inclusive os waimahsã. Dessa maneira, não adianta ser bom provedor, produtor de alimentos e trabalhador se não for solidário.
A Solidariedade, tanto no trabalho quanto na produção de alimento, como prática de compromisso social, constitui um princípio de relação que os humanos estabelecem entre si e com os seres habitantes do domínio aquático, terra/floresta e aéreo. A prática de posse, por exemplo, é um meio de solidariedade entre os humanos, e destes com os waimahsã, e uma forma de reatar os laços de compromisso e de comunicação para manter as relações equilibradas, e, consequentemente, isso garante o equilíbrio do ambiente.
Outra noção fundamental que norteia as relações é o cuidado com as pessoas. Todos os pontos assinalados acima são produções de cuidados de pessoas. Os povos indígenas do alto Rio Negro são essencialmente produtores de cuidados. A comunicação, mediada pelos especialistas, com os responsáveis pelos recursos naturais é ação de mitigação de riscos à saúde. Isso inclui afastar os riscos de acidentes fatais, riscos de ataque de cobras venenosas, ataques de waimahsã com provocação de infestação de doenças, entre outros.
Para garantir a integridade das pessoas, os especialistas entram em ação fazendo bahsese para mitigar os riscos. Por exemplo, na festa do poose: o cuidado com as pessoas começa antes mesmo dela acontecer. Os especialistas entram em ação, articulam bahsese sobre um cigarro que todos, sem exceção, devem provar. Dizem que eles fazem bahsese para que todos esqueçam o desejo do confronto físico, para que todos se desarmem, para que todos esqueçam dos conflitos anteriores, e todos entrem no clima da festa de poose, focados na animação, nas brincadeiras e na alegria.
A prática de cuidado das pessoas é feita em muitas ocasiões ao longo da vida pelos especialistas. Uma delas é antes de cada ciclo de constelação. A concepção é que cada ciclo apresenta perigos à saúde. Diz-se, por exemplo, que “gente-estrelas” trazem consigo muitas doenças, bichos peçonhentos, armadilhas de acidentes, armadilhas de natureza conflitiva entre as pessoas. Os especialistas entram em ação fazendo bahsese para mitigar esses riscos.
A importância de entender esse outro modelo de relações sociais é fundamental para sair da noção de que as atividades produtivas apenas implicam na retirada de recursos naturais como meros objetos de consumo. Antes de tudo, do ponto de vista dos povos indígenas do alto Rio Negro, as atividades econômicas implicam numa rede de relações sociais, onde cada um pode agir independentemente para o bem, ou para o mal, quando as regras de relações e de comunicação forem ignoradas. Assim, a festa de poose, ao mesmo tempo que é uma prática de solidariedade entre as pessoas é também um espaço de inter-relação e de interação com os donos dos recursos naturais, pautada no sistema de troca.
A lição que podemos extrair desse modelo é de que os humanos estão circunscritos numa rede de relações, não só entre humanos, mas também com os seres do domínio aquático, terra/floresta e aéreo que são responsáveis pelos recursos e seus habitats.
A quarentena, imposta pela Covid 19, em pleno período de quaresma. conduz-nos à uma reflexão de que esse modelo de vida social, política e econômica que desconsidera os Outros, habitantes do domínio aquático, terra/floresta e aéreo, é capaz de provocar desequilíbrios sem precedentes. Vejo que é hora de preparar uma nova lista de convidados para nossas festas de poose. Convidados que sempre foram negados por esse modelo, que hoje obriga-nos a fazer a penitência. Devemos aprender que a partilha, a produção de alimentos, a solidariedade, o cuidado das pessoas são princípios morais, valores e compromissos sociais.