Sem a identificação oficial, corpos não podem ser devolvidos para as suas famílias. Funai é responsável por ir atrás das comunidades para descobrir a identidade dos mortos, mas afirma enfrentar dificuldades para chegar até os possíveis parentes; IML de Roraima fala em superlotação de corpos indígenas na unidade e é barrado de fazer enterros sem a documentação dos óbitos.
Seis corpos de indígenas Yanomami aguardam identificação há mais de um ano no Instituto Médico Legal (IML) de Roraima. Sem essa confirmação, eles não podem ser devolvidos para as suas famílias. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) diz que enfrenta dificuldades para confirmar a identidade dos mortos. Segundo o órgão indigenista, os corpos provavelmente são de pessoas do subgrupo Yanomami conhecido como Yawari, que tiveram comunidades fortemente afetadas pelo garimpo.
“Com o garimpo, muitos Yawari fugiram das suas comunidades, vários vieram para cidade, onde há uma grande dificuldade para eles se relacionarem. Além disso, a introdução da bebida alcoólica, o aliciamento para forçar indígenas a irem para o garimpo gerou também violência nessas comunidades. Nós temos dificuldades de chegar em algumas aldeias, temos servidores que foram ameaçados, disseram: ‘a Funai não chega aqui’”, relatou Marizete Macuxi, coordenadora regional da Funai em Roraima.
Ela diz que, além da destruição causada no ambiente onde esses povos vivem, o garimpo também alterou profundamente as relações sociais nas comunidades, o que tem dificultado a busca pelos familiares.
Pedido do IML ao MPF
Em 30 de agosto de 2023, após ser acionado pelo IML de Roraima, o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma audiência de mediação onde foi designada uma comissão da Funai para buscar a identificação dos corpos junto às comunidades. O órgão legista do estado de Roraima havia alegado superlotação da unidade na capital Boa Vista. No pedido ao MPF, o IML informou que tem sido impedido pelos cemitérios locais de encaminhar o enterro dos corpos sem identificação e sem documentos que atestem os óbitos.
Segundo as informações do IML encaminhadas ao MPF, os corpos estão na unidade desde janeiro de 2023, quando o governo federal decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.
A realidade dos Yawari foi registrada pelas equipes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania que atuam na missão humanitária. O relatório de Diagnóstico das Violações de direitos do Povo Yanomami do órgão identificou a migração de parte dos Yawari para áreas urbanas, a dificuldade dessa convivência, os problemas com alcoolismo e vários indícios de outros crimes e violações. Após as mudanças culturais causadas pelo garimpo, os Yawari deixaram de realizar rituais fúnebres tradicionais em suas comunidades de origem.
Macuxi diz que ao menos dois corpos estão com a identificação próxima da confirmação. No entanto, em um terceiro caso, as informações apresentadas pelas autoridades locais não foram atestadas. “A pessoa que achavam que estava morta está viva”, conta a indigenista.
Além disso, as poucas informações sobre as circunstâncias das mortes também dificultam a localização das famílias — segundo Macuxi, a Funai só tomou conhecimento da situação a partir da manifestação do IML de Roraima. “Alguns [indígenas] nós sabemos que não resistiram durante remoções das aldeias para tratamento na cidade, mas outros não sabemos o que aconteceu”, explica.
Um ano depois, Polícia Civil cobra acordo com Funai
Em 30 de janeiro deste ano, a delegada-geral adjunta da Polícia Civil de Roraima, Darlinda de Moura Santos Viana, cobrou do MPF o cumprimento do acordo estabelecido com a Funai. À reportagem, a coordenação da Funai em Roraima informou que deve apresentar um relatório preliminar nas próximas semanas já com parte dos indígenas identificados.
A InfoAmazonia tentou contato com a Polícia Civil em Roraima para saber em quais circunstâncias ocorreram as mortes e se há inquéritos para investigar os casos, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.
Saúde Yanomami continua prejudicada
Mais de 30 mil Yanomamis vivem na Terra Indígena Yanomami, no norte de Roraima. A região, explorada pelo garimpo desde os anos 1970, voltou a ter explosão da exploração ilegal de ouro nos últimos anos, principalmente durante a gestão do governo do ex-presidente Bolsonaro (PL). A Hutukara Associação Yanomami, principal organização indígena do território, calcula que até 2023, quando foi decretada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, cerca de 20 mil garimpeiros tinham entrado ilegalmente no território para explorar ouro.
As lideranças afirmam que a precarização dos serviços de saúde e a falta de atendimento adequado aos indígenas está diretamente ligada com a atividade garimpeira ilegal, que tem provocado conflitos e mortes.
Em janeiro de 2023, a InfoAmazonia revelou que remédios do SUS destinados para o combate à malária entre os Yanomami foram desviados para garimpos da região. Um ano após decretar emergência, o governo federal ainda enfrenta dificuldades para parar totalmente o garimpo e para fazer o atendimento adequado das comunidades.
Macuxi informa que o número de garimpeiros na região reduziu bastante desde o início das operações no início do ano passado, mas que um grupo ainda persiste na atividade em algumas regiões. “Ainda sofremos com o problema da desnutrição infantil e, principalmente, com a contaminação por mercúrio [usado no processo de garimpo de ouro]”.