As usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, o maior afluente do rio Amazonas, se transformaram em um experimento evolutivo em tempo real, isolando uma população de botos da Bolívia e do Brasil. Esta reportagem foi produzida em aliança com o projeto Histórias sem Fronteiras.
Por Eduardo Franco Berton e Gustavo Faleiros
(Tradução Jerusa Rodrigues)
Charles Darwin nunca navegou pela bacia do Madeira, o gigantesco rio de águas barrentas formado por afluentes que nascem nas montanhas da Bolívia e que percorre 1.450 quilômetros na parte ocidental da Amazônia brasileira. Mas um dos seus colegas, o naturalista francês Alcide d’Orbigny, por quem o inglês havia declarado sua admiração, foi um notório estudioso da região.
Quando Alcide d’Orbigny saiu de Tiquipaya, em Cochabamba, com um tropel de mulas de carga em uma travessia, na qual passou pela Cordilheira dos Andes até chegar à Amazônia da Bolívia, ele observou em 1832 – portanto, antes da chegada do barco Beagle à América do Sul – uma espécie de mamífero aquático, de coloração rosada, cujos habitats e características só puderam ser totalmente compreendidos anos mais tarde, com o surgimento da teoria da Seleção Natural de Darwin.
O francês, um hábil naturalista com conhecimentos em paleontologia e geologia, descobriu que, em alguns afluentes do rio Madeira, especialmente no Mamoré, havia um boto de água doce que, embora fosse semelhante a outros encontrados nas regiões planas do rio Madeira no Brasil, possuía características únicas: uma maior quantidade de dentes, um crânio menor e um corpo mais robusto.
De volta à França com sua imensa coleção de exemplares coletados, o naturalista descreveu em 1834 esse boto como uma nova espécie, a Inia boliviensis. O nome ‘Inia’ era utilizado pelos indígenas Guarayos na Bolívia para se referir ao cetáceo. O mesmo que, cerca de dez anos depois, foi esquecido pela ciência, pois somente a espécie amazônica encontrada no Brasil (Inia geoffrensis) foi reconhecida. Apenas em 2012 os cientistas “redescobriram” a espécie como endêmica da Bolívia. Atualmente, a explicação para a existência desse mamífero de água doce poderia estar presente em qualquer aula sobre a teoria de Darwin.
A diferença em relação ao seu parente mais próximo –I. geoffrensis – ocorreu graças às barreiras naturais, cachoeiras e corredeiras, que isolaram há milhares de anos parte da população. Enquanto o I. geoffrensis é encontrado na Venezuela, na Colômbia, no Peru, no Brasil e no Equador, os I. boliviensis, como o próprio nome indica, estão presentes somente na Bolívia.
No entanto, de acordo com estudos mais recentes, esse isolamento natural nunca foi um confinamento definitivo, pois os botos podem fazer migrações regionais e visitar seus parentes mais próximos que vivem sob as corredeiras do rio Madeira. Quando se encontram, os dois botos podem até mesmo se acasalar, permitindo uma hibridação da espécie.
Mas as barreiras que não foram impostas pela natureza foram estabelecidas pelo ser humano.
A construção das barragens hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio há aproximadamente uma década na bacia do rio Madeira isolaram definitivamente o Inia boliviensis do seu parente Inia geoffrensis, deixando inclusive uma população de botos confinada entre as duas grandes barragens – uma das múltiplas consequências desse tipo de infraestrutura sobre os ecossistemas amazônicos.
Empobrecimento genético
No passado, a aura mitológica que envolvia o mundo dos botos, esses ”senhores do rio”, permitiu que ganhassem uma espécie de respeito das comunidades ribeirinhas, dos indígenas e pescadores locais de diferentes lugares da Amazônia. E, de certa forma, de se salvarem da caça indiscriminada.
Várias dessas lendas mostram o boto como um ‘sedutor’, que conquista as mulheres do povoado, as quais, uma vez apaixonadas, desejam passar o tempo todo à beira do rio, até acabar se atirando nele para estar sempre ao lado do seu amado.
Mas essa popularidade local não tem sido suficiente para salvá-lo das grandes ameaças enfrentadas hoje, por causa das barragens do Madeira.
Localizadas no Estado de Rondônia, no Brasil, a algumas centenas de quilômetros do Departamento de Beni, na Bolívia, as barragens de Santo Antônio e Jirau começaram a operar em 2012 e 2013, respectivamente. Juntas têm uma capacidade de mais de 7.300 MW, sendo as maiores já implantadas em um rio amazônico ocidental, cuja origem se encontra nos Andes.
Seus primórdios remontam há pouco mais de uma década, quando, em 2008, o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), concedeu a empresas privadas o direito de construir duas grandes barragens hidrelétricas no rio Madeira.
Os próprios assessores técnicos do órgão ambiental brasileiro, o IBAMA, chegaram a desencorajar a construção das usinas hidrelétricas, devido ao enorme impacto que causariam nas espécies de peixes migratórios, especialmente aos grandes bagres. Mas o próprio governo Lula ignorou os pareceres dos seus técnicos e seguiu em frente.
Como medida de mitigação, as duas usinas implantaram sistemas de transposição de peixes. Em teoria, isso garantiria que as espécies migratórias pudessem continuar transitando pelas águas do Madeira. No entanto, nenhum desses sistemas foi projetado para atender ao fluxo dos mamíferos aquáticos, como os botos.
Assim alertou o artigo publicado em janeiro de 2014 na revista acadêmica Conservation Genetics, no qual pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) afirmaram que, “recentemente foram construídas duas barragens na região das corredeiras; nenhuma delas possui um mecanismo para manter a conectividade entre as regiões situadas rio acima e abaixo e, juntamente com as mudanças antropogênicas no regime hidrodinâmico e na ecologia fluvial, provavelmente terão graves consequências no longo e curto prazos para I. boliviensis e outros táxons aquáticos”.
E as “graves consequências”, sobre as quais os cientistas da Universidade Federal do Amazonas e do INPA alertaram, também foram apontadas por pesquisadores do Instituto Mamirauá e da WWF do Brasil, após revisarem os pareceres técnicos do Ibama, durante e depois do licenciamento ambiental das duas barragens. E foi assim que esses pesquisadores revelaram que existe hoje uma população de cerca de 50 a 100 botos confinados entre Jirau e Santo Antônio.
Ainda no início, ao longo do ano de 2012, quando as distribuições geográficas do Inia boliviensis e do Inia geoffrensis não eram bem conhecidas, um relatório de técnicos contratados por Jirau indicou que a sua construção facilitaria um contato ainda mais intenso entre as duas espécies, algo que ocorreria com o alagamento das barreiras naturais que as separam, ou seja, as cachoeiras e as corredeiras. Em outras palavras, o isolamento milenar de Inia boliviensis acabaria pela força.
Os estudos genéticos realizados durante o licenciamento da usina de Jirau durante 2012 demonstraram que, antes do fechamento das comportas, indivíduos de Inia boliviensis rio já eram vistos rio acima e abaixo das cinco grandes cachoeiras, o que indicaria, portanto, que a barragem não representaria obstáculos intransponíveis. Assim, naquele momento consideraram não ser necessário adotar medidas de mitigação.
No entanto, um parecer técnico de 2018, elaborado por pesquisadores contratados pela empresa concessionária de Jirau, a Energia Sustentável do Brasil (ESBR), confirmou que a barragem promoveu o isolamento das populações de Inia boliviensis justamente rio acima. E, pela primeira vez, foi solicitado “à ESBR que inclua no projeto executivo de conservação da fauna, que será apresentado ao IBAMA, ações de compensação ambiental relacionadas a esta população de cetáceos isolada entre as duas barragens.”
E o que acontece quando uma população de botos do rio fica confinada entre as barragens?
“São relativamente poucos animais e a tendência é que adoeçam, não sabemos em quanto tempo”, avalia a bióloga do Instituto Mamirauá Miriam Marmontel, uma das principais pesquisadoras de cetáceos no Brasil.
Ela destacou que, embora se saiba muito pouco sobre a situação desses botos, esse tipo de confinamento representa um empobrecimento genético que, no longo prazo, os condena a desaparecer.
E embora várias notas técnicas do Ibama solicitassem às empresas um monitoramento constante das populações de botos que ficaram confinados por causa das hidrelétricas, os pesquisadores citados nesta reportagem afirmam que até agora não existe um verdadeiro esforço de monitoramento por parte das empresas.
Dessa forma, quando as consultamos, as empresas minimizaram os impactos gerados. No caso de Santo Antônio Energia, responderam ao nosso pedido de informação indicando que as análises anteriores mostravam populações apenas nas águas rio acima da usina, e não entre as duas barragens, o que, segundo eles, não impediria os botos de se reproduzirem.
A empresa, por meio da sua assessoria de imprensa, respondeu que, ”Santo Antônio Energia analisa a possibilidade de realizar um monitoramento populacional ou uma análise genética dessas espécies, para saber se o número de indivíduos se mantém constante e se há viabilidade de reprodução entre eles. O monitoramento da espécie depende de autorização do Ibama”.
No caso do consórcio ESBR, proprietário da planta de Jirau, a nota de resposta enviada por sua assessoria de imprensa minimizou o que eles próprios afirmaram em 2018, pois destacaram que, até o momento, seus monitoramentos não tinham indicado nenhum tipo de problema que afetasse os botos.
“[A empresa] vem cumprindo com os requisitos de licenciamento ambiental, com a renovação da sua licença concedida em 2019 pelo IBAMA por mais dez anos. Cumpriram-se devidamente as ações indicadas na licença, pelo que foram realizadas dezenas de campanhas de monitoramento na Área de Influência Direta, verificando a existência de apenas uma espécie de boto, Inia boliviensis, única espécie presente neste trecho do rio Madeira.”
Fragmentação do habitat e outros impactos
Diferentes estudos já demonstraram que mais de 90 por cento dos botos descobertos por Alcide d’Orbigny se encontravam isolados. Mas esse isolamento ocorria por questões naturais, pois, devido às características da bacia, que é formada por uma série de barreiras rochosas no rio, as populações de I. boliviensis historicamente têm vivido separadas das de I. geoffrensis. Ainda que, ocasionalmente conseguissem passar, dando origem a uma hibridação entre as duas espécies na região de Teotônio.
Agora, porém, por causa das duas barragens, ficaram completamente fragmentadas.
Alguém que conhece muito bem a importância da conexão entre os habitats aquáticos para os botos do rio é o biólogo Paul Van Damme. “Os botos precisam das migrações para poderem viver, eles utilizam diferentes habitats e áreas para se alimentar e, se não tiverem acesso a essas áreas, têm pouquíssima probabilidade de sobreviver”, comentou.
Van Damme, que dirige a organização não governamental Faunagua, que trabalha com gestão e conservação dos recursos hidrobiológicos com sede em Cochabamba, na Bolívia, indica que as hidrelétricas estão associadas a três impactos principais sobre a fauna aquática: a fragmentação das populações, a mudança do habitat e as alterações na dieta das espécies.
E qual é a distância percorrida por esses mamíferos aquáticos rosados? De acordo com o biólogo, pesquisador da fauna aquática, com doutorado em biologia marinha pela Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, os botos se deslocam mais de 300 quilômetros, passando por áreas protegidas, pântanos de importância internacional (sítios RAMSAR) e diferentes rios.
Seguindo seu percurso, esses botos deslizam inclusive entre os troncos da vegetação submersa nas águas turvas, enquanto caçam peixes entre as árvores, algo que conseguem fazer graças à emissão de ultrassons, que produzem uma imagem tridimensional do seu mundo subaquático.
Assim, a interrupção desses movimentos não é uma opção para esses animais, pois Van Damme expressou que, “percebemos, com estudos de telemetria e transmissão por satélite, que os Inia boliviensis precisam desse movimento e dependem muito da conexão entre as lagoas e os rios, por isso, quebrar essa conectividade pode ser mortal para uma família de botos”.
Desde 2018, a Lista Vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) alerta sobre os perigos sofridos pelas populações de “botos de água doce da Amazônia”. Pois, segundo uma série de pesquisas de referência, esses animais estão em declínio e uma das razões seria a grave fragmentação dos ambientes em que vivem, provocando uma desconexão entre as populações.
Van Damme detalhou que o segundo impacto das barragens é a mudança dos habitats aquáticos. ”Os fluxos e as velocidades da água mudam de maneira significativa, então, para os botos que dependem desses habitats, isso pode ser um fator drástico.”
E, como um terceiro impacto, indicou que as barragens alteram a abundância de alimentos para os botos do rio, cuja dieta é composta por 80% a 100% de peixes migratórios de pequeno e médio portes, que diminuem consideravelmente por causa das hidrelétricas.
Da mesma forma, o biólogo argumentou que a construção de uma barragem tem impacto direto sobre os peixes migratórios. Mas, ao construir uma segunda ou terceira barragem, se produz um impacto cumulativo que pode ser até 20 vezes mais prejudicial, isso devido ao efeito sinérgico ou acumulativo das barragens.
Um estudo que contou com sua participação e de outros pesquisadores, realizado no rio Ichilo, uma nascente da bacia Amazônica do rio Mamoré (Bolívia), um afluente do rio Madeira, explorou ainda mais o impacto em cascata produzido pelas barragens de Jirau e Santo Antônio, ao interromper a rota de migração do bagre dourada (Brachyplatystoma rousseauxii), considerado pelos ictiólogos como um peixe excepcional, que realiza as migrações mais longas do mundo em água doce.
Uma das pesquisadoras desse estudo foi Carolina R. da Costa Doria, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que afirmou que os pesquisadores sentem que “estão de mãos atadas”. “Apesar de todos os estudos que publicamos e dos problemas que reportamos ao Ibama, não conseguimos nenhuma ação”.
Exploração da região: polêmica e confidencialidade
As prodigiosas águas da bacia do rio Madeira, que, além dos botos, são percorridas por um terço das espécies de peixes de toda a Amazônia – ao menos 1000 espécies -, sempre foram cobiçadas pelos governos da Bolívia e do Brasil.
A visão: represar suas águas turvas para abraçar o tão almejado progresso energético. E, desde 2008, quando começaram a construir as barragens de Santo Antônio e Jirau, os dois países têm um acordo de cooperação para explorar a possibilidade de novos empreendimentos.
Na época, os planos já incluíam dois projetos: Ribeirão, uma usina hidrelétrica, que pretendiam construir entre os municípios fronteiriços de Guayaramerín e Guajará-Mirim; e Cachuela Esperanza, que seria construída em território boliviano de mesmo nome. Ambas as barragens, juntamente com Jirau e Santo Antônio, fazem parte do complexo hidrelétrico do rio Madeira, promovido pela Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA).
Mapa da localização dos novos projetos hidrelétricos de Ribeirão e Cachuela Esperanza
No caso da Bolívia, esse planejamento responde também à iniciativa ‘’Bolivia corazón energético de Sudamérica’’ (Bolívia, coração energético da América do Sul), um dos principais planos energéticos promovidos pelo governo anterior, do ex-presidente Evo Morales, que integra a Agenda Patriótica 2025 e indica que, até esse ano, 95% da população boliviana teria energia elétrica e seriam exportados cerca de 3.000 (MW) de energia excedente para os países vizinhos.
Um plano para o qual, apesar das inúmeras reclamações dos povos indígenas, de ativistas e cientistas sobre os múltiplos impactos ambientais e sociais decorrentes, o governo nacional fez ouvidos moucos e planejou um investimento de 25 bilhões de dólares até 2025 para “represar” diferentes rios do país, com a construção de uma série de hidrelétricas.
Em relação ao recém-eleito presidente boliviano, Luis Arce, e o novo plano de governo do Movimiento al Socialismo (MAS), a intenção é continuar com a iniciativa de Morales. Isso porque seu programa indica que “os projetos em andamento e os novos que serão implantados para a produção de energia elétrica garantem o abastecimento do mercado interno e até a exportação de energia para os países da região”. Ao mesmo tempo em que “é importante exportar energia elétrica para os nossos vizinhos, devemos multiplicar essa iniciativa para converter a energia no terceiro ramo de exportação para o Bicentenário (2025)”.
É assim que, dando continuidade a esses planos, e após várias pressões de ambos os governos, em 2017, a aliança binacional entre a Empresa Nacional de Electricidad (ENDE) da Bolívia e a Eletrobras do Brasil concluiu uma licitação que escolheu Worley Parsons, uma empresa de engenharia com sede no Rio de Janeiro, para realizar os Estudos do Potencial Hidrelétrico Binacional da Bacia do Rio Madeira, financiados pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).
Agora, espera-se que a aliança entre as empresas estatais de energia dos dois países – a Eletrobras e a ENDE – apresente esses estudos nos próximos meses, os quais preveem a construção de novas barragens no rio Madeira.
Segundo os documentos de acesso público, os estudos sobre o potencial hidrelétrico não se limitam unicamente ao rio Madeira, mas incluem também seus afluentes: Beni, Mamoré, Ribeirão, Yate, Negro e Lage. Uma situação que torna o debate sobre os impactos das usinas hidrelétricas já construídas no rio Madeira em algo extremamente vital neste momento.
“Violação de direitos”
Silvia Molina, pesquisadora do Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario (CEDLA), comenta que “estamos diante de um tema de enorme violação dos direitos, e não somente isso, mas de violação das normas da Bolívia, de certos aspectos da Constituição, como o papel da Amazônia e das decisões soberanas”.
Molina indicou que os critérios sob as quais esses estudos estão sendo realizados são pouco conhecidos. Prova disso foi que, ao tentar obter paralelamente mais informação em 2018, juntamente com organizações bolivianas e brasileiras, a Justiça brasileira respondeu que estas não poderiam ser fornecidas, pois existe um acordo de sigilo. E, no caso da Bolívia, o pedido de informação apresentado à Assembleia Legislativa não teve nenhuma resposta.
Engenheira civil com experiência em questões de transporte e infraestrutura energética, ela está concluindo uma pesquisa junto ao CEDLA chamada: “O papel da CAF como planejadora em energia hidrelétrica regional”.
E, segundo explicou, o procedimento da CAF como entidade financiadora do Estudo do Potencial Hidrelétrico estaria violando uma série de normas bolivianas referentes ao controle social, à transparência na gestão pública, bem como regulamentos internacionais em relação à responsabilidade dessas instituições financeiras bilaterais em afetar os direitos humanos.
Molina explica que o mais complicado neste momento é abrir esse estudo a um debate público e amplo, pois não se trata apenas de um debate energético, mas sim de um debate sobre a Amazônia boliviana. A tempo de indicar que, “estamos dando bastante atenção à transparência, um tema que vemos como violação dos direitos e a questão do papel da CAF em ver o desenvolvimento acima das pessoas.’’
À luz da pandemia, a Worley Parsons tem procurado líderes comunitários e outros representantes locais para programar apresentações virtuais do projeto. Isso colocou em alerta os integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma das mobilizações populares mais influentes em todo o Brasil, que está presente em Rondônia desde a construção de Jirau e Santo Antônio.
Segundo Francisco Kelvin, coordenador do MAB em Rondônia, o movimento está orientando as comunidades a não aceitarem os convites para a apresentação de estudos das novas hidrelétricas. Para ele, as consultas virtuais não podem ser consideradas consultas populares de fato, já que muitas das comunidades afetadas não poderiam participar por falta de acesso à internet.
Lidia Antty, que faz parte do Comitê de Defesa da Vida Amazônica da bacia do rio Madeira, no município de Guayaramerín, em Beni, também foi contatada por Worley Parsons.
Antty disse que a empresa está entrando em contato com diferentes pessoas via WhatsApp, para apresentar o estudo de forma virtual. ”Quando pedimos que queremos uma carta oficial, e não uma mensagem no celular, então nos responderam que ainda não tinham concluído o estudo. Ou seja, não querem dar a informação de forma precisa.”
Na opinião de Kelvin, desde 2014 tem havido uma grande pressão por parte dos empresários para tirar as novas barragens do papel. O motivo, segundo ele, seria a percepção de que, sem usinas hidrelétricas adicionais rio acima, o fluxo de água do rio Madeira não seria previsível. Em 2014, as maiores inundações já registradas ocorreram ao redor do Madeira. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas, as comunidades ribeirinhas foram destruídas pela força da água liberada pelas usinas.
“Ribeirão e Cachuela Esperanza permitiriam o controle da água, seria a caixa d’água perfeita”, disse o ativista, que aponta a usina hidrelétrica de Jirau como a principal beneficiária desse maior controle do fluxo.
Para a elaboração desta reportagem, entramos em contato com a Eletrobras para solicitar cópias dos estudos do potencial hidrelétrico que serão apresentadas à consulta pública, mas a empresa estatal brasileira nos informou que não fornece estudos em andamento.
E, assim, como os botos descobertos por Alcide d’Orbigny, os habitantes locais da Bolívia e do Brasil também parecem estar ‘confinados’ por planos ambiciosos de construção de hidrelétricas pelos dois governos, que, com a ajuda dos bancos multilaterais de desenvolvimento, somado aos entraves da burocracia, aos interesses políticos e das corporações, são tão grandes quanto as barreiras impostas pelas barragens do rio Madeira.