Degradação ambiental na Amazônia replica padrões que fizeram surgir o novo coronavírus na Ásia.

Degradação ambiental na Amazônia replica padrões que fizeram surgir o novo coronavírus na Ásia. 

por Aldem Bourscheit

Desmatamento e queimadas, obras de infraestrutura, urbanização, garimpo e tráfico de animais fazem parte do cotidiano da Amazônia. A destruição dos ambientes naturais engrossa um caldo semelhante ao que fez surgir a Covid-19 e outras doenças na Ásia e África.

Estudos como do Centro Nacional de Informação Biotecnológica (Estados Unidos) mostram que sete em cada dez pandemias modernas têm origem na vida selvagem. Ebola, H1N1 (Gripe Suína), SARS (sigla em Inglês de Síndrome Respiratória Aguda Grave) e outras zoonoses chegaram às pessoas por meio de variações de vírus antes hospedados por animais.

“Qualquer doença emergente nos últimos 30 ou 40 anos surgiu como resultado da invasão de terras selvagens e do deslocamento de populações humanas”, disse ao jornal New York Times Peter Daszak, presidente da EcoHealth, uma aliança de pesquisadores debruçada sobre as conexões entre as saúdes humana, animal e ambiental.

Destruir a natureza empurra bichos e insetos para perto de populações humanas, no campo e nas cidades. Episódios da exploração da Amazônia apontam nessa direção.

Até 10 mil trabalhadores morreram construindo a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Rondônia, no início do Século XX. Muitos sucumbiram à malária, causada por um protozoário transmitido por mosquitos. A mesma doença levou inúmeros “soldados da borracha”, migrantes levados pelo governo nos anos 1940 para extrair látex na floresta. Ainda hoje, a enfermidade assombra os habitantes da Amazônia. No primeiro semestre de 2018, São Gabriel da Cachoeira (AM) decretou emergência por uma explosão de 3.500% em casos de malária.

Marcus Vinitius de Farias Guerra é diretor-presidente da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, em Manaus (AM), entidade referência clínica no combate ao coronavírus no estado. Ele avalia que a malária é a infecção mais problemática na Amazônia desde o período da extração da borracha e lembra que doenças como essa ganham força com a degradação ambiental.

“Ainda não totalmente descritas, arboviroses como febre amarela, dengue, oropouche e mayaro contribuem em grande escala com a morbimortalidade [mortalidade causada por doenças] na Amazônia. Todas surgem em epidemias resultantes de fatores como reprodução [de mosquitos] em criadouros urbanos, alteração do meio ambiente, atividades clandestinas como mineração e assentamentos [humanos] sem controle”, ressaltou o pesquisador de medicina tropical desde os anos 1970.

Formas de transmissão

Abrigando seis em cada dez pessoas no planeta e com altas taxas de urbanização e destruição ambiental, a Ásia e a África são fontes de doenças de alcance regional ao global.

Mercado de frutos do mar de Wuhan fechado após a primeira detecção do novo Coronavírus em 2020. Foto Sistema 12/Wikimedia Commons

“Só na última década, cerca de 200 milhões de pessoas deixaram o campo na Ásia oriental rumo às cidades. Urbanização também significa desmatamento e destruição de ambientes naturais”, ressaltou em artigo no site científico The Conversation o especialista em doenças transmitidas por animais e professor da Universidade Estadual da Pensilvânia (Estados Unidos) Suresh Kuchipudi.

A destruição da Amazônia é semelhante à de regiões da Ásia e da África, mas doenças oriundas desses continentes se propagam de maneira distinta das enfermidades registradas na floresta sul americana, onde isso recai especialmente na conta de mosquitos, conta Farias Guerra, da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado.

“Epidemias na Ásia e África são diferentes em termos de transmissibilidades. Além da transmissão por via aérea ou objetos contaminados, são na sua maioria causadas por vírus que se desenvolvem em animais que estão muito próximos dos humanos, que lhes servem de meio de transporte ou fazem parte da cadeia alimentar”, explicou.

Pesquisas sugerem que o novo coronavírus coexistia com morcegos de regiões remotas da Ásia. Os mamíferos voadores teriam transmitido uma variação do patógeno para o pangolim – um pequeno tamanduá cheio de escamas – e outros animais que chegam à mesa das pessoas através da caça e do tráfico.

Comércio e consumo de espécies selvagens eram comuns na chinesa Wuhan, cidade onde o COVID-19 surgiu. A China proibiu temporariamente as práticas com o planeta tomado pelo coronavírus. As medidas podem se tornar permanentes.

“Tipos de coronavírus são conhecidos desde os anos 1960 por sua capacidade de contaminarem pessoas através do contato com animais. Não há comprovação do surgimento da doença fora da Ásia. Provavelmente, em nove ou dez anos, teremos um novo coronavírus na região, e uma vacina desenvolvida para o COVID-19 não funcionará para nenhum outro coronavirus”, alertou Helena Brígido, especialista em Infectologia, Epidemiologia e Saúde Pública e professora da Universidade Federal do Pará.

Mercados da vida selvagem

Com o alerta de perigo apontando, por enquanto, para outros pontos do planeta, o desmatamento segue em alta e animais selvagens são capturados e comercializados livremente na Amazônia e outras regiões do Brasil. Traficados, podem transmitir doenças para quem participa desse mercado ilegal.

Animais apreendidos em feira clandestina em Manaus. Fotos de Erlon Rodrigues/Polícia Civil do Amazonas

Em novembro, uma feira clandestina vendendo cachorros, macacos, jabutis, aves, quatis e corujas foi desmontada em Manaus (AM). Em setembro, uma quadrilha foi detida no Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, com carne de anta, tartarugas e seus ovos. Os itens seriam vendidos e consumidos.

Apreensões desse tipo são comuns na Amazônia, cidades e capitais do Brasil. Estimativas da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres são de que 38 milhões de animais são retirados da natureza a cada ano no Brasil, segundo a ONG Renctas.

Em março, Ibama, Polícia Militar e Correios apreenderam filhotes de jabuti e de iguana em postagens feitas pelos Correios que chegaram a Curitiba (PR) e Campinas (SP). Como mostrado em reportagem feita em aliança com o OjoPúblico (Peru) e no The Intercept Brasil, a Amazônia é fonte e rota do tráfico internacional de animais selvagens e o crime ocorre no país por WhatsApp, Facebook e outras redes sociais.

Crimes ambientais continuam

O ambientalista e secretário-executivo do Observatório do Clima Márcio Astrini destaca que os perigos do coronavírus e também da crise climática são alvo de alertas de cientistas há décadas, mas tomadores de decisão seguem adiando soluções para reduzir impactos desses problemas na saúde, meio ambiente e economia.

“O novo coronavírus coloca a vida das pessoas em risco imediato e deve servir de lição para a questão climática, mesmo que a maioria ainda não se sinta ameaçada. Enfrentar crises que afetarão a vida de milhões de pessoas passa por escutar os alertas da Ciência e se antecipar aos problemas”, ressaltou.

Ele também alerta para o perigo de que a pandemia seja usada por governos como pretexto para novos retrocessos ambientais, inclusive em nome da retomada da economia pós coronavírus.

Com a doença se disseminado, o governo defende a regularização de terras griladas na Amazônia e quer mineração, hidrelétricas e pecuária em terras indígenas. O perigo de contágio fez o Ibama reduzir a fiscalização na Amazônia. Desmatamento e queimadas voltarão com força na estação seca, a partir de março, com pandemia ativa no país.

Se o ritmo acelerado de derrubadas se confirmar nos meses de seca, é muito provável que 2020 seja marcado por uma nova explosão da taxa oficial de desmatamento. No ano passado, a alta de 30% elevou o índice à 9,8 mil hectares, o mais alto em uma década.

“Antes do vírus a Amazônia já sofria com a doença da exploração insustentável transmitida por governos anteriores, mas a prática se aprofunda no governo Bolsonaro, que nega a realidade e prega a destruição ambiental. O Brasil tem a pior liderança global contra o vírus e podemos colher ainda mais prejuízos com a explosão do desmatamento e das queimadas na Amazônia a partir do início da estação seca”, destacou o ambientalista.

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