A família Heller é ré em mais de 26 processos fiscais relacionados a crimes ambientais nas cidades de Novo Progresso e Altamira, no Pará, e Itaúba, no Mato Grosso. Apenas dois processos foram quitados, por baixa automática. As primeiras multas datam de 1999.

Uma área aberta de desmatamento com mais de 6,5 mil hectares (ha) em Novo Progresso (PA) e em Altamira (PA) é considerada pela Polícia Federal (PF) um dos maiores pontos de desmatamento da Amazônia. De acordo com a PF, esse ponto no mapa, que equivale a quatro ilhas de Fernando de Noronha, é de propriedade de Bruno Heller, 71 anos, fazendeiro que aguarda julgamento da Justiça Federal suspeito de liderar “grupo familiar que auferiria vantagem patrimonial a partir da invasão de terras da União, com posterior desmatamento da área”. 

A sucessão de crimes motivou as operações Retomada I e II da PF, que considera o fazendeiro como suspeito de ser o maior desmatador da Amazônia. A investigação se baseou em informações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dos últimos 18 anos. Para a polícia, Bruno usava o nome dos familiares como “laranjas” para grilar terras da União, assentamentos e terras indígenas.

Bruno foi preso em flagrante na primeira fase da operação, em 3 de agosto de 2023, por porte de ouro bruto e arma ilegal. Ele foi solto no dia seguinte e responde pelos crimes em liberdade. Não há previsão do dia do julgamento. 

Imagem aérea do desmatamento da Fazenda Serra Verde, em Novo Progresso (PA), uma das propriedades da família Heller com maior desmatamento. Foto: Satélite LANDSAT /Reprodução

Uma análise da InfoAmazonia aponta que a família de Bruno, a Heller, já foi autuada 26 vezes pelo Ibama por infrações ambientais nas cidades de Novo Progresso e Altamira, no Pará, e Itaúba, no Mato Grosso. As informações foram levantadas na plataforma CruzaGrafos, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que reúne as informações de autuações ambientais lavradas pelo Ibama cruzadas com nomes, CPF e CNPJ.

Ao todo, são 31,4 milhões de reais em multas desde 1999, valor corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A grande maioria das autuações (22 delas) refere-se a danos à flora, classificadas como desmatamento ilegal. Apenas dois autos de infração foram quitados, por baixa automática. A reportagem  encontrou infrações cometidas por Bruno Heller e seus irmãos Ingo Heller, Levino Heller, Udo Heller e Nestor Heller. Também há autuações contra os sobrinhos Eliane Heller e Marcio Ivan Heller.

 O CruzaGrafos mostra que os Heller foram proprietários ou sócios de três empresas, dos setores de madeira. São elas: Irmãos Heller, Comércio e Indústria de Madeiras Cruzeiro e Heller Indústria e Comércio de Madeiras. Por elas, há uma dívida ativa com a União de R$ 3.077.852,33, de acordo com dados da plataforma da Abraji.

Embora não constem registros no CruzaGrafos, também fazem parte da família Heller: a esposa Cleusi Missassi; as filhas Tatiana, Juliana e Fabiana; os sobrinhos Liliani Volken Heller e Soleni Heller; e o parente da esposa, Humberto Luiz Missassi.

O levantamento da reportagem identificou cinco pessoas da família Heller com áreas embargadas em Novo Progresso (PA) até o último dia 8 de fevereiro deste ano. Nas fazendas Formosa I, II e III, há um total de seis embargos registrados nos nomes de Bruno e seus irmãos Nestor Heller e Ingo Heller, além do sobrinho Márcio Ivan Heller. A análise teve como base os dados de embargos do Ibama. 

Juntos, os cinco integrantes da família Heller somam 10 embargos, de 2003 a 2021. De acordo com a investigação da PF, a suspeita é de que todas as propriedades localizadas em Altamira (PA) e Novo Progresso (PA) seriam de Bruno, apesar de estarem registradas em nome de familiares, que seriam seus “laranjas”

Os dois municípios estão entre os que acumularam as maiores áreas de incrementos de desmatamento na Amazônia Legal. Segundo os dados do Programa de Monitoramento do Desmatamento por Satélite (Prodes), organizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Altamira (PA) registrou 317,7 km2 de áreas desmatadas em 2023, sendo o município com maior perda florestal. No mesmo ano, o desmatamento em Novo Progresso atingiu 96,5 km2 de sua área, fazendo o município ter a 23ª maior taxa da Amazônia Legal em 2023.

O ‘efeito dominó’ da impunidade

Para o analista ambiental e diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional), Wallace Lopes, a teoria econômica do crime explica a sensação de impunidade ao se deparar com o valor das multas em aberto. Segundo o analista, situações como a da família Heller demonstram que o “crime compensa”: ao desmatar grandes áreas sem serem punidos e terem recursos “infinitos” para evitar a punição legal, isso encoraja outras pessoas a cometer os mesmos atos. 

“Isso cria um efeito dominó, onde a impunidade de uns incentiva a audácia de outros, perpetuando o problema e tornando ainda mais difícil nosso trabalho de proteger nossas florestas”, lamenta Wallace. 

Isso cria um efeito dominó, onde a impunidade de uns incentiva a audácia de outros, perpetuando o problema e tornando ainda mais difícil nosso trabalho de proteger nossas florestas.

Wallace Lopes, analista ambiental e diretor da Ascema Nacional

A teoria citada pelo analista sugere que as pessoas decidem se envolver em atividades criminosas com base em uma avaliação racional dos custos e benefícios. Elas consideram os possíveis ganhos (como lucros com desmatamento) em comparação com os riscos (como a chance de serem pegas, multadas ou presas). 

“Em outras palavras, imagine que você está jogando um jogo onde as regras não são aplicadas para todos de maneira equânime. Se algumas pessoas trapaceiam e ganham prêmios sem nunca serem punidas, logo outros jogadores vão pensar: ‘por que eu não faria o mesmo?’”, explica. 

A falta de pessoal, treinamento insuficiente e infraestrutura tecnológica precária está entre os principais desafios enfrentados pelos órgãos ambientais atualmente. Para o diretor da Ascema Nacional, esses são fatores que também contribuem para o baixo índice de pagamento de multas.

Essas punições só irão gerar algum tipo de restrição fiscal ao infrator quando ele esgota todas as possibilidades de recorrer administrativamente. Só então a multa é atualizada com juros e correção monetária e é registrada na Dívida Ativa da União. Isso leva à negativação do nome do infrator em órgãos de crédito, dificultando a obtenção de empréstimos e financiamentos.

“Se mesmo assim o infrator não efetuar o pagamento, a União pode iniciar uma Ação de Execução Fiscal para cobrar a multa, o que pode levar à penhora de bens do devedor. Enquanto tudo isso ocorre, o valor da multa que poderia ter sido pago lá no início do processo já foi multiplicado algumas vezes pelo infrator, geralmente executando outras atividades ilegais, aumentando assim o sentimento de impunidade que fomenta o cometimento de mais ilegalidades por outras pessoas”, analisa Wallace.

Registro da operação Retomada II, da Polícia Federal, em dezembro de 2023. Foto: Polícia Federal/Divulgação

Exploração madeireira ilegal

Embora esteja com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) suspenso, Bruno Heller é proprietário da Fazenda Ipê Roxo, localizada ao lado dos limites da TI Baú, em Altamira. A região é considerada de risco devido a atividades agropecuárias, exploração de madeira e de mineração na região e em fazendas próximas. Devido à atividade de mineração, houve disputas entre indígenas da região. Para os contrários a esse tipo de atividade, a terra redefinida é considerada uma “área perdida”. 

Os danos referentes ao desmatamento para a abertura de “ramais”, termo utilizado para designar as estradas vicinais desmatadas para abrir caminhos dentro da floresta, são notórios na região. Esses prejuízos foram registrados pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas-PA) em uma área classificada como Zona Socioambiental Sensível, que são áreas limítrofes às terras indígenas e unidades de conservação, onde o risco de conflitos de uso é alto, exigindo atividades menos intensivas, equitativas socialmente e que promovam a conservação da biodiversidade.

Bepdjo Mekragnotire, cacique na aldeia Baú da terra indígenas de mesmo nome, explica que tem sido difícil a luta para defender a floresta. “A gente protege o nosso lado, mas tem lugares que as madeireiras já estão em cima da terra indígena. A PF poderia defender [o território] junto com nós. O Ibama faz a multa, para eles pagarem, mas continuam desmatando. A gente sente que até o ar já está mudando e vai mudar mais. Mas mesmo assim continuam derrubando por causa de dinheiro”, desabafou.

O presidente da Associação Indígena Mantinó, que representa parte das aldeias da TI Baú, Okryt Kuantoro, explica que houve a necessidade de criar um grupo de guerreiros fazendo a vigilância do limite das terras: “A Polícia Federal já foi lá nesse local ano passado e acabou com tudo. Não tem mais invasores. Hoje a Associação Indígena Mantinó está trabalhando com o posto de vigilância para proteger a área indígena. A área do Baú é grande. Tem vez que pode entrar algum invasor e não sabemos. Por isso, estamos com nossos próprios guerreiros para não ter mais isso”. 

Ao todo, são sete pontos de vigilância espalhados pelo limite da TI, com cinco equipes trabalhando e se revezando a cada dez dias.

A reportagem entrou em contato com a defesa da família Heller sobre o caso da Operação Retomada e, por meio de nota, o advogado da família Vinícius Segatto Jorge da Cunha afirmou que a investigação da Polícia Federal em andamento é sigilosa e por isso não poderia dar mais detalhes.

“A defesa também reforça que trata-se de um grupo familiar que desde os anos 70 exerce a posse mansa, livre e pacífica da propriedade rural familiar situada no estado do Pará. Bruno e Tatiana [filha de Bruno] trabalham e empreendem de modo autônomo e independente entre si na lavoura e no ramo da pecuária, contribuindo junto aos demais membros familiares ao desenvolvimento econômico da área de Novo Progresso e Altamira”, acrescenta.

A advogada e doutora em Ciências Ambientais e Desenvolvimento Regional Giselle Marques destaca que, embora as leis ambientais do Brasil sejam sólidas, elas são muitas vezes ignoradas devido à falta de punição. Ela observa que conexões políticas frequentemente garantem lentidão dos processos legais, e aqueles com recursos financeiros conseguem atrasá-los contratando bons advogados. 

“Eu sempre digo que o litígio judicial é bom para quem não tem razão, que acaba se beneficiando dos anos ou até mesmo décadas que os processos tramitam pelos tribunais”, enfatiza Giselle. 


Esta reportagem é resultado de uma formação realizada pela InfoAmazonia no âmbito do projeto Conservando Juntos, implementado pela Internews em aliança com a USAID e a WCS. O conteúdo é de responsabilidade da InfoAmazonia e da Internews, e não reflete necessariamente as opiniões da WCS, da USAID ou do governo dos Estados Unidos.

Sobre o autor

Gabriela Couto

Repórter sediada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde trabalha com notícias políticas e ambientais. Em seus 14 anos de carreira, desde que se formou em Jornalismo pela Centro Universitário de...

Ainda não há comentários. Deixe um comentário!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.