Reportagem registra o abandono do Estado nas áreas próximas às principais rodovias que conectam Amazonas e Acre, parte da AMACRO. Posseiros e fazendeiros disputam áreas da União, levando a conflitos sangrentos e a um aumento da grilagem e do desmatamento.
Um prédio abandonado está às margens de uma estrada de terra batida. O letreiro é pequeno, mas é possível ler: “Secretaria da Fazenda do Amazonas”. Ali, na divisa com o Acre, o posto fiscal da Sefaz é a única presença do Estado no lado amazonense. Do outro lado, o acreano, há um trecho pavimentado e um outro posto da Sefaz. Uma bandeira indica que aquele é um território do Acre. Assim como do lado amazonense, a sensação é de abandono. Não há controle sanitário, nem de mercadorias, nem de pessoas.
O ponto mais movimentado é uma lanchonete, uma opção de parada de quem viaja entre a capital acreana Rio Branco e o município amazonense de Boca do Acre, separados por 230 km pela BR-317. Pouco mais de 90 quilômetros antes da divisa entre os dois estados, está a BR-364, que liga Rio Branco a Porto Velho, em Rondônia. O entroncamento onde as duas rodovias federais se encontram é conhecido como Quatro Bocas.
Muitos consideram esse ponto como o coração da AMACRO, a zona que abrange 45 milhões de hectares na divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia e ocupa 10% do bioma amazônico. São as rodovias BR-317 e BR-364 que conectam os três estados a terras cobiçadas pelo agronegócio. Não por acaso, a região passou a ser definida como a nova fronteira do desmatamento da Amazônia nos últimos anos.
Os conflitos violentos além do crimes ambientais
Como pano de fundo dos crimes ambientais — a AMACRO representa, sozinha, 80% do desmatamento dos três estados —, estão conflitos fundiários violentos que resultam em ataques a residências de moradores, tentativas de homicídio e até tortura.
A reportagem percorreu os 230 km da BR-317, entre Rio Branco e Boca do Acre, e conversou com posseiros que buscam recuperar ou angariar espaço para produzir em meio ao avanço da monocultura de soja e da grilagem de terras públicas.
"[Os pistoleiros] pegaram o pai de um amigo nosso e o torturaram das sete da manhã até uma hora da tarde, dizendo que tinham matado todo mundo, que tinham tocado fogo no barraco e que, se ele quisesse procurar o corpo do filho dele, podia ir ou então podia voltar pra casa dele”, conta Mizael Magalhães de Araújo, posseiro, sobre uma das disputas ocorridas na região. Junto com outros posseiros que reivindicam a transformação da área num assentamento do Incra, ele mora na Vila Caquetá, em Porto do Acre, a 80 km de Rio Branco. Segundo ele, o homem sequestrado também foi sufocado com sacos plásticos.
A reportagem encontrou diferentes lideranças da região na residência de um dos posseiros. Entre eles, estavam os atingidos pelos chumbos de uma escopeta calibre 12, que os feriu quando foram expulsos por pistoleiros do interior da Fazenda Fusão, localizada entre Lábrea, no Amazonas, e Senador Guiomard, no Acre, em maio deste ano. Nas pernas e na altura dos olhos de um deles, ainda era possível ver as marcas dos tiros. Desde aquele episódio, eles deixaram de realizar a retomada da ocupação.
“Faz uns dois anos, dois anos e meio, que a gente decidiu ocupar as terras, fazer um assentamento lá. Desde o começo, quando a gente estava fazendo o barraco, eles [pistoleiros] já queimavam. A gente ia lá, passava dois, três dias, às vezes até quatro, e era obrigado a sair porque eles iam lá e queimavam o barraco”, afirma Edgeberson José Alves, posseiro.
"Se a gente saísse para trabalhar nas nossas terras um pouquinho, quando voltava, estava tudo queimado. Furavam as panelas, atiravam nas panelas, nos barracos. Aí, nos últimos meses, resolveram atirar na gente’, completa.
A concentração de terras que gera os conflitos
Na rodovia BR-317, em direção a Boca do Acre e ainda em território acreano, encontra-se o município de Porto Acre à esquerda. Já à direita, basta cruzar a estrada para chegar a Senador Guiomard. No mesmo trajeto, ao entrar no Amazonas, está Boca do Acre à esquerda e, poucos metros à frente, Lábrea. Independentemente dos limites das cidades, há grandes propriedades rurais — verdadeiros latifúndios que ocupam ambos os lados da rodovia e se estendem pelos dois estados.
Essa concentração de terras cria as disputas violentas. Famílias perderam o emprego com a chegada da soja e agora buscam um pedaço de terra para viver. Eles passam a ocupar áreas remanescentes de floresta e exigem que sejam reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como assentamentos.
Cosme Capistrano da Silva, liderança da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Boca do Acre, afirma que muitas famílias trabalhavam anteriormente na extração de castanha nas áreas de mata. Desde 2022, elas decidiram ocupar essas terras e dividir os lotes entre si. Boa parte dessas áreas são de propriedade da União, ou seja, não tiveram uma destinação dada pelo governo. “Em 2022, eles decidiram ocupar essa área. Foi aí que começou os tiroteios, as ameaças de morte, a tortura”.
“Fazendas que antes tinham 50 funcionários, hoje, têm cinco, no máximo. Foram trocados pelas máquinas. Onde antes elas quebravam a castanha, o fazendeiro chega e expulsa e diz ‘isso é meu’”, afirma o líder da CPT.
Assim, os grandes e novos fazendeiros afirmam que os posseiros estão invadindo as reservas legais de suas propriedades e, por isso, os expulsam. Aqueles que não aguardam uma decisão judicial para seus pedidos de reintegração de posse recorrem a pistoleiros e jagunços para fazer a retirada das famílias dos agricultores com violência.
“Nós temos um Estado ausente. Nós não temos reforma agrária na nossa região. O único projeto de assentamento foi na década de 1980. Em toda essa região, só temos dois assentamentos, o PAE [Projeto de Assentamento Agroextrativista] Monte e o PAE Antimary, que pega Boca do Acre e Lábrea. De lá pra cá, ninguém mais foi assentado”, diz Cosme.
Em 24 de setembro, a Justiça Federal condenou quatro pessoas por danos ambientais, florestais e climáticos ocasionados pelo desmatamento ilícito em áreas do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary em Boca do Acre (AM), a 1.555 km da capital Manaus. Os valores a serem pagos pelos condenados em indenizações somam mais de R$ 11 milhões.
A área de desmatamento consolidado totalizava 13.921,98 hectares até 2018, com diversos registros de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) sobrepostos ao PAE Antimary. Além da indenização, os réus terão a obrigação de recuperar a região degradada. “É a primeira vez que réus são sentenciados com quantificação monetária do dano por emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e essa é mais uma maneira de combater essa prática ilegal”, destacou o procurador da República Rafael da Silva Rocha.
O Incra, a corrupção e milhões em prejuízo
Enquanto isso, o Incra do Amazonas enfrenta uma série de denúncias de corrupção, que vão de desvio de recursos públicos a fraudes em contratos. Em abril de 2021, a Operação Ínvio, realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em conjunto com a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF), apontou o superfaturamento de serviços de recuperação de estradas vicinais, com prejuízo estimado em R$ 4,7 milhões. O foco das investigações está em contratos firmados para serviços que não foram devidamente executados.
Em agosto de 2023, iniciou-se a Operação Xingu, deflagrada pela PF para reprimir diversos crimes ambientais praticados no sul do Amazonas. Foi descoberto um esquema envolvendo um grileiro, dois pecuaristas e um técnico de georreferenciamento, responsável pelo esquentamento de imóveis rurais junto ao Incra e ao CAR.
A investigação foi iniciada a partir de denúncias de conflito agrário e desmatamento para exploração de gado, ocorridos entre os municípios de Boca do Acre e Lábrea, que foram confirmados por diligências de campo e análise de imagens de satélite. A organização criminosa foi responsável por destruir cerca de 800 hectares de mata nativa amazônica, em 2022, causando um prejuízo ao meio ambiente calculado em mais de R$ 17 milhões.
Como resultado dessas duas operações, foram cumpridos quatro mandados de prisão preventiva, 25 de busca e apreensão e seis de proibição de acesso e frequência à Floresta Estadual (FES) do Antimary, no município acreano de Sena Madureira. Entre os presos, está um dos condenados pelo assassinato da missionária americana Dorothy Stang, morta em 2005.
Já em junho deste ano, a Polícia Federal realizou a Operação Brazilian Cricket para reprimir uma organização criminosa que atuava no sul do Amazonas. O grupo, segundo a investigação, é composto por uma família de grileiros, servidores do Incra e outros operadores, responsáveis pela prática de fraudes em cartórios e em sistemas informatizados da União, além de estelionato e lavagem de dinheiro.
Para Mizael Magalhães de Araújo, posseiro, essa sobreposição de territórios entre Acre e Amazonas provoca um ambiente de empurra-empurra de responsabilidades das instituições. “A gente vai na Polícia Civil de Senador Guiomard registrar ocorrência e eles dizem que a área é do Amazonas. Por isso, a gente tem que ir na delegacia de Boca do Acre. Aí a gente vai lá e eles falam que o caso é da Polícia Federal em Rio Branco. A gente fica ‘pra lá e pra cá’, sem saber a quem recorrer”, diz.
Segundo os dados do relatório Conflitos no Campo 2023, elaborado pela CPT no ano passado, a AMACRO registrou oito assassinatos em disputas por terra, dos 31 ocorridos em todo o país.
O impacto no meio ambiente
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Boca do Acre conta com uma população estimada de 38.246 pessoas. Por ser a região onde está localizada a foz (boca) do rio Acre, o município recebeu esse nome. É ali onde o manancial deságua no rio Purus e segue sua trajetória Amazonas adentro. Por causa do nome, muita gente acredita que o município está em território acreano, mas ele pertence ao estado vizinho, o Amazonas.
No centro, estão os prédios da administração pública. Um deles é o do Incra. Para quem não é da cidade, é quase impossível identificar o prédio. A reportagem só o localizou por conta do veículo oficial da autarquia estacionado na entrada. Num canto, uma placa já bastante enferrujada e os letreiros quase apagados indicavam que ali era o prédio do órgão responsável por amenizar os impactos dos conflitos fundiários no sul do Amazonas.
Junto com Boca do Acre, também está no epicentro dos problemas da AMACRO a cidade de Lábrea, também no Amazonas. De acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), ambas as cidades estão entre as mais afetadas pelo desmatamento e pela degradação florestal, que se intensificam com o aumento das queimadas. Em julho de 2024, Lábrea registrou 23 km² de desmatamento, enquanto Boca do Acre somou 20 km², colocando-as no ranking das áreas mais impactadas da Amazônia.
Essa tendência reflete o aumento das atividades agropecuárias e da grilagem de terras, que são os principais motores das queimadas na região. A seca prolongada facilita a propagação de incêndios florestais, contribuindo para a degradação ambiental. Dados do PrevisIA, uma plataforma que prevê riscos de desmatamento, indicam que tanto Lábrea quanto Boca do Acre estão em áreas de alto risco para destruição florestal.
“Essa região tem um olhar bem fixado para a questão da soja. A soja está vindo com muita força. Ela quer se expandir. Mas não é que o boi vai acabar. O boi vai acabar em outras áreas. Por isso, a grilagem é muito forte para eles [grandes agricultores]. Eles estão usando as terras novas, que são terras griladas, para o pasto. As velhas são usadas para a expansão da soja”, diz Cosme Capistrano da Silva, liderança da CPT, em Boca do Acre.
A estratégia, de acordo com Cosme, é despejar veneno sobre as áreas de floresta com o uso de aviões, deixando a mata morrer de forma “natural”. Depois, queimar o que sobrou. “Quando a fiscalização [ambiental] chega, eles [grandes agricultores] culpam o trabalhador, culpam o extrativista”.
A fumaça gerada por essas queimadas tem graves consequências para a saúde pública, afetando tanto a população local quanto outras regiões do Brasil. Estudos indicam que a fumaça das queimadas na Amazônia pode percorrer longas distâncias, intensificando problemas respiratórios em idosos e crianças. Entre agosto e outubro de 2023, cidades como Manaus ficaram envoltas em fumaça, deixando a qualidade do ar entre as piores do planeta. O problema se repetiu em 2024 e teve novamente como epicentro essas duas cidades.
Este conteúdo faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia, realizado em parceria com o Varadouro e O Vocativo.