Milhares de empresas têm acesso a bancos de dados com informações genéticas de milhões de plantas e animais. Com esses dados, desenvolvem novos produtos que geram lucros bilionários, dos quais as populações indígenas e comunidades locais raramente se beneficiam. Na segunda-feira (21), durante a COP16, iniciou-se uma discussão para buscar uma distribuição mais justa desses benefícios.
Há alguns anos, a pesquisadora norte-americana Alexandra Reep visitou comunidades indígenas e locais na Colômbia como parte de um estudo da Aliança Internacional Bioversity-CIAT. Em uma comunidade no Pacífico, Reep percebeu que os moradores escondiam as plantas usadas para fins medicinais. Ao perguntar o motivo, eles explicaram que alguns “ecoturistas” que visitavam a região haviam sido presos com mochilas cheias de tartarugas vivas e partes de plantas endêmicas. Embora o roubo da fauna e flora os preocupasse, o que mais os inquietava era o verdadeiro objetivo dos ladrões: extrair o DNA das espécies e depois inserir essas informações em bancos de dados públicos.
Por que esses “ecoturistas” estão interessados no DNA e nas informações genéticas de plantas e animais? A resposta vem da cientista espanhola Isabel López Noriega, integrante do CGIAR, um consórcio global de centros de pesquisa agrícola. Segundo López, as sequências de DNA, que funcionam como o “manual de instruções” de um ser vivo, são únicas para cada organismo. Elas permitem, por exemplo, compreender por que uma determinada cultura agrícola é mais resistente à seca do que outras. Essas informações têm um enorme valor econômico, pois possibilitam o desenvolvimento de produtos como medicamentos, vacinas e novas variedades de plantas e animais, que são extremamente valiosos no mercado.
Não são apenas as indústrias que buscam acesso a essas informações. Centros de pesquisa, como o de López, também se interessam pelas sequências genéticas digitais (DSI, na sigla em inglês) de plantas e animais, uma parte da biodiversidade frequentemente ignorada, mas com foco na cooperação científica. O problema, como reconhece a cientista, é que os recursos gerados a partir dessas informações — que geralmente estão disponíveis em bancos de dados públicos — acabam excluindo atores fundamentais: os povos indígenas e as comunidades locais (como as que Reep visitou), que preservam os ecossistemas e sua biodiversidade há séculos.
Como garantir que essas comunidades também obtenham benefícios do uso das sequências genéticas digitais? Essa é uma das questões que a COP16 da biodiversidade, atualmente em andamento em Cali, na Colômbia, busca responder. A expectativa é que os 196 países que integram o Convênio sobre Diversidade Biológica (CDB) cheguem a um acordo sobre as condições de um mecanismo multilateral que assegure uma repartição justa dos benefícios gerados pelos DSI. Na terça-feira (22), as discussões sobre o tema começaram na Zona Azul, onde se reúnem os negociadores das delegações.
Hoje, os genes estão em bancos de dados
Grande parte dos medicamentos consumidos atualmente tem origem, total ou parcialmente, nas plantas. Um exemplo clássico é a morfina, um potente analgésico derivado da papoula, planta cultivada há mais de 7.000 anos. No início do século 19, o farmacêutico alemão Friedrich Sertürner isolou o alcaloide principal do ópio, a morfina, que recebeu esse nome em homenagem a Morfeu, o deus grego dos sonhos, devido às suas propriedades sedativas. Para conseguir esse avanço, ele precisou acessar a planta da papoula.
A questão, segundo Jimena Nieto, ex-negociadora da Colômbia em cúpulas de mudança climática e biodiversidade, é que, ao contrário de Sertürner, os cientistas de hoje não precisam “ir até a selva” para acessar os organismos. As informações genéticas — os DSI — estão disponíveis em bancos de dados abertos.
Há mais de uma década, o Protocolo de Nagoya, estabelecido no âmbito do CDB, criou medidas para regular o acesso aos recursos genéticos e a repartição justa dos benefícios gerados. No entanto, como explicam López e Nieto, as sequências genéticas digitais foram excluídas do Protocolo, que entrou em vigor em 2014, tornando-o rapidamente obsoleto.
Fora do escopo do Protocolo de Nagoya, o acesso a esses recursos digitalizados permitiu que indústrias de alimentos, cosméticos e outras gerassem novos produtos com lucros milionários, sem redistribuir esses benefícios. Da mesma forma, centros de pesquisa, como o de López, utilizam diariamente essas sequências para melhorar, entre outras coisas, a qualidade de cultivos essenciais à segurança alimentar global.
Na COP15 de biodiversidade, realizada há dois anos em Montreal, os países não apenas concordaram com 23 metas para conter e reverter a perda de biodiversidade até 2030, mas também estabeleceram normas sobre a repartição dos benefícios obtidos a partir das DSI. Embora isso represente um avanço histórico, como reconhecem cientistas como López, da Aliança, e María Hersilia Bonilla, chefe do Departamento de Propriedade Intelectual da Agrosavia, ainda há vários desafios para que esse mecanismo se concretize.
O tema gera um nível de debate tão intenso, aponta a cientista espanhola, que nem mesmo há um consenso dentro da CDB sobre o que significa, de forma precisa, a referência às sequências genéticas digitais. Mesmo assim, os delegados dos 196 países presentes em Cali terão que tentar chegar a um acordo sobre as condições que desejam estabelecer. Estão em discussão quatro opções, explica Bonilla, referindo-se ao conjunto de recomendações apresentadas por um grupo de trabalho especial em que atuou durante dois anos.
As expectativas na COP16
A dez dias do término das negociações, parece que os negociadores concordam em um ponto, segundo López e Bonilla: deve-se buscar o estabelecimento de um mecanismo multilateral, ao invés de um bilateral. Para entender melhor essa questão, a pesquisadora da Aliança explica que “muitas vezes, entender a origem da informação genética é difícil, não apenas porque não há registros de onde se obteve o recurso original, mas, de forma mais fundamental, a nível genético, as espécies são muito semelhantes. É complicado afirmar que ‘este gene vem da Colômbia’ ou ‘este gene vem da Espanha’”.
A nível genético, continua López, as espécies são muito parecidas: “embora seja possível identificar um gene de uma espécie coletada na Colômbia, esse mesmo gene e essa mesma característica podem ser encontrados em uma espécie completamente diferente na Espanha”. Portanto, ela ressalta que não faz muito sentido discutir a soberania nacional sobre os genes.
Na visão dela, os países já entenderam esse ponto e abandonaram a reivindicação de benefícios a nível bilateral, reconhecendo que um sistema multilateral é mais adequado. Contudo, ainda restam várias perguntas a serem resolvidas: quem financiará esse sistema multilateral? Em que momento do uso das DSI o mecanismo será acionado? Ou seja, quem paga deve fazê-lo apenas ao acessar uma base de dados ou somente quando o uso dessa informação gerar benefícios econômicos?
As respostas a essas questões não só afetarão a produção de milhares de produtos, mas também poderão ajudar a fechar a lacuna de financiamento para questões de biodiversidade, gerando benefícios para os povos indígenas e as comunidades locais, que são os guardiões da biodiversidade reconhecidos pelo Marco Mundial de Biodiversidade de Kunming-Montreal.
Segundo estimativas do CDB, os rendimentos das indústrias que utilizam DSI podem chegar a aproximadamente 1,56 bilhão de dólares em 2024 e 2,3 bilhões de dólares até 2030. Para contextualizar, isso representa cerca de 10% dos recursos que precisam ser mobilizados anualmente para cumprir as metas estabelecidas há dois anos. Contudo, esse valor é meramente especulativo, pois pode variar drasticamente dependendo das condições que o mecanismo multilateral venha a ter.
Além da repartição dos benefícios econômicos, López e Bonilla acreditam que há um ponto que está sendo negligenciado e que, na verdade, pode ser ainda mais importante do que o acesso aos recursos financeiros. “Mais relevante ainda seria resolver quem tem a obrigação de compartilhar benefícios não monetários”, opina a cientista espanhola.
Ela se refere aos centros de pesquisa (como os que fazem parte do CGIAR), que possuem grandes capacidades tecnológicas e de análise de dados, mas não estão compartilhando essas informações. “Não se trata apenas de compartilhar os benefícios decorrentes da comercialização de um novo produto, mas também todos os recursos que estão sendo desenvolvidos e aprimorados para chegar a esses produtos”, aponta.
Em outras palavras, espera-se que das discussões que estão sendo realizadas, os países consigam estabelecer mecanismos que lhes permitam criar alianças entre seus centros de pesquisa para, por exemplo, melhorar alguns de seus cultivos. Isso, conclui López, poderia gerar impactos mais significativos nos países em desenvolvimento do que a própria repartição dos recursos econômicos.
Esta reportagem é publicada graças a uma parceria entre El Espectador e InfoAmazonia, com o apoio do Amazon Conservation Team.