A região mais preservada do estado concentra quase 60% dos focos de calor detectados na temporada de fogo de 2020. Imagem de abertura: Queimada em Tarauacá, segundo município com mais focos detectados no Acre em 2020. Foto: Sonaira Silva.

por Leandro Chaves, de Rio Branco (AC)

O enfermeiro Mikeias Lopes, morador da cidade de Feijó, no interior do Acre, distante 350 quilômetros de Rio Branco, acorda cedo a cada dois dias para dar início ao seu plantão no Hospital Geral Dr. Baba. A rotina é quase sempre a mesma: atender vítimas de acidentes e pessoas acometidas por doenças típicas da região.

No entanto, com a chegada do “verão amazônico”, em julho, a unidade de saúde começa a receber com mais frequência pacientes com problemas respiratórios, especialmente crianças e idosos. O motivo é a fumaça das queimadas, que neste ano tiveram aumento expressivo no município e seu entorno. 

Até agosto, segundo a Secretaria de Saúde do Acre (Sesacre), foram aproximadamente 800 atendimentos por problemas respiratórios não relacionados à Covid-19 na cidade.

Feijó é o município que mais queima no Acre, há pelo menos cinco anos. O maior dos 22 municípios do estado, quinto em população, Feijó concentra quase 1/4 das ocorrências em 2020 (entre julho e a primeira semana de setembro), de acordo com o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

No mapa, clique sobre as áreas para ver o número de focos e percentagem do total de focos em cada município.

Neste ano, os feijoenses viram subir quase 35% os registros de focos de calor, em comparação ao mesmo período de 2019. O município está entre os 22 que mais queimaram no Brasil nos últimos dois meses, e já chegou a figurar entre os dez primeiros.

“Após julho, já esperamos um aumento no fluxo de atendimentos relacionados a doenças respiratórias. A umidade relativa do ar na nossa região geralmente é bastante elevada, mas, nessa época, ela tem uma queda brusca. Isso, aliado às queimadas e diminuição na incidência de chuvas, sempre faz aumentar muito as crises de asma, DPOC, bronquite, além das internações”, comenta o enfermeiro.

Emergência ambiental

O que acontece em Feijó se repete na vizinha Tarauacá, que contribuiu com 16,3% do total de focos de calor captados no estado entre julho e início de setembro, com crescimento de 34%, em comparação com o mesmo período do ano passado.

Corpo de Bombeiros de Feijó – AC
Combate a incêndio florestal em Feijó, agosto de 2020

Os dois municípios ficam no lado oeste do Acre, região mais conservada do estado, que abriga maior biodiversidade e quantidade de áreas protegidas, em especial terras indígenas. É também nessa área, mais precisamente na região de fronteira com o Peru, que vivem pelo menos três grupos de indígenas isolados.

Nos últimos anos, a região com maior concentração de florestas passou a liderar as queimadas no Acre. Em 2020, já possui quase 60% dos focos de queimadas no estado, frente a 43,6%, no mesmo período do ano passado.

No início de setembro, foi decretada Situação de Emergência Ambiental no estado devido às queimadas e à poluição provocada pela fumaça.

A falta de chuvas, a diminuição dos níveis dos rios e a baixa umidade relativa do ar também motivou a decisão do governo local, que já aplicou mais de R$ 8 milhões em multas por infrações contra o meio ambiente.

O decreto desburocratiza ações de prevenção e combate a incêndios florestais e queimadas urbanas. A Defesa Civil, por exemplo, poderá requisitar apoio técnico e logístico de toda a administração pública estadual para intervir no problema. 

“Estamos no meio de uma pandemia e fazendo o possível para tentar chamar a atenção das pessoas para os problemas que as queimadas trazem para a saúde da população. Não dá para continuar como está”, disse o governador Gladson Cameli.

Sonaira Silva
Desmatamento recente em Mâncio Lima, município no extremo oeste do território brasileiro.

No começo de setembro, o governo reforçou a Operação Focus 2, criada para conter esses crimes. Equipes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e a Força Nacional integraram o grupo, formado inicialmente pelos Bombeiros, Polícia Militar e Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac).

No começo de julho, a agência espacial norte-americana Nasa incluiu o estado na lista de regiões amazônicas com maior risco de queimadas descontroladas em 2020. No ranking, o Acre aparece à frente do Mato Grosso, Pará, Rondônia, Maranhão e Amazonas.

Áreas protegidas

O professor Eldo Shanenawa, da Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, situada a menos de vinte minutos da cidade de Feijó, conta que, todos os anos, a comunidade sente os efeitos das queimadas.

Não é raro crianças e idosos se queixarem de tosse, dor no peito, garganta inflamada, entre outros sinais. Neste ano, no entanto, o líder percebeu um aumento considerável de pessoas acometidas por esses sintomas na sua comunidade.

Arquivo Pessoal
Eldo Shanenawa, da TI Katukina/Kaxinawá

O professor indígena explica que a fumaça vem de focos de incêndios do perímetro urbano e de propriedades rurais particulares do entorno. O território protegido onde Shanenawa nasceu tem quase 24 mil hectares de terra, com mais de 95% de cobertura florestal.

“Nós, indígenas, não fazemos incêndios florestais. Tradicionalmente, ‘brocamos’ uma pequena parte da terra e botamos fogo controlado para depois plantar e ter o que comer. Aí, voltamos a usar esse mesmo pedaço, em dois ou três anos, para não precisar abrir novas áreas, e assim revezamos. Tudo de forma pontual. Não fazemos grandes roçados, pois não somos monocultores”, esclarece.

Dados do satélite S-NPP/VIIRS monitorados pelo Inpe apontam que 589 focos foram registrados em 28 terras indígenas do Acre em julho, agosto e início de setembro – 46 deles no território de Eldo Shanenawa. Essas áreas são as que menos queimam, entre os tipos de territórios federais protegidos no estado.

Já as nove unidades de conservação federais acrianas tiveram 1.505 alertas de fogo. As quatro no lado oeste do estado contribuíram, em 2020, com mais da metade (52,2%) dos focos de calor detectados em UCs, enquanto, no ano passado, apenas 34% dos incêndios aconteceram nas unidades dessa região.

No mapa, clique sobre as áreas protegidas (verde) e terras indígenas (laranja) para obter informações sobre elas. Selecione a camada de focos de calor no menu à esquerda para ver a incidência de fogo nas áreas. Dê zoom para visualizar a divisão política dos municípios. 

Apenas a Reserva Extrativista do Alto Juruá, que abrange as cidades de Jordão, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Tarauacá, concentra mais de 22% dos focos identificados no estado, ocupando o segundo lugar no ranking das unidades de conservação que mais queimaram no estado. A área é seguida na lista pelo Parque Nacional da Serra do Divisor (11,6% do total) e pela Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade (10,3%).

A engenheira agrônoma Sonaira Silva é doutora em florestas tropicais, professora na Universidade Federal do Acre (Ufac) e coordena o Projeto Acre Queimadas. De acordo com suas análises, embora o índice de focos de calor em terras indígenas e unidades de conservação seja alto, em número, eles representam menos de 10% no total de hectares queimados no estado. 

“O uso do fogo nessas áreas é para a agricultura tradicional e acaba sendo necessário a essas comunidades porque elas geralmente vivem em regiões de difícil acesso, sem tantas tecnologias e recursos como alternativas a essa prática”, explica.

Por outro lado, segundo a pesquisadora, o uso do fogo para abertura de pasto – seja renovação de pastagem ou em desmatamento recente – foi responsável por mais de 90% da área degradada pelo fogo.

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Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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