A InfoAmazonia e o Brasil de Fato visitaram o território para entender qual é a posição dos indígenas em relação à construção da Usina Hidrelétrica Tabajara, um projeto de um reservatório de 97 km² em Machadinho d’Oeste, em Rondônia, que deverá atingir 9 terras indígenas, entre elas, a Tenharim Marmelos.
Uma vez por ano, dezenas de indígenas da Terra Indígena (TI) Tenharim Marmelos, nos municípios de Humaitá e Manicoré, no Amazonas, partem de suas aldeias em uma expedição e seguem em direção à extremidade sul de seu território, onde estão as cabeceiras dos rios Branco, Preto e Marmelos.
O grupo passa até 20 dias na mata e retorna com uma quantidade de caça e pesca que supre a alimentação de todos os indígenas durante os três dias da festa Mbotawa, realizada em julho. A celebração reúne a população das onze aldeias do território, além dos convidados de outros povos do tronco Kawahiva. Ao todo, participam até 500 pessoas, que, juntas, vivenciam os rituais do povo Tenharim: os casamentos; o ritual das meninas moças, que marca a passagem das jovens indígenas para a idade adulta; e o ritual dos mortos, em que a memória daqueles que partiram é reverenciada.
“Quando a gente organiza essa festa, a gente envolve todo o território. Mulheres, crianças, jovens e anciões. É um momento em que os mais velhos repassam os conhecimentos tradicionais, a nossa cultura e tradições para os mais novos”, explica Daiane Tenharim, coordenadora da Associação do Povo Indígena Tenharim Morõgwitá (Apitem).
A expedição é feita até a parte mais preservada do território, que os indígenas chamam de “mercado”. Eles não caçam nem pescam nessa região durante o ano, justamente para que tenham ali um “estoque” a que possam recorrer em julho, o período da festividade. Habitada pelos Tenharim antes do contato com os não indígenas, é nessa área onde está localizada a antiga aldeia, Aeguera, que também dá nome a um igarapé ligado ao rio Preto.
Por ser uma área de mata virgem, por ali também circulam grupos de indígenas isolados, reconhecidos como parentes Kawahiva pelos Tenharim. Eles são identificados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como o grupo de isolados Kaidjuwa, mas ainda não têm o registro confirmado pela Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), um braço da Funai — é isso que garante efetivamente as medidas de proteção de sua área de circulação, já que a confirmação suspende todas as atividades econômicas, assim como o contato com não indígenas por meio da restrição de uso dessa área.
Também é nesta região que está prevista a construção da Usina Hidrelétrica Tabajara, um reservatório de 97 km² em Machadinho d’Oeste, em Rondônia. A obra está em discussão há 17 anos e, como revelou a InfoAmazonia e o Brasil de Fato, deverá atingir 9 terras indígenas (TIs), incluindo povos isolados. A Tenharim Marmelos é a TI mais próxima do empreendimento.
Desde os primeiros Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da UHE Tabajara já havia a previsão de que a TI Tenharim Marmelos estaria dentro da área de influência da usina. Além da população estimada em 1.134 indígenas, considerando as duas áreas demarcadas, o território tem indícios da presença de povos isolados, é considerado sagrado pelos Tenharim e está a cerca de 200 metros do reservatório.
A parte sul da TI, mais próxima da usina proposta, chamada de Piraquara pelos indígenas Tenharim, é um berçário onde os peixes se reproduzem. “Fica bem pertinho do rio Machado [também conhecido como rio Jiparaná], bem na cabeceira do rio Preto, que é onde a gente tem todo o cuidado durante o ano, e durante toda a nossa existência praticamente, porque lá eles se reproduzem”, explica Daiane Tenharim.
Essa área do território é preservada pela população indígena para a pesca e caça da festa MBotawa, mas também é o local onde estão localizadas as aldeias antigas e os cemitérios. Antes do contato com os não indígenas, os Tenharim faziam a sepultura dos entes queridos dentro de suas próprias casas.
“A gente tem uma ligação muito forte com os nossos antepassados, com quem já se foi. Só de imaginar que a gente corre o risco de tudo isso ir para o fundo, que vai inundar tudo, o nosso sentimento é de tristeza, de revolta”, conta a coordenadora da Apitem.
Os Tenharim chegaram a se reunir com a equipe da empresa contratada para fazer o EIA da UHE Tabajara, a JPG, e contribuíram com a equipe de pesquisadores na coleta de informações sobre o território. Os indígenas mostraram os locais considerados sagrados, assim como os pontos de extrativismo da castanha, do açaí e da copaíba. Daiane afirma que as informações indicadas pelos Tenharim foram ignoradas no estudo.
“A gente teve um sentimento tão ruim, de descaso, de desrespeito tão grande com o nosso povo, com a nossa ancestralidade, com os nossos antepassados, com o nosso território. Não apareceu nada, a gente viu que aquele relatório era uma farsa. Eles só mostraram o lado positivo para beneficiar a empresa e não o lado negativo de impacto que a gente vai sofrer.”
A reportagem percorreu um trecho do rio Marmelos acompanhada dos agentes ambientais Tenharim até a cachoeira Paricá, um ponto de extrativismo, caça e pesca dos indígenas. Essa cachoeira também remonta ao contato com os não indígenas. Na década de 1940, época dos regatões, um grande entreposto comercial foi instalado na altura dessa cachoeira. Por ser distante de onde estavam localizadas as aldeias naquele período, possibilitou uma relação amistosa dos indígenas com os comerciantes.
Da cachoeira Paricá, a reportagem seguiu pelo rio Marmelos no sentido Norte e chegou até o ponto onde ele se junta com as águas do rio Preto, que os indígenas utilizam no período de caça e pesca para a festa tradicional. É ali que estão localizados os castanhais dos Tenharim. Além de fazer parte da culinária, a castanha também é uma importante fonte de renda para a população do território.
“As castanhas são vendidas e beneficiam muitas famílias, assim como o peixe, que também faz parte do nosso dia a dia, da alimentação de todo mundo”, conta Daiane Tenharim.
Essas áreas do território utilizadas para a manutenção das aldeias e de sua cultura, ignoradas no EIA-Rima da UHE Tabajara, continuam sendo mapeadas pelos próprios Tenharim. Agentes ambientais indígenas responsáveis pelo monitoramento do território, em diálogo com os anciãos e com o apoio de sistemas de informação geográfica (SIG) e técnicas de geoprocessamento, passaram a registrar esses pontos em um banco de dados atualizado.
O conhecimento ancestral de referências importantes para a cultura Tenharim é passado pelos indígenas mais velhos para os mais jovens que registram, por meio de um aplicativo, as coordenadas geográficas durante as expedições de monitoramento. “Isso vai juntando as informações e facilita para outros agentes ambientais e para o nosso povo também, ao trazer essas informações em uma forma diferente e tecnológica para eles”, conta Ivanise Tenharim, agente ambiental que vive na aldeia Marmelos e que acompanhou a equipe de reportagem durante o deslocamento pelo rio.
No período em que a InfoAmazonia e o Brasil de Fato estiveram na TI Tenharim Marmelos, Ivanise estava trabalhando em um mapa que aponta as áreas importantes — plantio, pesca, coleta de castanha etc., e que trazem benefícios para os indígenas — e compartilhou coordenadas de alguns desses pontos, situados ao longo do rio, que demonstram a importância da relação que os indígenas mantêm com as águas que atravessam seu território. Os pontos de caça, coleta de castanha e roçados alimentam esse banco de dados geográficos.
Dispersão dos grupos Kagwahiva
O contato dos Tenharim com os não indígenas remonta ao ciclo da borracha na década de 1940, passa pela construção da rodovia Transamazônica (BR-230), inaugurada em 1974, e pela atividade mineradora que se seguiu à abertura da estrada. Foram processos traumáticos, marcados por extrema violência, mortes e a dispersão de alguns grupos que passaram a viver em isolamento.
Nos relatos dos Tenharim ouvidos pela reportagem, a construção da rodovia aparece como o principal impacto sobre seu território e cultura. Conhecida no idioma Tenharim como pepuku’hua, “caminho comprido”, é a construção da Transamazônica que marca a presença dos não indígenas na região habitada pelos povos Kagwahiva.
“Muitas famílias perderam a língua materna porque tiveram muito esse contato direto com o não indígena, trabalharam na obra. E aí, acabaram esquecendo de como falam nossas coisas, o nosso jeito de ser. Mudou muita coisa depois que a Transamazônica passou por aqui”, conta Daiane Tenharim.
A antropóloga Karen Shiratori aponta esse processo como “uma espécie de fim do mundo” para os grupos Kagwahiva. “O fim de um mundo do modo como ele existia até a abertura da Transamazônica, em que esses laços são rompidos permanentemente. Quando tem a possibilidade de ter trechos preservados, refúgios em que as pessoas podem se afastar, recusar esse contato, é a estratégia de resistência de muitos povos que preferem o isolamento, a ruptura dessas relações sociais, de parentesco, rituais e ecológicas com aquele território e se afastam”.
As doenças trazidas pelos trabalhadores da obra, cerca de 3.500 funcionários, levaram à morte massiva de indígenas. “Quando a gente vê o nosso povo naquele momento, aquela tragédia com pessoas mortas, contando vários corpos sem poder fazer alguma coisa. É muito difícil pra nós, é difícil esquecer e é difícil perdoar o Estado brasileiro”, conta Dona Margarida, uma das anciãs do grupo que conversou com a reportagem ao lado de seu marido, João Bosco, cacique da aldeia Mafuí.
Fui obrigado a fazer isso, a trabalhar como escravo. Não foi só eu, a maioria dos Tenharim foi escravizado. A empresa Paranapanema que abriu essa estrada escravizou muitos parentes a trabalho sem pagar, usou muito Tenharim.
João Bosco, cacique da aldeia Mafuí
Quando tinha cerca de 12 anos, João Bosco foi colocado para carregar comida e levar café para os trabalhadores da obra, sem receber por isso. “Fui obrigado a fazer isso, a trabalhar como escravo. Não foi só eu, a maioria dos Tenharim foi escravizado. A empresa Paranapanema que abriu essa estrada escravizou muitos parentes a trabalho sem pagar, usou muito Tenharim”, conta.
A empresa Paranapanema, contratada por governos da ditadura militar (1964-1985) a partir de 1970 para a construção do último trecho da rodovia que vai da margem do rio Marmelos até as proximidades do rio Aripuanã, abriu um garimpo para mineração de cassiterita na região da TI do Igarapé Preto, onde permaneceu até 1987.
Para os Tenharim, que vivenciaram esse processo ao longo de mais de 40 anos, a notícia da construção de uma usina hidrelétrica próxima ao limite do seu território foi motivo de apreensão.
“A terra somos nós, somos ligados a ela e ela é ligada a nós. Por isso, a gente já tem essa experiência. Quando a gente ouviu falar desse projeto do empreendimento Tabajara, é claro que vai acontecer muito pior do que aconteceu com essa estrada (Transamazônica), mais uma vez”, aponta Margarida Tenharim.
A terra somos nós, somos ligados a ela e ela é ligada a nós. Por isso, a gente já tem essa experiência. Quando a gente ouviu falar desse projeto do empreendimento Tabajara, é claro que vai acontecer muito pior do que aconteceu com essa estrada (Transamazônica), mais uma vez.
Margarida Tenharim, liderança
“Vai matar tudo que vive naquela floresta. Porco, anta, macaco, tudo vai morrer. A mata, que é natureza, pega água no nível que ela acostumou. Mas se passou daquele nível, que ela nunca viu, as árvores morrem, as frutas. Como é que os animais vivem? E nós, com nossa alimentação, que é caça e peixe?”, questiona Manoel Duca Tenharim, cacique da aldeia Bela Vista.
“Ela vai prejudicar o peixe, envenenar todos os peixes. As caças também vão sumir, muitas coisas no meio ambiente, as frutas que nós comemos, que fazem parte do nosso costume. Nossa reserva, nossa floresta que é saudável para nós, então nós temos grande medo e preocupação com o nosso território”, aponta o cacique João Bosco Tenharim.
Povo Tenharim exige consulta
Em dezembro de 2023, depois da passagem da InfoAmazonia e o Brasil de Fato pelo território, os Tenharim aprovaram o seu protocolo de consulta, para incidir sobre os empreendimentos que afetem o seu território, conforme estabelece a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem força de lei e é o único acordo global que aborda os direitos de cerca de 370 milhões de indígenas distribuídos em mais de 70 países.
Segundo a Convenção, a consulta indígena deve seguir os ritos definidos pelas próprias comunidades em seus protocolos, quando houver, e deve ser livre de interferências externas, prévia a qualquer assinatura de acordo e amplamente informada para toda comunidade do território.
“A gente se organizou internamente para traçar estratégias de como enfrentar mais esse empreendimento, para que não ocorresse tudo o que aconteceu com a abertura da Transamazônica, para que nossos parentes não fossem escravizados, para que as mulheres não fossem violentadas e para que a gente não perdesse esse jeito de ser, nossa identidade e esse modo de viver do povo Tenharim”, aponta Daiane Tenharim.
O Instituto Internacional de Estudos do Brasil (IEB) atua na elaboração de protocolos de consulta em todo o bloco de terras indígenas que a Justiça Federal determinou que sejam incluídas nos estudos da Tabajara. Marcela Menezes, da coordenação do Programa Povos Indígenas do IEB, considera que o projeto da hidrelétrica deve ser visto dentro de um contexto maior de uma série de empreendimentos, ligados principalmente à expansão agrícola, que também impactam esse conjunto de territórios Kagwahiva, como é o caso do asfaltamento da rodovia BR-319, que causa um impacto sinérgico com a Transamazônica.
Ao longo do trecho da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Humaitá (AM), já é possível observar a expansão de fazendas para a produção de commodities, como soja e arroz. “Isso acontece porque Humaitá é um anel viário, tem uma via que passa por fora da cidade e está ligada a um porto graneleiro de grande capacidade, capaz de abrigar as barcaças, isso por si só já aumentou bastante a circulação de caminhões, de transporte”, aponta Menezes.
Entre 2008 e 2023, a TI Marmelos registrou 26,95 km² de desmatamento considerando as duas porções do território demarcado, de acordo com os dados do sistema de monitoramento Prodes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Quando consideramos uma faixa de 10 km ao redor do território para avaliar os impactos externos que se aproximam do limite da TI, o desmatamento registrado nesse mesmo período foi de 467,98 km². Com o desmatamento ao redor do território demarcado, as atividades de pesca e caça ficam restritas a essas áreas mais preservadas, aponta Daiane Tenharim. “A gente já sente essa escassez de alimento, de peixe, de caça. E a gente fica muito preocupado, porque é um impacto cultural que, quando acontece, a gente não consegue recuperar”.
Ivaneide Bandeira Cardoso, conhecida como Neidinha Suruí e fundadora da Associação Kanindé de Proteção Etnoambiental, com sede em Porto Velho, aponta que a construção da Usina Hidrelétrica Tabajara será mais uma fonte de pressão para o avanço do desmatamento na Amacro, região que envolve os estados do Amazonas, Acre e Rondônia.
“Você vê o aumento da grilagem e do desmatamento nessas regiões. Você já tem uma pressão grande com o projeto de asfaltamento da BR-319, vai acontecer o que aconteceu na BR-364, a abertura de uma espinha de peixe [ramais abertos ao longo da rodovia], que levou um avanço do desmatamento muito grande para a região. A mesma coisa está acontecendo no sul do Amazonas, onde tem a Transamazônica, BR-319, e o projeto da Tabajara”.
O Grupo de Pesquisa em Geografia e Ordenamento do Território na Amazônia (GOT-Amazônia) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) realizou estudos sobre os impactos da UHE Tabajara a pedido do Ministério Público Federal (MPF). A coordenadora do grupo, Madalena Cavalcante, aponta que é fundamental prever no EIA-Rima quais são os possíveis impactos da obra no território indígena ao longo do tempo. Ela aponta que hoje a região já enfrenta o primeiro estágio de impacto do empreendimento.
“Mesmo antes da materialização desse empreendimento, a gente já está no primeiro processo, que é o impacto especulativo que está exercendo influência do ponto de vista das populações locais, gerando incertezas. No âmbito econômico, você levanta a questão da especulação pela possibilidade de mão de obra trabalhadora, tem ali uma influência de atrair populações. Pensando na questão do trabalho e especulação imobiliária, altera toda essa dinâmica imobiliária de venda e compra de terrenos, de casas. Ou seja, você já tem um impacto ali no âmbito das incertezas e da especulação”, diz Cavalcante.
Um segundo momento de impacto acontece após a concessão da licença para o início da construção, com os impactos imediatos provocados para permitir que a obra aconteça. “Eu tenho que promover um deslocamento da área a ser utilizada para o canteiro de obra e, posteriormente, o deslocamento de populações na área do reservatório, a retirada de floresta de vegetação”.
O último estágio de impactos do empreendimento começa a partir da sua operação, de acordo com a especialista. “São impactos processuais, porque a gente não tem a previsão, mesmo a obra sendo construída, qual o efeito disso na dinâmica do pescado, por exemplo, a gente não tem um tempo para isso findar.”
Esta reportagem é resultado de uma formação realizada pela InfoAmazonia no âmbito do projeto Conservando Juntos, implementado pela Internews em aliança com a USAID e a WCS. O conteúdo é de responsabilidade da InfoAmazonia e da Internews, e não reflete necessariamente as opiniões da WCS, da USAID ou do governo dos Estados Unidos.