Em meio à tragédia devido à enchente no Rio Grande do Sul, brasileiros disseminam informações falsas sobre a festa em Copacabana e, assim, esquecem de olhar para o que realmente influencia o aquecimento global. As emissões brasileiras de gases do efeito estufa são consequência da devastação da Amazônia ano a ano e, se bobear, o governo federal vai flertar cada vez mais com a exploração do petróleo no país.
Domingo, 5 de maio de 2024, um dia depois de um show histórico em Copacabana com 1,6 milhão de pessoas assistindo Madonna, a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal publica um texto com o seguinte título: “Governo Federal não patrocinou show da Madonna no Rio”.
“Em meio à calamidade no Rio Grande do Sul, circulam falsas informações sobre o financiamento do show da Madonna pelo Governo Federal, desviando o foco das verdadeiras necessidades da região”, diz um trecho.
A declaração da Secretaria de Comunicação é uma resposta a alguns posts com informações falsas que circularam em meio à catástrofe climática no sul do país, ligando o financiamento do show a uma suposta verba do governo federal. Há, ainda, um tom moralista nas redes, no sentido de questionar aqueles que festejaram em Copacabana enquanto outros estavam em estado de calamidade. Não pretendo debater isso por aqui. Com show da Madonna, sem show da Madonna, o problema não é esse.
Nos últimos anos, lecionei alguns cursos sobre dados de mudanças climáticas. Comecei jogando alto, falando das emissões de carbono diretamente, sem explicar a relação entre Amazônia, agropecuária, desmatamento e gases do efeito estufa. Entendi com o tempo que uma parte das pessoas não entende ainda a conexão entre uma coisa e outra. A começar pelo tamanho da Amazônia: 58% do território do Brasil. Sim, o bioma amazônico é mais da metade do país.
São os estados da Amazônia que representam a maior fatia de emissões brasileiras de gases que levam ao aquecimento global, que causa uma frequência cada vez maior de eventos extremos como o que vemos no Rio Grande do Sul. Hoje, temos o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma iniciativa do Observatório do Clima que faz o cálculo do que emitimos no país em cinco setores: agropecuária, mudança de uso da terra (basicamente desmatamento), energia, indústria e resíduos.
No Brasil, o setor de mudança de uso da terra é o que mais emite carbono e respondeu por 1,12 bilhão de toneladas brutas de gás carbônico equivalente (CO2e), ou 48% do total nacional em todo o ano de 2022. Depois, em segundo lugar, vem a agropecuária, com 27% (617 milhões de toneladas de CO2e), sendo aqui a maior parte dos gases ligados à fermentação entérica do gado no país, os famosos “arrotos e puns”. Vale lembrar que o agro é responsável por 97% do desmatamento do país, segundo dados do MapBiomas de 2021 e, por isso, indiretamente é o setor que mais libera gases de efeito estufa no país.
Juntos, os setores de energia, indústria e de resíduos representaram metade (581,9 milhões de toneladas brutas) do que emitimos de CO2e ao desmatar a floresta naquele ano. Ou seja: mesmo que o show da Madonna conseguisse representar o mesmo que todas as emissões do país no setor industrial, energético e de resíduos, ele não chegaria nem perto do impacto do desmatamento no problema. Boicotar a festa no Rio não vai deixar o estado do Rio Grande do Sul mais seguro, muito menos reduzir nossa contribuição para o aquecimento global.
Dito isso, a mensagem que a Madonna trouxe no show, com fotos de lideranças indígenas que defendem a floresta, está mais conectada com a crise climática do que os “reclamões” da internet. Isso porque as áreas protegidas — terras indígenas e unidades de conservação — são as menos desmatadas dentro da Amazônia.
Qual é o ponto-chave do debate, então?
É questionar o projeto de lei 412/2022, que tramita no Congresso, e cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), estabelecendo um teto de emissões de gases por setores da economia. A bancada ruralista conseguiu retirar as obrigações do agronegócio, que não deve ter um teto de emissões. Como disse Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, ao repórter Fábio Bispo, “o agronegócio no Brasil, infelizmente, não quer ser regulado no mercado de carbono, ele não quer ser regulado na legislação, ele não quer ser regulado nos impostos”.
Podemos falar também sobre os planos de mitigação e adaptação do governo federal para mudanças climáticas, que ainda não saíram do papel. Podemos falar, também, de como é absurdo o governo Lula flertar com a exploração de petróleo na Amazônia mesmo quando o mundo vai na contramão dos combustíveis fósseis. E nós podemos debater os planos dos candidatos para as eleições municipais neste ano, votando em quem defende a floresta em pé.