Ministério dos Povos Indígenas tem orientado comunidades a aguardarem regulamentação do mercado de carbono pelo Congresso e diz que projetos que estão em terras indígenas precisam de anuência da Funai; contratos já assinados sem acompanhamento do órgão indigenista estão sendo analisados pela pasta.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) está analisando os projetos de crédito de carbono em terras indígenas com contratos já assinados para verificar se houve violações de direitos em acordos firmados sem acompanhamento dos órgãos federais, informou a ministra Sonia Guajajara, em entrevista à InfoAmazonia. Apesar de ainda não existir uma regulamentação para esses projetos em áreas da União ocupadas por populações tradicionais no Brasil, as empresas interessadas em intermediar a venda dos créditos têm procurado comunidades e fechado acordos de exclusividade sem autorização dos órgãos indigenistas.
“Tem contratos que foram assinados em inglês e os indígenas não têm noção do que pode estar lá”, afirmou a ministra Guajajara, listando uma série de suspeitas de violações de direitos que têm chegado ao MPI, como aliciamento de lideranças, falta de consulta adequada às comunidades e cláusulas abusivas.
A orientação do MPI é que as comunidades não assinem contratos antes da regulamentação do tema, que tramita no Congresso por meio do projeto de lei (PL) 2148/15 e cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). O PL prevê que indígenas, quilombolas e comunidades extrativistas participem da geração e comercialização de créditos de carbono, por meio de projetos desenvolvidos em seus territórios. Para isso, deverão existir cláusulas contratuais que garantam o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e indenização em caso de “danos coletivos, materiais e imateriais”. O texto prevê também a repartição justa e equitativa dos recursos gerados, com depósitos em contas específicas para a gestão dos projetos.
Um ponto importante do PL é a definição de um limite de emissões por setor da economia. O projeto chegou a ser aprovado em dezembro do ano passado na Câmara e agora retorna ao Senado. Os deputados alteraram a proposta original dos senadores e excluíram o agronegócio do teto de emissões, setor que é responsável diretamente por 27% da liberação de gases do efeito estufa do país.
Interesse do mercado em terras indígenas
Os créditos de carbono gerados a partir das áreas de florestas preservadas, conhecidos como REDD+: O chamado REDD+ (do Inglês Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation) é um mecanismo desenvolvido para recompensar financeiramente a redução efetiva e comprovada de gases de efeito estufa gerados por desmatamento e degradação florestal em países em desenvolvimento. Assim, o mecanismo privilegia a conservação e o manejo sustentável de florestas para a manutenção de estoques de carbono., sigla para Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal, são negociados com grandes empresas que têm interesse em compensar suas emissões. Cada crédito equivale a uma tonelada de CO2 equivalente: É uma medida métrica utilizada para comparar as emissões de diferentes gases de efeito estufa baseado no potencial de aquecimento global de cada um. Para cada gás é feito um cálculo equivalente do seu potencial de poluição em comparação com a mesma quantidade de CO2. evitado na atmosfera, com preços que variam entre 3 e 15 dólares.
No Brasil, existem 103 projetos REDD+ em desenvolvimento registrados na Verra, maior certificadora de créditos de carbono do mundo, dos quais pelo menos 76 estão na Amazônia Legal.
Por historicamente manterem uma alta proteção da floresta, as terras indígenas se tornaram alvo das empresas que buscam intermediar a venda desses créditos no mercado internacional. Até o final de 2023, havia cerca de 40 projetos de carbono sendo negociados com comunidades indígenas, sendo que a maior parte ainda não foi enviada para certificação.
No entanto, apesar da autonomia que os indígenas têm sobre os territórios, segundo a ministra, por se tratarem de terras da União, com usufruto exclusivo para as comunidades, os projetos para geração de créditos de carbono em terras indígenas dependem de anuência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Mesmo assim, diversos contratos foram assinados sem qualquer tipo de acompanhamento do órgão.
“Tem muitas empresas que estão chegando e abordando as comunidades para assinatura de contratos. O que estamos tentando fazer é evitar que os projetos abusivos sejam efetivados. A Funai já tem esse levantamento junto com o MPF [Ministério Público Federal] para suspender aqueles projetos que estiverem descumprindo ou desrespeitando o usufruto exclusivo dos povos indígenas”, afirmou Guajajara. “Enquanto não houver regulamentação própria, o acompanhamento dos projetos tem que ser feito pela Funai. Os que estiverem fora das regras poderão ser cancelados”, pontua.
A ministra reconhece que a geração de créditos de carbono pode significar fonte de renda importante para os povos indígenas que já protegem as florestas em seus territórios. No entanto, pede cautela para que as comunidades não tenham seus direitos de uso da terra prejudicados ou assinem contratos desvantajosos. Em média, os negócios desse tipo de mercado duram entre 30 e 50 anos e a maioria das empresas cobra exclusividade para negociar os créditos durante todo o período da vigência.
Estima-se que 73 bilhões de toneladas de carbono estejam armazenados nas florestas da Amazônia brasileira, sendo que 58% encontram-se nos territórios indígenas e nas unidades de conservação.
Os territórios indígenas, além de terem um grau de preservação mais confiável, normalmente estão em grandes áreas de floresta preservada, o que também facilita os esforços dessas empresas para negociarem áreas maiores com apenas um contrato, já que em terras privadas é preciso reunir diferentes proprietários para desenvolver projetos viáveis para o mercado.
Violações em projetos de carbono são mapeadas pela CPT
Diante do aumento das propostas para geração de créditos de carbono em terras indígenas, a Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai expediu uma recomendação, em junho de 2022, para todas as 39 Coordenações Regionais “orientando as unidades descentralizadas para que não avalizem projetos que visem a comercialização de créditos de carbono em terras indígenas e que orientem os indígenas envolvidos”.
A Funai tem orientado as comunidades para que “não sejam assinados contratos para comercialização de créditos de carbono em terras indígenas até que a questão seja regulamentada”. O órgão também emitiu uma nota técnica onde aponta que “na ausência de regulamentação da matéria, não haveria como a União participar ou autorizar tais negociações, devendo a Funai acompanhar as atividades em curso para que não haja violação aos direitos indígenas”.
Desde o ano passado, a InfoAmazonia tem revelado casos de violações de direitos em uma série de reportagens sobre o mercado de carbono em terras indígenas. A reportagem identificou diversos contratos assinados sem ampla discussão nas comunidades e sem qualquer tipo de conhecimento da Funai e do MPI sobre tais acordos. Em alguns casos, como na Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará, os indígenas assinaram documentos sem saber do que se tratava e com folhas em branco. Na Terra Indígena Kayapó, também no Pará, os empresários ofereceram um adiantamento de R$ 50 milhões para convencer os indígenas a assinarem um contrato de 30 anos. Os dois casos estavam sendo desenvolvidos pela Carbonext, empresa ligada à Shell. Após denúncias ao MPF, a empresa desistiu das negociações e assinou distrato.
Neste ano, pela primeira vez, o relatório Conflitos no Campo, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), incluiu casos de violações de direitos relacionados a projetos de crédito de carbono. O relatório verificou que, em 2023, 22 comunidades na Amazônia estiveram envolvidas em conflitos relacionados a projetos de carbono, sendo que 88,4% dos casos ocorreram em Terras Indígenas, seguidos das Unidades de Conservação (7,6%) e Assentamentos (3,4%). O Pará lidera os casos de violações de direitos para implantação de projetos de crédito de carbono, com 12 casos, seguido por Acre (5), Rondônia (4) e Maranhão (1). Entre os casos mapeados pela organização, estão os os projetos com indícios de violações revelados pela InfoAmazonia.
Consulta deve ser livre de influência das empresas
Um dos pontos mais frágeis das negociações para geração de créditos de carbono em terras indígenas é a realização da consulta livre, prévia e informada assegurada às comunidades tradicionais por meio da Convenção 169 da OIT, que tem força de lei.
A consulta indígena deve seguir os ritos definidos pelas próprias comunidades em seus protocolos, quando houver, e deve ser livre de interferências externas, prévia a qualquer assinatura de acordo e amplamente informada para toda comunidade do território.
Segundo o secretário Nacional de Direitos Territoriais Indígenas do MPI, Marcos Kaingang, a consulta deve respeitar o tempo de cada comunidade para que os próprios indígenas decidam internamente sobre os projetos, sem interferência das empresas interessadas. “O nosso entendimento é de que a consulta seja de fato um momento para comunidade debater e discutir de forma autônoma sobre os projetos, sem envolvimento e participação das empresas interessadas. Quando a empresa promove ou participa dessa consulta entendemos que essa decisão passa a ser viciada”, explica Kaingang.
A consulta se tornou uma pedra no sapato das empresas desenvolvedoras, que têm pressa em assinar contratos para buscar financiamento. A fase de implantação pode levar até três anos e demanda altos investimentos em estudos para calcular as estimativas de emissões evitadas nas áreas de floresta preservada.
Em julho do ano passado, o MPF também emitiu uma nota técnica para orientar as procuradorias regionais sobre o mercado de crédito de carbono em terras indígenas. No documento, os procuradores destacam que “a consulta prévia deve ocorrer na fase do planejamento e antes de qualquer ato decisório”.
Para evitar ilegalidades e violações de direitos dos povos indígenas, o MPI tem realizado oficinas para orientar as populações. Segundo Kaingang, o objetivo não é interferir na vontade das comunidades, mas garantir que elas possam tomar decisões sem riscos de terem seus contratos cancelados no futuro.
“Nós verificamos contratos abusivos, que restringem inclusive o acesso dos indígenas a alguns espaços nos seus territórios, e casos de aliciamento de comunidades que são bastante complexos e difíceis de identificar. O nosso objetivo é sempre o de orientar, mas a decisão final é das comunidades. Se a decisão for pela implantação dos projetos, é preciso atender as condições mínimas de respeito ao usufruto das terras, mas também ao patrimônio brasileiro, que tem sido objeto destes acordos”.