93 comunidades indígenas foram afetadas por inundações e perderam roças que serviriam de consumo para o ano todo. O estado enfrenta seu maior desastre ambiental, segundo o governo, com 10,7 mil desabrigados devido às cheias dos rios, que afetam 86% dos municípios.
Povos indígenas próximos ao rio Acre, que atingiu na primeira semana de março o segundo maior pico (17,8 metros) desde 1971, perderam as suas plantações e já sentem os impactos da enchente histórica no estado. Nesta semana, com a redução das chuvas, os roçados voltam a aparecer entre plantas inundadas, mas não é o fim do problema: as populações perderam os alimentos que serviriam para o ano inteiro. Agora, o governo estadual e as comunidades estão abrindo campanhas para financiamento e doações.
Até 7 de março, foram 93 comunidades indígenas atingidas pelas enchentes, que alagaram roçados e casas e afetaram 5,4 mil pessoas de oito povos diferentes, entre eles os Kaxarari, Huni Kui, Manchineri e Jaminawa.
Além das famílias indígenas atingidas, o Acre tinha, até esta terça-feira (12), 10,7 mil pessoas desabrigadas em 15 de seus 22 municípios. O rio Acre, na altura da capital Rio Branco, estava medindo 12,28 m e seguia ritmo de descida. Foram 120 mil acrianos atingidos, independentemente de terem ficado desabrigados ou não. De acordo com o governo estadual, é o maior desastre ambiental do estado, isso porque 86% dos municípios foram impactados.
‘Minha aldeia está desmoronando’
Josimar Matos, indígena do povo Huni Kui, da Terra Indígena (TI) Katukina/Kaxinawá, conta que as cinco comunidades do território perderam plantações de macaxeira, banana, mamão, milho e amendoim. Ele vive em uma delas, a Boa União, que está cercada pela água e lama.
“A minha aldeia está desmoronando, depois da alagação estamos tendo um desmoronamento, além da perda do legume, do roçado, além da invasão da água nas casas. Agora, estamos perdendo a nossa aldeia, é uma situação muito complicada”, disse Matos em entrevista à InfoAmazonia.
Em vídeo enviado à reportagem, Josimar mostra um bananal alagado (veja abaixo). Em outro, uma roça de macaxeira está embaixo d’água. Ele assinou uma carta, compartilhada em grupos de mensagens online, pedindo kits de alimentos e higiene para 150 famílias que foram prejudicadas com a perda das plantações. “É um desespero para nós, uma tristeza, ver as nossas possibilidades de carência e produção que a gente planta e a natureza vem pra destruir. Podem ver como está a situação da água”, diz.
A Terra Indígena Katukina/Kaxinawá é o território de cerca de 2 mil pessoas dos povos Huni Kuin e Shanenawa. A TI é homologada desde 1991 e a população sobrevive principalmente da agricultura e extrativismo. A área é banhada pelo rio Envira, que está na Bacia Tarauacá-Envira e também foi afetada pela enchente, e tem um limite de 14 m até transbordar — na primeira semana de março, a cota quase ultrapassou essa marca, chegando a 13,51 m. Nesta terça-feira, com a redução das chuvas, o índice já baixou para 8,32 m.
A indígena Benícia Huni Kuin, moradora da comunidade Boa União, contou que um bananal destruído pode levar até dois anos para ser replantado. Em vídeo, ela aparece com o rio na altura dos tornozelos e pede por doações de água tratada. “Por isso, a gente está fazendo esse vídeo, pra vocês verem como a gente está sendo afetado e vocês nos ajudarem (…) pra ajudar na água, porque a gente está sem água agora, a gente não está tendo água para beber”, diz.
Além do impacto nas roças, novos problemas surgem com a descida dos rios após a enchente, como a falta de água limpa para banho, a dificuldade de obter itens básicos de higiene e a de fazer locomoção de galões de água. De acordo com dados do Ministério da Saúde, são 5,8 mil pessoas sem infraestrutura de abastecimento de água no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Purus, em que a TI está inclusa.
Luta contra a insegurança alimentar
O coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Acre, Junior Manchineri, disse à InfoAmazonia que o período de pós-inundação deve continuar pelos próximos meses. Em tratativas com o Ministério Público Federal (MPF), a Secretaria Estadual de Agricultura, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e outras instituições que trabalham o tema, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ele tenta formar uma equipe técnica para estudar o impacto nos roçados e ajudar a recuperar as plantações.
“O pós é um pouco mais complexo, porque já tem uma situação mais delicada de insegurança alimentar, porque houve a perda dos roçados e a família não tem nada para comer, para se sustentar na comunidade. Por isso, tem que haver um fluxo de entrega de cestas básicas até que haja recuperação desses roçados. A gente tem que, de algum modo, auxiliar minimamente no processo de recuperação”, explica Manchineri.
Na avaliação do coordenador da Funai no estado, a recuperação dos roçados vai exigir apoio especializado de uma equipe diversa, além de recursos para equipamentos e novas licitações. A proposta é criar uma agenda, junto aos outros órgãos, para identificar a situação das plantações nas terras indígenas e fazer um levantamento do que é necessário para que cada uma volte a produzir.
“A maior preocupação é saber como a gente vai conseguir fortalecer a recuperação desses roçados, porque essa recuperação é muito complexa. Exige materiais, ferramentas, tem que ter mudas, tem que ter semente. Tem a burocracia estatal, que eu acho que vai ser o grande nosso grande gargalo. Tem sido um grande gargalo nosso, devido ao quadro reduzido de servidores. A nossa maior preocupação é o que nós vamos conseguir recuperar, como nós vamos conseguir recuperar e quando nós vamos conseguir recuperar. Para que a gente volte a dar condições mínimas aos indígenas”, disse.
Adaptação climática
Foster Brown, pesquisador do Centro de Pesquisa em Clima Woodwell e professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), diz que o impacto na segurança alimentar não é uma surpresa e que, além das terras indígenas, toda a produção agrícola do estado está sendo afetada. Ele afirma que o cenário se agrava com a emergência climática.
“A gente não está abordando o aspecto da segurança alimentar nem a nível mundial, nem a nível regional. É previsível essa insegurança. É um reflexo dos efeitos do clima. Consequentemente, nós precisamos nos preparar, tentar diminuir os impactos desses eventos extremos e não tentar só reagir aos eventos extremos, isso significa mais trabalho”, explicou.
Para Foster, o importante é entrar em fase de adaptação às mudanças do clima. Isso é um desafio ainda maior em relação à produção de alimentos na Amazônia, já que existe uma variação no clima do bioma com períodos de chuva e de seca diferentes, mudando com o aumento da temperatura e outras questões ligadas ao aquecimento do planeta.
“Quando eu saio de casa, se está com sol, eu coloco a capa de chuva, se está chovendo, eu vou levar o chapéu. Você começa a planejar para uma maior variabilidade. Isso não significa que resolve o problema, mas ajuda a minimizar o problema. Então, se a seca se prolongar, eu vou plantar em área mais baixa, mas se tiver chuva forte, vou também colocar plantações na parte mais alta. Isso significa efetivamente menos produtividade, mas são mais chances de ter comida, independentemente do que aconteça”, afirma Foster.
No Acre, essa experiência de mudar as roças e casas de uma região para outra já é uma expectativa. A cidade de Brasiléia, que fica na fronteira com a Bolívia, pode mudar de lugar. Em reportagem da Folha de S.Paulo, a prefeita Fernanda Hassen (sem partido) explicou que a proposta é levar 3,4 mil famílias para a região alta do município e construir casas populares para receber quem perdeu tudo com a enchente.
Marina Silva, ministra do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), esteve no Acre em 4 de março. Ela contou que o governo planeja decretar emergência climática permanente nos 1.038 municípios mais vulneráveis aos eventos extremos no país. Na Amazônia, 200 cidades fazem parte da lista do governo federal.
“É uma realidade que vai se repetir de forma mais grave. Então, trabalhamos nas causas, com tudo que pode diminuir o ritmo do aumento da temperatura. Ao mesmo tempo, [trabalhamos em] ações estruturantes para que cidades vulneráveis tenham intervenções continuadas ao longo dos anos para enfrentar o problema”, disse a ministra.
No momento, o país desenvolve o Plano Clima, que terá 15 planos de adaptação para 15 setores diferentes, entre eles a agricultura. A expectativa é que a adaptação climática considere realidades locais, de comunidades específicas, incluindo povos indígenas de todo o país. Os documentos devem ser lançados neste ano, segundo o MMA, e apresentados como modelo aos outros países na COP30, que será realizada em Belém, no Pará, em 2025.
Foster explica que a adaptação climática será um grande desafio para o país e que, no caso da agricultura, exige estratégias, técnicas e conhecimentos das populações locais. “Vai precisar pensar muito. Pensar se tem sementes que são mais resistentes à seca, à água, se eu consigo essas sementes, etc. Então, é um trabalho extremamente importante”.
Ele afirma também que existe um silêncio sobre a crise dos produtores rurais, que precisa de mais atenção. “Nós temos um processo de empobrecimento silencioso acontecendo com as comunidades rurais. Se não conseguir reduzir [a falta de produção], além do problema da segurança alimentar, as pessoas vão começar a vender o excedente [de alimentos] e o potencial de ter menos excedente é real. Mas quem sabe disso? Por isso, essa conversa é muito importante”, diz o professor.
Extremos climáticos na Amazônia
Os eventos extremos na Amazônia começaram cedo em 2024. Ainda no início de fevereiro, o estado do Amapá foi atingido por fortes chuvas e famílias ficaram desabrigadas, sendo acolhidas em escolas e recebendo alimentos, colchões e hipoclorito de sódio para tratar água. Três municípios decretaram estado de emergência, à época.
Também em fevereiro deste ano, Roraima registrou 2.057 focos de queimadas, contra 168 no mesmo mês do ano passado (uma alta de mais de 1.000%), de acordo com dados do satélite de referência monitorado pelo Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O estado passa pela estação seca, que começou em outubro e deve terminar no fim de março, mas, apesar do calor já esperado para esta época do ano, os dados aumentaram significativamente — de 1º de janeiro a 13 de março deste ano, foram 3.082 focos, contra 997 no mesmo período de 2023, uma alta de 209%.
Com os incêndios descontrolados, o fogo se alastrou por terras indígenas e a capital do estado, Boa Vista, foi tomada por fumaça, deixando o ar poluído e dificultando a respiração dos moradores.
No Acre, além da enchente, cientistas, incluindo o professor Foster, começam a se preocupar com a perspectiva da seca deste ano, que pode ser muito severa. Em carta assinada por 17 pesquisadores, de diferentes instituições, os cientistas fazem cinco recomendações, pedindo que municípios da região Madre de Dios (Peru), Acre (Brasi) e Pando (Bolívia) se preparem para enfrentar o que pode ser uma seca histórica.
Entre as recomendações, estão: implementar planos de contingência para o abastecimento de água em habitações humanas e atividades agropecuárias; identificar e controlar as queimadas acidentais e provocadas; reduzir os impactos de ondas de calor em populações vulneráveis, como idosos e menores; monitorar a qualidade do ar; e acompanhar as previsões meteorológicas locais de curto prazo, para dias, semanas e meses.
“Nós estamos disponibilizando aos municípios para ajudá-los na preparação. O grupo em que está circulando [a carta] tem 160 pessoas. Então, é tentar mobilizar a sociedade para fazer um trabalho de preparação e para minimizar os riscos”, explica Foster.
De acordo com os cientistas, as previsões são de ocorrência de chuvas abaixo do normal e temperaturas acima do normal para os próximos seis meses no Acre. Nesse caso, eles preveem problemas de abastecimento de água, ondas de calor, incêndios florestais e altos níveis de fumaça “com implicações sérias para a saúde humana e ambiental”.