Entre sonhos e incertezas, moradores relatam falta de transparência e conhecimento sobre projeto que impactará diretamente suas vidas.
Há 14 anos, moradores de Autazes, no sudoeste do Amazonas, aguardam a concretização da promessa da chegada de novos empregos da Potássio do Brasil. A empresa, que anunciou a descoberta de minério de potássio em 2010, tem planos de exploração para 2029, mas já integra o cotidiano da cidade e desperta discussões sobre impactos ambientais e econômicos, sobretudo em um cenário de seca severa pelo segundo ano consecutivo.
A falta de diálogo entre a população e a empresa e a incerteza sobre os impactos da mineração em Autazes não afetam apenas os povos indígenas, especialmente o povo Mura, mas também produtores rurais e moradores urbanos. O soldador e ex-trabalhador de plataformas de perfuração Obdias Baitone de Souza, 38, é um exemplo sobre a expectativa e a apreensão da população. “Espero que dê emprego, mas o ser humano prejudica a natureza. Dá dinheiro no início, depois vem o prejuízo, como foi em Brumadinho (MG)”, lamenta ele, atualmente desempregado.
Embora, estudos indiquem que o complexo de Autazes apresenta riscos ao meio ambiente, afetando solo, vegetação, aquíferos e a biodiversidade, além de agravar o desmatamento e o ciclo hidrológico da região, o dilema entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental se torna ainda mais complexo devido à subestimação dos impactos no processo de licenciamento. Além disso, as comunidades diretamente afetadas não foram informadas de maneira adequada sobre as consequências previstas.
Duas audiências públicas foram realizadas em março de 2015, em Autazes e Urucurituba, destinadas à apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) relacionados ao projeto de mineração de potássio na região. Contudo, os eventos foram criticados pelo Ministério Público Federal (MPF), especialistas e demais participantes por não esclarecerem adequadamente os impactos ambientais e sociais do empreendimento, focando somente nos benefícios propostos. A falta de consultas apropriadas às comunidades indígenas também foi destacada no laudo antropológico.
Embora essa discussão já se estenda há quase uma década, o direito da população a escuta e esclarecimentos permanece sendo ignorado. E mesmo diante de um processo de consulta questionável e opaco, o Projeto Autazes recebeu este ano, licença ambiental do governo do Amazonas. É nesse cenário de insegurança quanto aos efeitos ambientais e econômicos que os autazenses aguardam não mais para serem ouvidos ou ter suas dúvidas esclarecidas, mas para saber qual será a parte que lhes caberá no futuro decidido por autoridades políticas e empresariais.
‘Terra do Leite e do Queijo’ em risco
Autazes é conhecida como “Terra do Leite e do Queijo”, com uma produção média de 50 mil litros de leite ao dia, acima da média nacional, que é de 26 mil litros/dia. No entanto, essa produção já sofreu uma queda de 20% este ano, impactada pelas mudanças climáticas, segundo a Associação dos Produtores de Queijo de Autazes (Aproqueijo).
Apesar dos desafios climáticos, o setor lácteo continua sendo um pilar econômico local, contando com seis fábricas de laticínios, 9 queijarias flutuantes reconhecidas pelo Serviço de Inspeção Estadual e 14 com processo de reconhecimento. Com 87 mil cabeças de gado para 41,5 mil habitantes, Autazes mantém um Produto Interno Bruto (PIB) relevante para a região, mas enfrenta o paradoxo de ter um baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nesse cenário, a cidade busca conciliar sua vocação agropecuária com a identidade emergente de “Terra do Potássio”, já promovida pela prefeitura em redes sociais.
O presidente do Sindicato Rural de Autazes, Jeremias Barbosa Nery, 32, considera a mineração uma atividade passageira. “Autazes não vai deixar de ser a Terra do Leite. Queremos ver o que a Potássio do Brasil vai deixar de qualificação e apoio ao setor produtivo, pois um dia o potássio acaba, mas a produção rural continuará”, defende. Para Barbosa, a mineração precisa beneficiar toda a comunidade e não apenas um grupo seleto, evitando impactos, como a possível contaminação da água, essencial para a produção de leite.
Para quem trabalha no comércio local, os efeitos de uma exploração mineral em larga escala, em uma terra que já vivencia o drama de secas cada vez mais severas, prejudicará todos os setores econômicos. A vendedora Lorena Ribeiro, 35, resume a dúvida de muitos: “Comentam que nas fazendas estão cavando poços para água do gado, mas de que adianta, sem deixar árvores por perto? Do mesmo jeito, não sabemos se vale a pena extrair potássio e depois sofrer os impactos. Se essa água, que já é pouca, ficar contaminada? Parece um telefone sem fio, onde ninguém sabe ao certo as consequências”.
Exploração de minério e de vulnerabilidade
Para o sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Marcelo Seráfico, o projeto de exploração de potássio em Autazes reflete um modelo de desenvolvimento que desconsidera alternativas sustentáveis.
“Há um alto grau de perversão no modo como o projeto é apresentado politicamente, explorando a vulnerabilidade das pessoas como justificativa para iniciativas econômicas que ignoram outros caminhos”, critica. Para o sociólogo, ao invés de abrir um debate sobre estratégias de desenvolvimento social, uso sustentável dos recursos naturais e práticas tradicionais, o projeto se aproveita de um contexto marcado pelo desemprego e pela falta de renda.
Enquanto isso, o pároco da igreja matriz de Autazes, Francisco Level, nascido na cidade, chama atenção para os problemas cotidianos, como o lixo espalhado, as queimadas durante a seca e os impactos na saúde da população, que refletem o desinteresse político em detrimento do potencial econômico da cidade. E enfatiza também a importância do investimento em políticas públicas, especialmente em Educação Superior e profissionalizante.
“Sem isso, a cidade não consegue pensar no meio ambiente como uma “casa comum”, avalia.
Já Claudinei dos Reis Costa, 39, fundador da célula da Assembleia de Deus em Autazes, apesar de ter esperança em um futuro próspero a partir da chegada da Potássio do Brasil na cidade, não desconsidera as problemáticas ambientais com a chegada da mineradora. “Sinceramente, eu não conheço e nunca ouvi falar de uma mineração que não tenha causado danos irreparáveis”, reflete o religioso.
Além da vulnerabilidade socioeconômica, a influência política exercida por autoridades públicas em todos os níveis — do governo federal ao municipal — também interfere na percepção local sobre o projeto de mineração em Autazes. “Quando a população ouve que o projeto será aprovado porque o vice-presidente (Geraldo Alckmin) afirmou que trabalharia com empenho para resolver o problema jurídico, ou porque o governador (Wilson Lima) entregou pessoalmente a licença ambiental estadual para os representantes da Potássio do Brasil, ela percebe que não tem voz nem vez”, explica Caroline Nogueira, coordenadora do Observatório de Direito Socioambiental e Direitos Humanos na Amazônia (ODSDH) e estudiosa do caso desde outubro de 2023.
O ODSDH é vinculado à UFAM e credenciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 2018, com um núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular que presta apoio ao Povo Mura. O fato da consulta ter sido conduzida sem transparência e em desacordo com protocolo do Povo Mura, é uma das diversas ilegalidades apontadas durante o processo de licenciamento do projeto, conforme o MPF, que chegou a pedir o cancelamento da licença estadual. As alegações incluem riscos ambientais e sociais não dimensionados e suspeitas de manipulação do processo de consulta com lideranças locais.
Por conta da atuação a frente desta pauta, Nogueira foi intimada pela corregedoria da universidade a justificar a atuação de seu grupo de pesquisa na assessoria jurídica a indígenas do povo Mura, que se opõem à mineração da empresa Potássio do Brasil em suas terras. A medida, vista como uma tentativa clara de silenciamento, alegava possível “conflito de interesses” devido a um protocolo de intenções entre a UFAM e a mineradora. Após manifestações de repúdio e questionamentos do MPF sobre possíveis irregularidades nesse acordo, o procedimento foi arquivado em menos de 15 dias.
Silenciamento e falta de diálogo
A sensação de descrédito quanto à mitigação dos danos do projeto de mineração é fruto da falta de diálogo e de escuta da população, um modus operandi de aprovação de grandes projetos de exploração econômica na Amazônia, segundo a coordenadora do Programa Amazônia na organização de direitos humanos Terra de Direitos, Bruna Balbi, doutora em Direito Socioambiental e advogada vinculada à Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP).
“A participação popular deve acontecer desde o planejamento estratégico do Estado, ou seja, em uma etapa anterior ao licenciamento. Quando se promovem as consultas públicas para a obtenção do licenciamento, já existe uma decisão tomada que fica à espera, apenas, de comprovação da viabilidade técnica”, explica Balbi. Além disso, a ausência de informação qualificada sobre o projeto, prejudica a tomada de decisão e a qualidade da percepção, por parte da população, sobre os impactos ambientais e sociais.
“Da forma como o licenciamento foi feito, todo fragmentado [em 11 diferentes processos, segundo o MPF], resultou em estudos de impacto falhos que prejudicaram a visão do todo. É como se não fosse o mesmo projeto. Por exemplo, não se sabe como esse processo vai impactar o afundamento do solo, a salinização da água, a pesca, entre outras atividades”, explica a advogada.
“No caso do licenciamento em Autazes, vemos fraudes na consulta pública, cooptação de lideranças, tentativa de silenciamento dentro da Universidade (Federal do Amazonas) e todo o modus operandi que demonstra o um projeto com lobby ligado aos maior poderes econômicos que existem no País: a mineração e o agro”, afirma. “Imagina se essa população local conseguirá se posicionar?”, completa.
Doutora em Geografia, a docente e pesquisadora da UFAM, Ivani Ribeiro, referência em Consulta Prévia Livre e Informada e Geopolítica Ambiental, afirma que toda a sociedade afetada tem o direito de se manifestar, independente da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que é específica para povos tradicionais.
“A sociedade tem o direito de pelo menos manifestar suas preocupações para, no mínimo, os impactos serem minimizados e o povo ficar ciente de tudo que o espera no futuro. O fato de a OIT não ser vinculante significa que a sociedade não tem poder de decisão, mas o direito de ser ouvida e consultada. Por essa dinâmica, ela não tem poder de embargar ou parar a obra ou mudar muitas coisas, a não ser que o governo ou a empresa queiram”, explica.
Em 2020, mesmo impedida de qualquer atividade sem autorização judicial, a Potássio do Brasil firmou um acordo com a construtora chinesa CITIC para erguer um complexo de exploração de potássio em Autazes, um contrato de US$ 1,94 bilhão, assinado sem qualquer consulta às partes envolvidas. A empresa omitiu do MPF tanto o contrato bilionário com a CITIC quanto a intenção de prospectar investidores nos Estados Unidos.
Luta ancestral
Autazes, cuja origem do nome vem do encontro dos rios Autaz-Açú e Autaz-Mirim, é habitada desde o século XVIII pelo povo indígena Mura. No entanto, desde 2003, o Conselho Indígena Mura solicita à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a demarcação das terras indígenas Soares/Urucurituba, um território tradicionalmente ocupado pelos Mura e que está no centro do processo de disputa territorial devido ao projeto de mineração de potássio na região.
Durante a passagem da reportagem por Autazes, o tuxaua Felipe Gabriel Mura estava ajudando na decoração da formatura de alunos da pré-escola. “Foi como professor que ingressei na luta, então, a educação é o mais importante para o futuro dos Mura”, afirma.
No entanto, a construção desse futuro também envolve enfrentar os desafios do presente. Em agosto deste ano, Felipe esteve na Funai para cobrar o andamento do processo de demarcação das terras indígenas. “Tínhamos muita expectativa, mas descobrimos que estamos sozinhos. Informaram que tudo está parado até que a decisão sobre o marco temporal seja tomada”, explica.
A demanda pela demarcação das terras enfrenta uma série de desafios legais e políticos. O Ministério Público Federal (MPF) questiona a legalidade da exploração mineral nessas terras, com base no artigo 231 da Constituição, que proíbe atividades em territórios indígenas sem consulta e consentimento. Em 2016, o MPF ajuizou uma ação que resultou na paralisação das atividades da Potássio do Brasil, mas, em 2022, a licença do projeto foi renovada, e em 2024, 11 novas licenças foram emitidas para a mineração, apesar da oposição dos Mura.
Além das disputas territoriais, o MPF também alerta para os impactos ambientais que a mineração pode causar, especialmente no que diz respeito à poluição hídrica e ao risco de contaminação do solo e das águas, essenciais para a subsistência das comunidades.
A geógrafa Ivania Faria destaca os potenciais danos do projeto, que afetaria diretamente 40 aldeias na região de Careiro da Várzea e de Autazes. Entre os riscos, estão a contaminação da água, a destruição da fauna e flora local, e os conflitos internos entre as comunidades a favor e contra a mineração. A salmoura produzida pela mineração, por exemplo, pode afetar os recursos hídricos e comprometer a agricultura local.
Outro ponto controverso é a emissão das licenças pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), que, segundo a legislação ambiental, não tem competência para licenciar um projeto de grande porte como o da Potássio do Brasil. O MPF e especialistas apontam que o processo de licenciamento deveria ser conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), conforme estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, devido ao significativo impacto ambiental que a mineração pode causar.
A professora da UFAM Carolina Nogueira, que acompanha o caso, destaca a importância de reconhecer o direito originário à terra: “A demarcação é uma medida de proteção, mas o direito já existe. Esse discurso de que não se trata de terras indígenas, mas de terras da União, e de que ‘não temos obrigação de fazer nada’, é o discurso do agro. É esse discurso que permite que o Ipaam siga com o processo”, afirma.
Nos dias 31 de outubro e 1º de novembro, sete organizações Mura se reuniram na aldeia São Félix, em Autazes, para o VII Encontro do Povo Mura. O encontro teve como objetivo discutir estratégias para enfrentar as ameaças ao território na região do baixo rio Madeira.
Outro lado
Em nota enviada à reportagem, a Potássio do Brasil informou que “não comenta decisões judiciais ou manifestações processuais, respondendo-as exclusivamente nos autos”. Sobre o processo de aproveitamento da mão de obra local, afirmou já “ter declarado amplamente” que vai gerar cerca de 2.600 empregos diretos anuais, no período de implantação, que terá duração média de quatro anos. Outros 1.300 empregos diretos e milhares indiretos “deverão ser gerados durante a fase de operação do empreendimento”, ao longo dos mais de 23 anos de vida útil do Projeto Potássio Autazes, informou a empresa, por meio da assessoria de comunicação.
Esta reportagem foi realizada pela Rede Cidadã InfoAmazonia, e contou com o apoio do Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), que atua para amplificar ações climáticas locais e busca desempenhar um papel central no debate climático global. A InfoAmazonia faz parte da coalizão “Fortalecimento do ecossistema de dados e inovação cívica na Amazônia Brasileira” com a Associação de Afro Envolvimento Casa Preta, o Coletivo Puraqué, PyLadies Manaus, PyData Manaus e a Open Knowledge Brasil.