Investigação revela que falhas na fiscalização e coleta de dados deixam o crime correr solto no Brasil. Pandemia pode ter facilitado ação de traficantes na floresta tropical.
Investigação revela que falhas na fiscalização e coleta de dados deixam o crime correr solto no Brasil. Pandemia pode ter facilitado ação de traficantes na floresta tropical. Foto de abertura: Um macaco-de-cheiro mostrando-se na Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema no Acre, © Rubens Matsushita / ICMBio
por Aldem Bourscheit
Brasília – O tráfico de animais selvagens voltou às manchetes nacionais com apreensão de 24 cobras venenosas e três tubarões em apartamentos, fazendas e vias públicas do Distrito Federal, em julho. As investigações chegam em outros estados e indicam que estudantes, servidores públicos e empresários estão ligados a redes criminosas nacionais e internacionais. Mas o episódio não é isolado. Esse comércio ilegal está fora de controle no país.
Milhões de animais arrancados da natureza brasileira são vendidos como bichos de estimação, comida exótica, medicina tradicional ou fonte de insumos para indústrias químicas e de cosméticos. A Amazônia é um epicentro do tráfico mundial de animais. Tartarugas, peixes ornamentais e para consumo, além de toneladas de carne de caça foram os itens mais traficados da região entre 2012 e 2019.
A conclusão sobre a centralidade da Amazônia no tráfico internacional de vida silvestre foi divulgada nesta segunda (27 de julho) em novo relatório da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e das ONGs Traffic e União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN).
Foram 18 meses de trabalho, envolvendo investigações em bases públicas organizadas e caóticas, pedidos legais de informações e entrevistas com fontes dentro e fora dos governos federal e dos estados.
O documento mostra que o Brasil é fonte, passagem e consumidor de uma infinidade de espécies, inclusive ameaçadas de extinção. Sapos e cobras venenosas, jacarés, tartarugas, aves, macacos e grandes felinos circulam numa grande feira livre. Pelas fronteiras entre Suriname, Guiana, Colômbia e Peru entram e saem animais, drogas, armas e outros produtos.
A situação é mais crítica porque informações de órgãos como Ibama e Polícia Federal e de seus pares estaduais não estão integradas e padronizadas. Assim, balanços sobre apreensões não apontam com mais clareza quantidades, regiões e espécies mais procuradas e nem os métodos usados pelos traficantes. Poucos agentes em campo ou investigando continuamente as redes criminosas abrem alas para o crescimento do comércio ilegal.
Pelo menos 30 apreensões de partes de onça-pintada (a maioria peles) aconteceram na Amazônia brasileira nos últimos 5 anos. Em 2016, uma batida do Ibama na casa de um caçador em Curianópolis (PA) encontrou pedaços de 19 onças-pintadas em um geladeira, incluindo cabeças, caveiras, peles e patas. Ano passado, surgiram indícios de um grupo de caçadores operando no Acre ao longo dos últimos 30 anos. Estima-se que tenham matado mais de 1.000 onças-pintadas. Em busca de suas partes, o grande felino também é morto em regiões do Suriname, Bolívia e Peru.
Fora de controle
“O tráfico está fora de controle. Juntando dados de diferentes agências e fontes vemos que o crime é extremamente relevante no Brasil e na América do Sul. Um planejamento estratégico precisa ser feito em cima de dados, mas há questões sérias quanto à forma de sua coleta e consolidação dentro e entre diferentes agências. Sem isso não sabemos bem o que combater e como direcionar melhor nossos escassos recursos”, ressaltou Juliana Ferreira, diretora-executiva da Freeland Brasil e uma das responsáveis pelo relatório internacional.
Peixes ornamentais, carne e pele de pirarucu estão entre os produtos mais traficados da Amazônia no período analisado. Seus destinos são especialmente Estados Unidos e países asiáticos, depois de escalas no Peru e na Colômbia. O país é um grande exportador de peixes ornamentais, que seriam criados legalmente. A legislação contra tráfico é diferente em cada país amazônico.
Complicando tentativas de controle e fiscalização, a Amazônia brasileira tem 13 mil quilômetros de fronteiras secas e em rios com países vizinhos. Como mostramos em reportagem do OjoPúblico, em novembro, o simpático peixe-zebra é um dos mais ameaçados e traficados da região, inclusive pela hidrelétrica de Belo Monte.
Ao mesmo tempo, ações do governo de Jair Bolsonaro e a pandemia de COVID-19 podem ter facilitado o tráfico de animais na Amazônia. A presença de agentes na grande floresta e o orçamento da fiscalização foram reduzidos duramente pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Decreto publicado em abril de 2019 aliviou a aplicação de multas contra crimes ambientais.
“Durante a quarentena parece os traficantes estão com maior sensação de impunidade. Eles querem mais é vender, suprir a demanda e lucrar. Por outro lado, a pandemia abriu os olhos do mundo sobre riscos das zoonoses e do tratamento que damos à fauna silvestre”, avaliou Juliana Ferreira, da Freeland Brasil.
Como mostramos em reportagem do InfoAmazonia, em abril, a COVID-19 pode ter surgido do consumo e do contato humanos com animais selvagens, e a degradação acelerada da Amazônia pode ser uma fonte de novas enfermidades tropicais.
Consumo doméstico
Além do mercado internacional, o tráfico da Amazônia abastece majoritariamente o Sudeste do país. Lá também é consumida grande quantidade de animais trazidos do Nordeste em caminhões, ônibus legais e clandestinos e carros de passeio. Principais rodovias, aeroportos e outras vias de tráfico são conhecidas no Brasil. Apenas a Polícia Militar de São Paulo apreendeu mais de 250 mil animais entre 2001 e 2012.
Apoiando apreensões junto com forças policiais e cuidados com animais traficados desde 1989, Marcelo Pavlenco Rocha é presidente da organização SOS Fauna. Um ônibus vindo da Bahia rumo a São Paulo com 4.300 aves e outros animais foi a maior ação que já acompanhou, em 2003. No ano seguinte, topou com um filhote de onça-preta à venda por R$ 1.500,00, em Belém (PA).
Para conter o tráfico ele defende mais educação, geração de empregos e fiscalização onde os animais são capturados, vendidos e comprados. Também falta capacitação para fiscais rodoviários e outros agentes para melhor identificar onde e como os animais são traficados no país. Mas a medida pode se tornar um tiro no pé sem melhorar o transporte e a infraestrutura para bichos apreendidos.
“O combate a esse tipo de crime precisa de mais agentes capacitados e operações de inteligência dedicadas e contínuas para aumentar e qualificar apreensões. Ao mesmo tempo, é preciso ter protocolos para evitar a morte dos animais apreendidos durante o transporte, melhorar a infraestrutura para alojá-los durante o tratamento até a soltura, dos que ainda podem viver em ambientes naturais”, ressaltou Pavlenco.
Para Juliana Ferreira, prejuízos ambientais e econômicos do tráfico de animais só começarão a ser contidos quando penas mais duras forem aplicadas aos criminosos e o combate ao crime se tornar uma prioridade para os governos, judiciário e órgãos de fiscalização.
A legislação brasileira proíbe o tráfico desde 1967. Em 1998 a Lei de Crimes Ambientais facilitou a vida de traficantes tornando quase impossível mandar alguém para atrás das grades pelo crime. Um projeto de lei que prevendo sanções mais duras tramita há 15 anos no Congresso Nacional.
“Falta priorização por parte do governo e dentro das instituições. É preciso adaptar a legislação e trabalhar com atores do judiciário sobre a relevância do crime e a importância de que as penas sejam condizentes com a conduta. O tráfico tem graves conseqüências para a biodiversidade e para a economia, pois pode levar espécies à extinção e não paga impostos como atividades legalizadas”, destacou.
Enquanto isso não acontece, a vida selvagem brasileira segue escorrendo livremente pelas mãos de impunes traficantes.
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