O governador do estado, Clécio Luís, defensor do projeto, reuniu-se com a cúpula do órgão agrário em Brasília dias antes da nova liberação do manejo no Projeto de Assentamento Agroextrativista Maracá. A operação havia sido suspensa em junho deste ano após denúncias de irregularidades na contratação de empresas que extraem madeira no local.
A superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Amapá reverteu sua própria decisão e liberou a extração de madeira no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Maracá, no município de Mazagão. Em 5 de junho, o órgão agrário havia determinado a paralisação das atividades madeireiras por irregularidades no processo de contratação das empresas para explorar uma área de 172 mil hectares dentro do assentamento. A suspensão atendeu a um parecer da Procuradoria Federal Especializada (PFE) e a recomendações técnicas do núcleo de gestão ambiental da autarquia. No entanto, menos de um mês depois, em 1º de julho, a decisão foi revogada após o governador do Amapá se reunir com a cúpula do Incra em Brasília.
O Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) no PAE Maracá foi iniciado em setembro do ano passado. O projeto já tinha pareceres contrários quando foi autorizado pelo então superintendente do órgão no Amapá, Fábio Muniz, indicado político do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) para o cargo. Após a saída de Muniz, a nova chefia do órgão instaurou uma comissão para avaliar a aprovação do projeto, que apontou que as irregularidades indicadas no parecer anterior persistiam.
Os pareceres técnicos do Incra indicavam diversas falhas na implantação do empreendimento, incluindo a falta de ampla discussão com a comunidade, riscos socioambientais devido à intensa exploração de madeira prevista e um viés empresarial que contraria o caráter coletivo do assentamento federal. O caso está sob investigação do Ministério Público Federal (MPF), que realizará uma audiência pública hoje, quinta-feira (8), para ouvir as partes envolvidas.
Em março deste ano, a InfoAmazonia revelou as inconsistências no projeto que foi concedido à Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Maracá (ATEXMA) mesmo com orientações contrárias das áreas técnicas do Incra e da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amapá. Na época, o Alcolumbre disse ter atuado diretamente na liberação do projeto. “Com a articulação do nosso mandato conseguimos anuência do Incra para que isso se tornasse realidade”, escreveu o parlamentar em suas redes sociais.
Agora, segundo fontes ouvidas pela reportagem, quem entrou em cena para defender a continuidade do empreendimento sem as alterações pedidas pelos técnicos foi o governador do Amapá, Clécio Luís (Solidariedade). Em 18 de junho, ele se reuniu com o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, e com o presidente do Incra, Cesar Aldrighi, em Brasília, para tratar da transferência de áreas públicas federais no Amapá para a gestão estadual.
Três dias depois, em 21 junho, o governador participou do Festival da Castanha, na vila do Maracá, e disse que existe uma “perseguição em cima da associação, do projeto de manejo e da comunidade Maracá”. Ele estava ao lado do empresário Welinton Rogério Conci, que representa as empresas EcoForte e TW Forest, contratadas para a realização do projeto, e do presidente da ATEXMA, Rogério Chucre. No mesmo encontro, Clécio elogiou o trabalho das madeireiras ao cumprimentar o empresário: “É um sucesso aqui da região do Maracá. Nós estamos juntos”, afirmou. Nesta data, o projeto de manejo ainda estava suspenso.
Sobre um eventual pedido do governador Clécio para interferência do órgão central no processo, a assessoria do Incra em Brasília disse à InfoAmazonia que “não houve esse pedido”.
A reportagem também questionou o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) sobre a reunião, mas não obteve uma resposta até esta publicação.
Atropelo do governo do Amapá
Em 25 de junho, quatro dias depois do evento em Mazagão, o governo do estado, representado pela Secretaria do Meio Ambiente (Sema) do Amapá, passou por cima do Incra e se posicionou favoravelmente ao projeto. Em ofício ao órgão agrário e à ATEXMA, a secretaria do estado afirmou que “não foram encontradas irregularidades que justifiquem a suspensão” e afirmou que analisou nova documentação enviada pela associação do Maracá, conforme solicitado pelo Incra.
No entanto, em 1º de julho, antes da equipe técnica do Incra analisar esses documentos, a superintendência do órgão agrário revogou a suspensão do projeto. No dia seguinte, 2 de julho, o núcleo de gestão ambiental do órgão concluiu que as irregularidades continuam e que o projeto “não atende aos princípios da sustentabilidade econômica e social”. Mesmo assim, a autorização para continuidade do projeto foi mantida.
LINHA DO TEMPO DAS DECISÕES DO PAE MARACÁ
2021
Janeiro: ATEXMA assina contratos de exclusividade com Eco Fort e Norte Serviços para explorar a área por 14 anos.
Dezembro: Projeto é apresentado à comunidade do Maracá.
2022
Proposta tramita no Incra e recebe dois pareceres contrários da área técnica.
2023
Março: O então superintendente Fábio Diniz, nomeado na gestão anterior do ex-presidente Bolsonaro, dá anuência para o projeto mesmo com pareceres contrários.
1º de junho: Proposta é analisada pela Sema-AP e também recebe parecer contrário. Técnicos ambientais apresentaram riscos socioambientais para meio ambiente e comunidade.
18 de junho: Governo do Amapá forma nova equipe para analisar o projeto.
5 de setembro: O governo do Amapá entrega autorização de corte e licença ambiental do projeto para ATEXMA. No mesmo dia, o senador Davi Alcolumbre publicou nas redes que seu gabinete “articulou” a anuência do Incra “para que isso se tornasse realidade”.
2024
16 de março: Após denúncias de moradores, a InfoAmazonia publica reportagem revelando as inconsistências no processo de implantação do projeto de manejo no Maracá.
20 de março: Novo superintendente do Incra no Amapá, Gersuliano da Silva Pinto, informa em entrevista à InfoAmazonia a criação de uma nova comissão para analisar a aprovação do projeto.
4 de junho: O Incra do Amapá decide suspender o Plano de Manejo Florestal Sustentável do Maracá por irregularidades no processo que culminou na contratação de duas empresas.
18 de junho: Governador Clécio Luís viaja à Brasília, onde se reúne com a cúpula do Incra.
21 de junho: Governador participa de evento ao lado do empresário Welinton Rogério Conci, que explora madeira no projeto, e falou que existe “perseguição em cima da associação, do projeto de manejo e da comunidade Maracá”.
25 de junho: A Sema do Amapá enviou ofício ao Incra afirmando ter feito nova análise do projeto e alegou “ausência de irregularidades” e falta de motivos para a paralisação das atividades.
1º de julho: Superintendência do Incra volta atrás e retira suspensão do projeto de manejo.
2 de julho: Despacho com análise da área técnica do Incra sobre nova documentação enviada pela ATEXMA aponta que as irregularidades continuam.
Por meio de assessoria de imprensa, o Incra informou que a ATEXMA encaminhou um ofício em resposta às pendências apontadas pela superintendência e que uma nova comissão externa será formada para analisar as respostas da associação. “Até que sejam analisadas as informações disponibilizadas pela empresa [ATEXMA] fica revogada a suspensão”, disse o órgão, em nota.
Ainda segundo o Incra, a nova comissão “será composta por técnicos externos à superintendência. O colegiado pode referendar ou proferir manifestações diversas às já manifestadas” (leia a íntegra da nota aqui). Procurado pela reportagem, o governo do Amapá não se manifestou.
Moradores querem espaço em audiência pública
Atualmente, cerca de 2 mil famílias formadas por extrativistas e pequenos agricultores vivem na área de uso coletivo do assentamento Maracá. Os recursos arrecadados com a venda da madeira são revertidos à comunidade por meio do Bolsa Floresta, que realiza o pagamento mensal de aproximadamente R$ 1 mil para parte das famílias assentadas.
Os critérios para distribuição dos valores no Bolsa Floresta não foram divulgados e, segundo o governo do Estado, são estabelecidos pela ATEXMA, associação que tem o direito de representar os moradores.
No entanto, parte dos moradores questionam o processo de implantação do projeto e reclamam da falta de transparência por parte da direção da ATEXMA, que não ouviu as comunidades de forma adequada e estaria negando aos próprios assentados informações sobre a execução dos contratos. Eles também afirmam que o Bolsa Floresta tem funcionado como moeda de troca para obtenção de assinaturas para anuência do projeto.
“As pessoas que aceitaram receber o Bolsa Floresta tiveram que ir no cartório para afirmar que aceitam o projeto. Quem questiona não recebe a bolsa. Os nossos direitos aqui são iguais, mas estão sendo desrespeitados”, afirma Crispim de Souza, 58 anos, presidente da Associação dos Castanheiros e Agricultores do Maracá. Cerca de 980 famílias do assentamento que não teriam assinado a anuência para o projeto não recebem o benefício.
Logo após ser notificado da suspensão do projeto de manejo no Maracá, o presidente da ATEXMA, Rogério Chucre Flexa, convocou uma assembleia extraordinária, realizada em 9 de junho, para uma nova “aprovação da proposta de corte de espécies com uso madeireiro”. O edital de convocação não cita a suspensão do projeto, mas, em áudios atribuídos a Chucre e enviados a moradores, o presidente da ATEXMA teria afirmado “que quem não for na assembleia está passível de perder o recurso do Bolsa Floresta”.
No encontro, o presidente cobrou a adesão dos presentes ao projeto, afirmando que se não fosse tomada uma decisão “não terá mais bolsa florestal”. Moradores ouvidos pela reportagem afirmaram que esta nova assembleia, chamada às pressas, não discutiu o projeto e o contrato de manejo e não contemplou todas as famílias do assentamento.
Em grupos de WhatsApp do assentamento, Chucre também pediu que os moradores gravassem mensagens contra a suspensão do projeto. “Importante que fale caso o Incra não resolva vamos invadir o Incra e fechar a BR”, orientou. A InfoAmazonia tenta contato com Chucre desde março deste ano. Ele se recusa a conversar com a reportagem sobre o assunto.
“Não existe transparência sobre a venda da madeira, ninguém sabe quanto o projeto arrecada. Nós queríamos ao menos o direito de discutir de forma clara com a comunidade esse projeto e ter acesso ao que está sendo feito. Eu sou filho do Maracá, meu pai e meu avô nasceram aqui, mas não tivemos direito de falar”, disse o professor e vendedor de castanha Ezequias Rosa Vieira, que denunciou as irregularidades ao Ministério Público Federal (MPF).
Os moradores afirmam que têm a expectativa de que a audiência pública desta quinta-feira dê espaço para as famílias que não foram ouvidas ao longo do processo de contratação das empresas se manifestarem.