A proposta, feita por Colômbia e Brasil, de incluir os povos afrodescendentes como atores-chave na proteção da biodiversidade provocou um debate que durou a semana toda. Há dois pontos centrais dessa discussão; um deles tem a ver com como definir uma pessoa afro.
Na segunda-feira (21), quando começou a COP16 em Cali, a delegação colombiana recebeu más notícias no meio da primeira sessão plenária de um dos grupos de trabalho. Durante a primeira intervenção da delegação da República Democrática do Congo (RDC), que falou em nome do bloco de países africanos, o delegado disse que não apoiaria um dos principais pontos levantados pela Colômbia.
Referiam-se a uma proposta trazida pelas delegações da Colômbia e do Brasil, que busca reconhecer o papel dos povos afrodescendentes na proteção da biodiversidade. De maneira mais específica, esses países propõem a mudança da redação do Artigo 8 (j) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que hoje reconhece a necessidade da participação de “povos indígenas e comunidades locais” na conservação da biodiversidade, para “povos indígenas, povos afrodescendentes e comunidades locais”.
Horas depois, após uma conversa entre Francia Márquez, vice-presidenta da Colômbia, e membros da delegação da RDC, foi acordado que eles poderiam discutir se a proposta entraria formalmente nas questões prioritárias da agenda.
O debate foi marcado por dois temas principais. O primeiro tem a ver com o que significa ser afrodescendente para os países da América Latina e a discordância dos países africanos; e o segundo é o debate sobre modificar ou não o artigo 8 (j), pois algumas delegações dizem que o termo “comunidades locais” já inclui pessoas afrodescendentes.
O plano de fundo, a linguagem
Tanto as delegações da Colômbia e do Brasil quanto as dos países africanos parecem concordar que, como consequência do tráfico de escravos na colonização, os afrodescendentes vivem no mundo. De acordo com o atlas afrodescendente, publicação recente que mapeia a presença dessa população na América Latina e no Caribe, estima-se que ela seja composta por mais de 150 milhões de pessoas.
Outra constatação dessa pesquisa, e compartilhada pelo vice-presidenta da Colômbia no Fórum Internacional Afro, que aconteceu nesta quinta-feira na COP16, é que a população afro que vive em comunidades geralmente é encontrada em locais conhecidos como hotspots de biodiversidade. Isso significa que são locais com alta diversidade biológica e que poderiam ser fundamentais para a conservação da natureza, mas ao mesmo tempo são os mais ameaçados pela atividade humana, pelas mudanças climáticas e pela perda de biodiversidade.
Para Márquez, a presença de povos afrodescendentes em alguns lugares, como o Chocó, tem sido fundamental para a conservação da biodiversidade. “Mas isso não tem sido suficiente, porque muitos de nós cumprimos a tarefa de cuidar da vida natural em um contexto bastante hostil”, aponta. Assim, denuncia que essas áreas também coincidem com pontos afetados pelo conflito armado, com ausência do Estado e alto índice de necessidades básicas não atendidas.
Por essas razões, Colômbia e Brasil acreditam que é importante que os povos afrodescendentes sejam visíveis e possam participar da CDB, sendo nomeados no Artigo 8 (j). No entanto, os países africanos têm uma discordância fundamental nessa discussão. “Esses povos não têm definição. O que significa ser afrodescendente?”, questionou Daniel Mukubi, delegado da RDC durante seu discurso no plenário do grupo de trabalho 1.
O jornal O Espectador tentou entrevistar Mukubi para entender melhor sua pergunta, mas ele se recusou a falar conosco. Apesar disso, um membro da delegação nigeriana, que pediu que sua identidade fosse mantida em sigilo, concordou em nos explicar. A identidade dos povos na África está ligada, principalmente, aos povos tribais a que pertencem, e não a uma identidade conjunta como continente. “[Os povos afrodescendentes] não podem traçar suas raízes até nossos povos, muitas vezes não sabem a que país pertenciam seus antepassados”, disse. Para ele, por não terem certeza sobre o povo a que pertencem, o reconhecimento de sua ascendência africana “não faz sentido”.
Gloria Erazo, consultora da Ambiente y Sociedad, uma ONG que acompanhou as negociações sobre Artigo 8 (j), disse que o desacordo se baseia em “diferentes maneiras de ver o mundo e entender a identidade”. Em meio ao debate, que foi um dos pontos discutidos no Fórum Internacional Afrodescendente, Márquez disse que “é doloroso” que seu reconhecimento nesse artigo seja reduzido a “uma questão conceitual, porque não somos um conceito, somos uma existência real”. Mas os países africanos não acham que é apenas um conceito.
Uma emenda à CDB?
O líder da delegação colombiana nesta discussão é Pedro León Cortes Ruiz, o embaixador colombiano no Quênia. Durante as negociações que começaram na terça-feira para discutir o assunto, “pedimos para conversar com o grupo africano”, disse. O objetivo era explicar para os representantes desses países dois pontos da proposta. O primeiro é por que, aos seus olhos, os povos afrodescendentes não fazem parte das comunidades locais.
De acordo com o Artigo 8 (j), as comunidades locais são aquelas que têm “estilos de vida tradicionais que são relevantes para a conservação da natureza”. Os povos afrodescendentes, como explicamos nesta nota, consideram que devem ser nomeados de forma independente, uma vez que também têm uma relação ancestral com seu território.
Reconhecer isso, colocando “povos afrodescendentes” no texto, implicaria criar uma categoria que hoje não existe na CDB e que lhes daria representação como observadores e em algumas mesas de negociação. Mas, como apontou Mukubi no plenário, uma coisa é o reconhecimento dessa população pelos países, mas “isso não deve ser incluído no artigo 8 (j), isso é outra questão”.
Ruiz assegurou que o objetivo da Colômbia e do Brasil não é “fazer uma emenda” à CDB, pois reconhece que isso é algo que pode levar muitos anos. No entanto, a vice-presidenta da Colômbia afirmou no fórum que seu objetivo é que eles sejam reconhecidos como “povos afrodescendentes” e não como “população afrodescendente”, uma vez que esta última implica que sua identidade coletiva não seja reconhecida.
Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente e presidenta da COP16, confirmou ao jornal El Espectador que chegaram a um primeiro acordo. Durante a madrugada de sexta-feira, última reunião que realizaram naquele grupo de trabalho, foi definido um texto que entraria formalmente nas discussões do Artigo 8 (j). Até o final desta edição, o texto da proposta não ainda não tinha sido divulgado, mas uma fonte próxima às negociações disse que a Colômbia e o Brasil haviam precisado abrir mão de seu objetivo inicial para tentar uma nova proposta. Agora, ao invés de “povos”, seriam reconhecidos como “população”.
Durante o fórum, Márquez já havia antecipado que esse poderia ser um dos resultados das negociações e, embora reconheça que é um passo importante, “a luta não termina aqui”.
Este artigo foi publicado graças a uma parceria entre El Espectador e InfoAmazonia, com o apoio de Amazon Conservation Team.