Expectativa de recuperação e pavimentação de trechos da rodovia Manaus-Porto Velho alimenta concentração das queimadas nos municípios que acompanham seu traçado.
Por Izabel Santos, de Manaus (AM)
Doze municípios sob influência direta da BR-319 somam 42,65% dos focos de calor registrados em 2020 no Amazonas, estado que atingiu recorde de queimadas este ano. Obras de pavimentação, anunciadas no início de outubro pelo governo Bolsonaro, estão aquecendo a expectativa de moradores, empresas e governos locais que querem ver perenizada a conexão do Amazonas com o restante do Brasil, ao longo de quase 900 quilômetros de rodovia entre Manaus (AM) e Porto Velho (RO).
No mapa, clique sobre as áreas para ver quantidade de focos de calor nas últimas 24h, última semana e 2020 todo nos municípios às margens da BR-319, UCs e TIs. No menu superior à direita, selecione camadas de desmatamento ou áreas protegidas.
Além de expectativas, as promessas de asfaltamento também estão provocando preocupação entre moradores, pesquisadores e ambientalistas, que correm contra o tempo para possibilitar a implantação de soluções que minimizem o impacto da rodovia na região. Um dos maiores refúgios de biodiversidade e de povos indígenas isolados da Amazônia, a área de influência da 319 é equivalente ao território da Alemanha, garantindo serviços ambientais para boa parte da América do Sul.
O professor Angel Batista de Souza, 28 anos, é um dos moradores da comunidade São Sebastião do Igapó Açu, que fica no KM 250 da rodovia, no município de Manicoré. O local é famoso no trajeto porque é onde os veículos que trafegam na rodovia precisam atravessar o rio Igapó Açu de balsa.
Angel quer a repavimentação da rodovia, mas não a qualquer custo. Ele se preocupa com o impacto que a circulação de veículos e o acesso de pessoas de fora podem provocar no modo de vida da comunidade e na floresta. “Quero que respeitem as leis ambientais e que levem em consideração o nosso bem-estar e a nossa liberdade, para que possamos manter nosso modo de vida”, explica Angel.
Nascido e criado no local, Angel conta que viver na Igapó Açu é desafiador pelo isolamento geográfico e social. Mas, por estar dentro de uma unidade de conservação (a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu), os moradores da comunidade têm relativa segurança contra grilagem de terras e outros crimes ambientais. No entanto, Angel diz que a comunidade já sentiu os impactos causados pela circulação de outras pessoas na região.
“Um amigo meu foi agredido covardemente dentro da sua residência por funcionários de uma empresa terceirizada que trabalha na manutenção das pontes [da rodovia]. Também têm veículos em alta velocidade que avançam o perímetro da comunidade colocando a vida dos moradores em risco”, conta.
Sociedade se organiza
O Observatório da BR-319, estabelecido em 2017 por um conjunto de organizações que atuam para dar transparência ao processo de implantação da rodovia, acompanha a situação em 69 terras indígenas e 42 unidades de conservação da região. Os municípios que estão sob influência direta da rodovia e possuem atividades socioambientais monitoradas pelo coletivo são Porto Velho (RO), Lábrea, Manicoré, Humaitá, Canutama, Tapauá, Borba, Autazes, Manaquiri, Beruri, Careiro da Várzea, Manaus e Careiro (AM).
É desse último que a jovem Fran Araújo, de 25 anos, também não vê a hora de ter a rodovia trafegável, para poder circular a partir da zona urbana de Careiro, a 123 quilômetros de Manaus. Mas ela se preocupa com a intensificação dos problemas já existentes.
“Assim como outros municípios, ainda não estamos preparados para as mudanças que virão com a pavimentação da estrada. Hoje, as comunidades rurais e a sede do município são dominadas pelo tráfico de drogas. A tendência é que haja um aumento significativo na ocupação do território, e isso demanda desmatamento e invasões. Atualmente, temos bastante extração de madeira irregular e a abertura de ramais sem quaisquer planejamento”, conta a moradora.
Construída durante a Ditadura Militar, a BR-319 é uma tentativa de materialização de um lema da época, adotado pelo governo federal, que dizia ser necessário ‘integrar para não entregar’.
Na visão dos militares, a Amazônia era um grande deserto verde dentro do território brasileiro, vulnerável à ocupação por estrangeiros e cheio de riquezas à espera de exploração. A floresta era vista como obstáculo ao desenvolvimento.
Para os militares, esse ‘inferno verde’ precisava ser dominado e ocupado a qualquer custo, para concretizar o que eles consideravam como integração ao restante do Brasil. O meio encontrado foi a construção de grandes rodovias, como a Transamazônica (BR-230) em 1972, a Cuiabá – Santarém (BR-163) em 1971 e a Manaus – Porto Velho (BR-319), construída entre 1972 e 1973.
Pavimentada em 1976, a obra, no entanto, sucumbiu à floresta e à falta de manutenção, frente à baixa demanda de tráfego. O traçado da rodovia só seria recuperado novamente a partir de 2008, ao longo de um processo de idas e vindas envolvendo órgãos ambientais e empreiteiras contratadas para recuperação e perenização da estrada.
Biodiversidade intocada e serviços ambientais globais
Um dos pontos mais polêmicos das obras na BR-319 é o chamado trecho do meio, que vai do KM 255 ao KM 655, um interflúvio localizado entre os rios Purus e Madeira. Durante o período de chuvas, a área fica tomada pela lama e veículos e pessoas precisam de ajuda para transpor o local.
“A floresta do interflúvio Purus-Madeira é importante por ser um dos blocos de florestas mais conservados do mundo, ou seja, é importante não apenas para a biodiversidade da Amazônia, mas para a manutenção do clima, tanto o da América do Sul quanto o clima global”, diz Lucas Ferrantes, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
“É uma área com grandes estoques de carbono, com uma funcionalidade muito grande de manutenção dos rios voadores que bombeiam as chuvas que abastecem as regiões Sul e Sudeste do Brasil, como a cidade de São Paulo e o Sistema Cantareira”, explica Ferrantes.
Em 2019, o Amazonas perdeu mais de 1,5 mil km² de vegetação nativa, de acordo com dados do Prodes/Inpe. Os doze municípios amazonenses sob influência da rodovia foram responsáveis por 45% desse total, sendo que Lábrea registrou a maior taxa com 390.2 km² desmatados, seguido por Humaitá e Manicoré. A situação preocupa, pois, segundo o pesquisador, a Amazônia já atingiu o grau de desmatamento acima do tolerado para o bioma, chegando próximo ao seu tipping point (ponto de inflexão a partir do qual grandes partes da floresta virariam savanas). “Se o desmatamento continuar, vamos perder serviços ecossistêmicos que regulam o clima”, explica.
Além disso, a região possui uma diversidade única e pouco conhecida de primatas, aves e anfíbios. “O último EIA-RIMA [estudo de impacto ambiental] divulgado pelo governo federal sequer cita essas espécies. É um documento completamente enviesado e mal feito que não teve a capacidade de mostrar a biodiversidade da região. Os estudos ambientais precisam ser refeitos”, critica Lucas Ferrante.
Crise de identidade
Nos extremos da rodovia, próximo a Manaus e Porto Velho, estão os municípios mais desenvolvidos da BR-319. Ao norte, a 123 km da capital do Amazonas, está Careiro; ao sul, a 204 km da capital de Rondônia, fica Humaitá, município onde a BR-319 se encontra com o traçado da rodovia Transamazônica, outro vetor de pressão local. Em alguns dias dos meses de julho e agosto, parte da cidade fica tomada pela névoa da fumaça das queimadas. Nos últimos dois anos, de sucessivos recordes de queimadas no Amazonas, a natureza ajudou: as chuvas do inverno amazônico chegaram mais cedo, impedido que situação se prolongasse.
“Em Humaitá, já convivemos com queimadas há muitos anos, mas, nos últimos cinco anos, se intensificaram muito. No período seco, de maio a novembro, há uma ocorrência absurda de queimadas, inclusive urbanas. Isso ocasiona o aumento de doenças respiratórias na população. Também é muito comum no período seco nos depararmos com grandes áreas de queimadas no trecho da BR-319 entre Humaitá e Porto Velho, sobretudo durante a noite”, conta a economista e mestranda em Ciências do Ambiente, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Dionéia Ferreira, 45 anos, nascida, criada e residente em Humaitá.
Dionéia, que já foi gestora da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Igapó-Açu, conta como é difícil a vida com os desafios impostos pela situação da rodovia.
“Humaitá vive uma situação de crise de identidade, mas acho que isso ocorre em diversos lugares do Amazonas e da Amazônia. Infelizmente, nossa região tem perdido a conexão com nosso modo ancestral de viver e valores mais caros”, avalia Dioneia.
Segundo ela, o processo de ocupação por pessoas de outras regiões caracteriza colonização e invasão, fenômenos favorecidos pela ausência do Estado. “O avanço do agronegócio na região tem se dado por meio de invasões, tendo o desmatamento e as queimadas como força motriz desse processo”, avalia. “As invasões no trecho do meio são evidências de que a facilidade de acesso e trafegabilidade aliada à baixa governança colocam a região em situação de vulnerabilidade”, acrescenta.
Com a experiência de quem mora na região desde que nasceu, a economista critica as ações do governo federal em relação à fiscalização ambiental em Humaitá e ao longo da BR-319. “Temos visto nos últimos anos a fragilização e, em alguns casos, o desmonte dos sistemas nacionais e estaduais de meio ambiente, bem como de unidades de conservação. Estamos diante de um governo federal com uma agenda que prioriza o agronegócio, em detrimento de qualquer outra que atravesse no caminho”, diz Ferreira.
“O governo militarizado de Bolsonaro tem uma conduta similar aos governos do período militar, que veem a floresta, especialmente a Amazônia, como um entrave ao desenvolvimento do país. Como esperar políticas de fortalecimento das estruturas de gestão ambiental e territorial de um governo cuja visão não alcança o papel decisivo da Amazônia para o país? Essa postura, com certeza, encoraja os invasores e infratores a continuarem com o avanço da agropecuária sobre as florestas”, conclui Dioneia Ferreira.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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