Projeto de lei que extingue parque nacional e construção de uma estrada que deve cortar a área ao meio podem, segundo pesquisadores, provocar impactos ambientais irreversíveis a refúgio de biodiversidade amazônica, no Acre.

Por Leandro Chaves, de Rio Branco (AC)

A professora Eline Lima Cavalcante, de 22 anos, nasceu em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do Acre, mas desde pequena mora no Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), uma área de proteção integral situada no extremo oeste do estado e do país, na fronteira com o Peru. Sua família vive no local há 60 anos, antes da criação da área protegida, em 1989, e, pela legislação em vigor, tem o direito de permanecer lá, ainda que não possa explorar os recursos naturais.

Na terra onde vivem, nas margens do rio Moa, Cavalcante e os parentes plantam macaxeira, milho e feijão e criam animais em pouca quantidade, entre eles gado. A prática, quando empregada somente para subsistência, é permitida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão federal que administra a unidade de conservação (UC).

“A fiscalização aqui é muito rígida. O ICMBio demarca uma área limitada pra gente morar e não pode abrir mais. Há pouco tempo, tentei construir uma casa e eles disseram que pra isso eu não poderia desmatar nada, aí fiz no limite que nós temos, encostada na residência dos meus pais”, conta a moradora Eline.

Cientes do potencial que a preservação proporciona, a família inaugurou, há dois anos, a pousada Canindé da Serra, onde recebe turistas aventureiros e pesquisadores de todo o país que adentram o vasto território de 837,5 mil hectares para presenciar a floresta amazônica em seu estado quase bruto.

O parque é um santuário preservado na Amazônia e abriga uma das maiores biodiversidades de fauna e flora do Brasil. São 1.240 espécies de animais conhecidas, sendo o local do país com a maior riqueza de primatas e anfíbios. Há espécies de plantas e uma de ave (a choca-do-acre) que são encontradas somente na Serra do Divisor. Localizado na transição da floresta amazônica para as áreas montanhosas da região andina, o PNSD tem nas cachoeiras uma das principais atrações.

Tomaz de Melo
Choca-do-acre (Thamnophilus divisorius) é uma ave rara só vista no Parque Nacional da Serra do Divisor.


O doutor em Ciências de Florestas Tropicais e professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) Marcus Vinicius Athaydes Liesenfeld visita o parque todos os anos para pesquisas. Ele comenta que a geografia da área explica sua preservação, dadas as dificuldades para acesso.

“A Serra do Divisor faz parte de um conjunto de regiões no Brasil onde a biodiversidade é considerada de extrema importância, com elevado grau de endemismos. Periodicamente, novas espécies de anfíbios, por exemplo, são registradas naquele local. Toda a região representa um mundo inexplorado para muitos grupos de pesquisadores”, explica Athaydes, reiterando o potencial biológico da região.

Pressão nas bordas

Mesmo com toda essa riqueza, a Serra do Divisor não está a salvo do fogo. De janeiro a setembro de 2020, 275 focos de calor foram registrados na área, segundo dados do satélite S-NPP/VIIRS, da Nasa, o maior índice desde 2012. O número representa 6,4% do total de queimadas nas dez unidades de conservação federais do Acre. Dentro do parque, o crescimento foi de 56% em relação a 2019, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

No entanto, Athaydes, que tem como uma de suas linhas de estudo a ecologia do fogo, alerta que a grande maioria desses focos dentro do parque é para limpeza de roçados familiares e não causa grandes impactos florestais na área. “É um fogo de poucas proporções, para o plantio de subsistência que garante a sobrevivência dessas pessoas”, diz o pesquisador. Atualmente, segundo o ICMBio, 350 famílias vivem no local. 

A professora Eline Cavalcante ressalta que sua família usa, ano a ano, a mesma área de roçado para o plantio. “Queimada aqui todo ano tem e é normal, mas tudo sob controle. Os moradores brocam pra plantar e quando é no outro ano eles só brocam novamente o mesmo pedaço e aí queimam. Fogo que invade a floresta é muito raro de se ver por aqui”. 

No mapa, clique sobre a área para ver quantidade de focos de calor nas últimas 24h, última semana e ano todo no interior das unidades de conservação.

Quando a análise se expande para um raio de até 5 km dos limites da unidade, a pressão nas bordas do parque fica evidente. Na chamada zona de amortecimento (área de filtro dos impactos da ação humana sobre territórios protegidos), foram detectados 584 focos entre janeiro e setembro de 2020, um crescimento de mais de 22%, em relação ao ano passado. No ranking de queimadas que considera essa área do entorno, o PNSD sobe de quarto para o segundo lugar, com 19% do total de focos nas UCs federais do Acre, atrás apenas da Resex Chico Mendes (37,2% do total).

O fim do parque

O parque sofre ainda outras duas ameaças que podem pôr em risco sua conservação. Uma delas é o Projeto de Lei (PL) 6.024/2019, idealizado pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC) e apresentado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), em 2019. A peça propõe a extinção do parque nacional e a transformação de seu território em área de proteção ambiental (APA), a categoria menos restritiva entre as UC brasileiras, que permite a ocupação humana e exploração dos recursos naturais.

“O Parque Nacional da Serra do Divisor é área importante para o Acre, pois é a única região do estado que possui rochas que podem ser extraídas e utilizadas na construção civil. A classificação da unidade de conservação como Parque Nacional impede qualquer tipo de exploração econômica das riquezas ali presentes”, argumenta o texto do PL.

O pesquisador Marcus Vinicius Athaydes alerta para um possível crescimento da população e consequentes danos ambientais na região, caso o projeto, que tramita na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e Amazônia (Cindra), seja aprovado.

“Qualquer mudança no status de uma unidade de conservação com certeza vai trazer uma modificação na forma como as pessoas compreendem o território. Se não veem como Parque Nacional e enxergam como uma área de fiscalização mais branda e usos mais abrangentes, certamente será um convite às invasões, desmatamento, caça e outros impactos”, explica Athaydes.

Estrada para o Pacífico

A segunda e mais importante pressão que o território de proteção integral sofre é o projeto de construção de mais uma estrada para ligar o Acre ao Peru. Uma rodovia, a Interoceânica, já havia sido construída em 2002 ligando o leste do estado ao país vizinho. Desta vez, a proposta é construir uma estrada a partir de Cruzeiro do Sul, no oeste, até Pucallpa, capital do departamento peruano de Ucayali. A obra de R$ 432 milhões prevê abertura e asfaltamento de 120 km de extensão, pelo lado brasileiro, cortando o parque ao meio, tendo como principal função a exportação de grãos do Brasil para a China, via oceano Pacífico. A viabilidade econômica da rota e sua competitividade, no entanto, não estão definidas.

O novo trecho da BR-364 é uma demanda do governo do estado e da classe empresarial local, e está em fase de estudos e elaboração de projeto por parte do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). A obra está prevista na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, que desde 2000 impulsiona a conexão internacional nas áreas de energia, transportes e telecomunicações. 

Duas pontes construídas nos últimos anos na fronteira do Acre com Bolívia e Peru, mas em áreas com maior densidade demográfica, também fazem parte dessa iniciativa, que prevê ainda a construção de uma ferrovia passando pelo PNSD, em parceria com empresas chinesas do setor. Para atender o mercado de soja e milho, especialistas indicam que uma ferrovia seria menos impactante e mais eficiente que o projeto da rodovia.

No final de setembro, a convite do senador Márcio Bittar, os ministros do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, estiveram na região para tratar da integração com o país vizinho por aquele trecho. Participaram os governadores do Acre, Gladson Cameli (Progressistas), e de Ucayali, Francisco Pezo Torres, além de empresários.

“Esse projeto faz parte dos sonhos dos cruzeirenses para aquecer a economia. Vamos gerar emprego e renda e quem ganha é a população. E o que temos que fazer como governo é nos prepararmos para esse desenvolvimento que vai chegar”, disse Cameli, que vem de uma tradicional família de políticos e empresários de Cruzeiro do Sul.

O secretário-geral da ong SOS Amazônia em Rio Branco, Miguel Scarcello, tem outra visão da obra. Ele alerta que o trecho da BR sobre a Serra do Divisor pode causar ocupação desordenada, efeitos sobre a biodiversidade e impactos ambientais irreversíveis. O ambientalista teme “desequilíbrio” em um raio de 100 metros do traçado da rodovia e a infiltração de pessoas na área por meio da abertura de ramais perpendiculares à estrada.

“Eu nunca vi um empreendimento desse tipo ser construído da maneira correta, seguindo todas as exigências e com as compensações e mitigações feitas no tempo certo. Prevejo que pode ser um negócio muito danoso e grave, uma depredação muito grande”. Ele questiona ainda os discursos das autoridades. 

“Eu não vejo nenhum aceno do tipo ‘nós vamos fazer uma estrada verdadeiramente sustentável’. Só se fala que vai trazer desenvolvimento. Mas o aspecto financeiro é incerto. O que vamos mandar pra lá e o que vem pra cá? Ainda não vi um estudo de viabilidade econômica. Isso tem que ser mostrado. A perspectiva que se acena é de uma situação de pouca precaução para conservação”, explica Scarcello.

O InfoAmazonia procurou o governo do Acre para saber a proposta para garantir a sustentabilidade e redução dos impactos da obra. A gestão se limitou a dizer que um projeto ambiental é produzido para esta finalidade e não respondeu ao ser questionada sobre detalhes do plano. A previsão é que a licitação e contratação da empresa que vai construir o empreendimento sejam concluídas ainda em 2020.


Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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