Especialistas e representantes de comunidades conversaram com a InfoAmazonia sobre os principais empecilhos para ter acesso aos benefícios do INSS, como aposentadoria e salário-maternidade. Indígenas sofrem com a falta de infraestrutura nas cidades, sendo obrigados a abandonar suas aldeias.
As populações indígenas da Amazônia enfrentam dificuldades de locomoção, estadia e comunicação para acessar os serviços básicos de assistência previdenciária do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). São longas as distâncias entre as comunidades indígenas e as agências do INSS, com processos administrativos que podem levar dias para serem concluídos e falta de intérpretes para as línguas indígenas.
Apesar de suas particularidades e modos de vida completamente diferentes, os indígenas não são enquadrados em uma categoria específica dentro do INSS. Eles estão incluídos na mesma categoria dos trabalhadores rurais, denominada “segurado especial”, em que estão os brasileiros que desenvolvem atividades agropecuárias, como pescadores, extrativistas, seringueiros e assentados.
Para a aposentadoria, por exemplo, todos precisam ter sete documentos em mãos para garantir o benefício: CPF, certidão de nascimento, título de eleitor, declaração de vida e residência, certidão de exercício de atividade rural, cadastro nacional de informações sociais e certidão de nascimento dos filhos. Os indígenas também têm direito a receber salário-maternidade rural e pensão por morte rural pelo INSS.
A comprovação da atividade rural, para os indígenas, é feita por meio de documento assinado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Para isso, aqueles que vivem fora das zonas urbanas precisam fazer longas viagens para chegar aos órgãos. A advogada Renata Vieira, do Instituto Socioambiental (ISA), explica que os empecilhos para o acesso aos benefícios foram expostos ao INSS e ao Ministério de Desenvolvimento Social (MDS).
“O INSS, por exemplo, coloca bastante dificuldade na questão orçamentária para fazer as adequações que são necessárias. A população indígena e a população de recente contato é uma parcela pequena quando comparada ao quantitativo de brasileiros. São mais de 200 milhões de brasileiros e [quando] a gente vê um povo [indígena], são 300 famílias cadastradas. Eles olham para esse número e [consideram que] não é suficientemente convincente”, diz a advogada.
Adaptação difícil
Vieira explica que o acompanhamento dos processos é feito online ou presencialmente nas agências do INSS. Essas alternativas são de difícil adaptação para uma parte dos indígenas, já que muitos não têm acesso à internet ou a dispositivos eletrônicos. Além disso, as viagens à cidade para receber os benefícios se tornam inviáveis financeiramente.
Como suporte, o INSS tem o “PrevBarco”, embarcações que navegam pelos rios passando de cidade em cidade. No Amazonas, onde existem 490 mil indígenas, há apenas três barcos. Eles têm um calendário fixo para o ano e cada local recebe o barco por um mês. De acordo com o INSS, na Amazônia, outros dois barcos estão em reforma no Pará e um está em fase de licitação para atuar em Rondônia. Algumas comunidades, no entanto, ficam distantes demais da cidade e o PrevBarco não consegue passar nos afluentes mais estreitos.
“Sequer sabemos hoje quantos indígenas estão cadastrados recebendo aposentadoria ou salário maternidade, uma coisa tão básica. Então, se a gente for pensar em aprimoramento das políticas públicas, sem esse quantitativo, a gente não consegue pensar. A gente está fazendo uma política pública para sempre 1 mil? Para 100 mil? Para 1 milhão? Então, como é que a gente vai pensar em dimensionar e destacar o orçamento se a gente não sabe esse público?”, questiona Renata Vieira.
Há ainda outra barreira: a falta de intérpretes para atendimento nas agências. Em São Gabriel da Cachoeira, onde 96% da população é indígena, existem quatro línguas oficiais: português, nheengatu, tukano e baniwa. São 23 povos diferentes, com 18 línguas identificadas.
“A ideia é que a gente pudesse pensar políticas de assistência social regionalizadas. E aí, vai variando, porque o que funciona para um povo, não necessariamente é o que vai funcionar para outro. Porque eles estão num contexto de línguas diferentes, de região diferente, de costume e cultura diferente. Então, de fato, é muito desafiador para o órgão, mas esse é o desafio para qualquer política pública quando a gente fala de povos indígenas”, afirma a advogada do ISA.
Acampamentos improvisados
O jovem indígena Álvaro Hupda, do povo Hupda, de São Gabriel da Cachoeira, domina três línguas — hupda, tikuna e português — e, por isso, ajuda os parentes que chegam à cidade para buscar atendimento. Ele acompanha os familiares até os órgãos, faz traduções e imprime documentos.
“Quando meus parentes chegam, eu recebo eles aqui. Eles me dizem o que querem na língua [deles] e eu transformo na língua portuguesa. É assim que eu faço na defensoria, no cartório, na Funai, nos Correios. Agora, está bem difícil, ninguém tá conseguindo documentação, meus parentes estão caindo [morrendo]”, conta Álvaro.
Segundo diagnóstico feito pelo ISA, os deslocamentos das comunidades indígenas da TI Alto Rio Negro para o município de São Gabriel da Cachoeira se intensificaram. Para chegar à cidade, os indígenas gastam quase todos os recursos que estão indo em busca de receber. Com longas distâncias, a viagem pode levar mais de duas semanas. Em alguns casos, eles pagam mais de 100 litros de gasolina, que também usam como moeda de troca durante as viagens, oferecendo combustível para receber alimentos e água.
Quando chegam, montam acampamentos improvisados, armam lonas azuis para servir de teto, dormem no chão e em redes às margens dos rios. O acampamento é chamado de “parauari”, “beiradões” e “cidade azul”. “Eles vão descendo [o rio] e vão se encostando no parauari, aí fazem barracas e vão esperando receber do INSS, do Bolsa Família. A dificuldade maior é ter combustível e alimentação, às vezes eles se perdem aqui, ficam três meses, têm fome, tomam bebida”, conta Álvaro.
Para Álvaro, uma alternativa seria que o próprio município ou a Funai criassem locais de acolhimento para receber os indígenas que estão buscando seus direitos básicos. “Nós somos gente, somos seres humanos. Só muda a língua, mas somos iguais. Não tem onde ficar lá, como vamos ficar embaixo do sol? Tem doença, lixo, muita garrafa quebrada, vidro. Os parentes não estão conseguindo voltar [para as comunidades] e ficam tristes, estão morrendo. Queremos pensar num alojamento para os parentes”, disse.
Impactos no modo de vida
O antropólogo Michel Barbará pesquisa as dificuldades que os povos Hupda e Yuhuped, de contato recente, enfrentam para acessar a assistência social. Ele explica que as viagens constantes não fazem parte do modo de vida tradicional deles. “Eles são caçadores e coletores e foram agrupados em comunidades maiores. Com o passar do tempo, houve uma mudança mais significativa com a necessidade de viagens recorrentes a São Gabriel da Cachoeira. Isso levou à necessidade de fazer compras nos comércios, ao uso de rabetas, ao uso de álcool, o que acaba impactando o ritmo de vida desses povos”, explica.
Como fator cultural, Barbará destaca que a contratação de intérpretes dentro dos órgãos públicos é uma das medidas mais efetivas no auxílio dos atendimentos. Ele próprio já atuou ajudando os indígenas com traduções de documentos e orientações. “Isso acaba tendo um efeito positivo na melhoria desse atendimento, na compreensão das demandas. Essa é uma das questões que precisam ser trabalhadas. O PrevBarco também é uma medida eficiente, pois a digitalização não é uma realidade”, diz.
O antropólogo avalia que, apesar dos avanços nos debates sobre as questões indígenas nos últimos anos, as políticas públicas ainda não avançaram na diferenciação dos contextos nas diversas regiões do país. “O Brasil é um país com uma grande diversidade indígena, o que acaba resultando na recorrência desses problemas. Eu acho que essas questões estão recebendo uma atenção maior por parte do poder público, mas os órgãos têm dificuldade em lidar com esta diversidade de contextos geográficos, culturais e sociais, com povos que têm uma relação menos intensa com a sociedade nacional e outros que já estão mais estabelecidos em centros urbanos”.
A reportagem procurou a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, Funai e Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social para questionar sobre as ações de apoio e acolhimento das populações que buscam atendimento na Amazônia, mas não obteve resposta.
Impacto ambiental e de saúde
Barbará aponta, ainda, outro problema: a falta de adequação da cidade coloca os acampamentos em uma vulnerabilidade ainda maior, já que não há coleta de lixo ou qualquer tipo de acesso à água potável. Os locais acabam tomados pelo lixo.
“A proliferação de lixo está relacionada à falta de estruturas adequadas para acolher essas populações na cidade. Como eles ficam em locais mais afastados e sujeitos à alimentação de produtos industrializados, muitas embalagens e garrafas não têm um descarte adequado. Isso ocorre por toda a cidade, onde a coleta de lixo é muito precária e o abastecimento de água está presente em pouquíssimas casas”, diz.
O antropólogo destaca que esse lixo acumulado também provoca água parada e a presença de mosquitos transmissores de doenças como a malária e a dengue. A Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) monitora os registros. Os dados do órgão detalham os novos casos positivos de malária por localidade de provável infecção. Em 2023, foram registrados 835 infectados apenas no acampamento do povo Hupda. Os casos em áreas indígenas somaram 5 mil. No município, foram 8,4 mil.
“Essa quantidade de lixo acaba sendo um vetor de proliferação de malária, entre outras verminoses e parasitoses. É importante a gente salientar essa questão do lixo para não tomar essas populações como agentes poluidores, porque essa questão, ao meu ver, está relacionada com a vida na cidade, o consumo de alimentos industrializados, a falta de coleta adequada, a concentração dessas pessoas em locais mais afastados, a falta de saneamento básico”, explica o antropólogo.
Com a população majoritariamente indígena, os casos acabam se espalhando aos outros povos que vivem na cidade. Neste ano, São Gabriel da Cachoeira já desponta como o município com o maior número de novas infecções no estado do Amazonas. São 3,5 mil casos até maio. Em 2023, o município também foi o local com maior número de registros, com 8,4 mil.
“As pessoas não indígenas que vivem lá são geralmente do serviço público, ONGs e exército. Então, a maioria dos habitantes são indígenas das diferentes etnias. Há uma movimentação maior no comércio da cidade [quando os acampamentos são feitos] e não tem estruturas de acolhimento suficientes para receber essas populações”.