Tuxaua Santilha, da comunidade Mutum, com sua plantação de mandioca Foto: Nailson Wapichana/InfoAmazonia
Indígenas da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, no nordeste de Roraima, enfrentam a escassez de um dos alimentos mais importantes para sua subsistência: a mandioca, um item básico utilizado para a produção de farinha, beiju: Alimento feito à base de mandioca, uma espécie de tapioca mais seca. É um dos carboidratos mais consumidos pelos povos tradicionais. e tapioca e que, apesar de ser uma planta resistente ao calor, já sente o impacto das mudanças climáticas e das altas temperaturas cada vez mais frequentes.
A reportagem da InfoAmazonia esteve na comunidade Mutum, dentro da TI, e participou da 43ª Assembleia Geral da Região das Serras, no início de janeiro. No quinto dia de reunião, o almoço foi servido sem farinha. Elizete Macuxi, uma das cozinheiras do dia, explicou a ausência: “quando a gente planta a mandioca, ela seca. Algumas partes [do solo] que são mais frias estão nascendo [as mandiocas]; nas partes que são mais quentes, elas estão morrendo. Por isso, estamos com falta de farinha na nossa assembleia”.
Elizete é mãe solo de oito crianças e a alimentação da família é feita principalmente daquilo que plantam no roçado. Ela vive na comunidade do Morro, uma das 238 localizadas da TI Raposa Serra do Sol. “Parece que, sem farinha, nós, do povo Macuxi, não somos nada. Falta força, não temos resistência”.
Já na comunidade Pedra Branca, a população está bebendo água de cacimba: Uma pequena área escavada na terra, até o início do lençol freático, com água jorrando., porque a seca também atingiu os rios próximos. Além da escassez para consumo diário, a plantação de mandioca também foi afetada pela falta de água. O local é um dos mais vulneráveis, como explica o tuxaua: Cargo de liderança concedido pela comunidade a qual a pessoa faz parte. São responsáveis por participar de assembleias, organizar movimentos e repassar informações para coordenadores regionais. Gregório Macuxi, um dos moradores: “isso nunca aconteceu, a própria mandioca que plantamos está secando, é muita quentura. Quando levantamos o pé [da mandioca], não tem nada, ela não está mais enchendo”, explica.
Amarildo Macuxi é coordenador da Região das Serras, uma das quatro subdivisões do território que reúne 77 comunidades. O líder conta que os pedidos de ajuda chegam de todos os lados. “O verão chegou muito cedo e muito forte. As nossas plantações não aguentaram o calor. Muitas comunidades estão sofrendo com a seca, principalmente aquelas que vivem de poço artesiano. Porque os poços secaram e os rios também”.
A TI Raposa Serra do Sol tem 1,751 milhões de hectares e nela vivem mais de 26 mil pessoas, dos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Patamona e Ingarikó. A demarcação foi conquistada após 34 anos de luta e passou por intenso processo de desintrusão.
Carlos Cardoso, professor do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), que desenvolve trabalhos voltados para a soberania alimentar, explica que essas populações têm a mandioca como um alimento da cultura indígena.
“Essas regiões ainda mantêm muito da sua produção tradicional, inclusive catalogando e criando bancos de sementes nativas. A farinha com certeza tem uma dimensão muito maior nessas comunidades, que ganhou profundo espaço depois da expulsão dos arrozeiros [quando esses povos tiveram a terra demarcada]. E existem diversos derivados da mandioca, a goma, o tucupi, as bebidas tradicionais como o caxiri. Todos utilizados no dia a dia”, explica.
Carlos avalia que a crise climática, com ondas de calor intensas, pode colocar em risco a forma tradicional de se alimentar dessas populações: “A tendência é que a crise climática que está afetando essa região se acentue, e que exista ainda menos roçados nas comunidades, com o uso cada vez mais constante da alimentação processada e ultraprocessada”, diz o professor.
A perda da tradição do consumo da mandioca, assim como de outros alimentos tradicionais, é observada nas últimas décadas por meio do contato das populações indígenas com a alimentação dos não indígenas, segundo o professor. Ele explica que, em algumas comunidades, as plantações já estão diminuindo pela falta de incentivo da sua produção.
“As pesquisas que estamos produzindo mostram que o contato com a realidade não indígena, como as atividades remuneradas e o acesso aos programas de auxílio, contribuíram para a diminuição da produtividade da mandioca. Hoje você chega numa comunidade e pode não ter farinha. Os mais jovens não estão interessados em fazer roçado, porque esse trabalho é muito árduo”, explica.
O ano mais quente da história
O ano de 2023 foi o mais quente da história, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial (OMM). No Brasil, a média das temperaturas foi de 24,92ºC. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), isso é 0,69°C acima da média histórica, que considera os dados entre 1961 e 2020, período de registro do instituto.
A reportagem da InfoAmazonia analisou os dados consolidados do Inmet, de 1970 até 2023, que abrangem a região da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A média das temperaturas máximas diárias nesse período mostram que 2023 foi o ano mais quente da série histórica na região da TI, atingindo a média de 36ºC. Em 1970, essa média era 31,6ºC. Em 1998, quase duas décadas depois, havia subido para 33,5ºC e chegou aos 36ºC em 2023 – 7,1% a mais do que o registrado 53 anos atrás.
Também foram analisados os meses que correspondem ao verão amazônico, estação seca que acontece entre julho e novembro. A média das temperaturas máximas desses meses em 2023 foi de 37,8ºC, enquanto a média histórica desse mesmo período é de 33,8ºC — ou seja, uma alta de 4ºC das temperaturas máximas nos meses do verão amazônico.
Somente em outubro, quando o Inmet registrou as mais altas temperaturas dos últimos nove anos na terra indígena, o mês registrou uma média de 39,2ºC, enquanto a média histórica era de 35ºC.
Aliada ao calor, a falta de chuva provocou a seca sentida pelas comunidades. Em agosto, deveria chover em média 211,1 milímetros na região da TI Raposa Serra do Sol, mas choveu apenas 89,6mm (57,5% a menos). Em novembro, foram 47,4 mm, quando deveria ter sido 90,8 mm (47,7% a menos). “Nós temos pouca chuva e temos uma cobertura de nuvens menos densa que o normal. Isso permite que a radiação solar chegue de forma mais intensa na superfície, proporcionando a ocorrência das altas temperaturas na Amazônia”, explica Sidney Abreu, meteorologista do Inmet.
Impactos à saúde indígena
Arlindo Teixeira, do povo Macuxi, tem 77 anos. Todos os dias, ele vai para o roçado às 6h da manhã, volta para casa no horário do almoço e tenta retornar para trabalhar na plantação após às 13h. Mara Teixeira, sua filha, é conselheira do Conselho de Saúde Indígena, do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Leste de Roraima. Ela busca conscientizar os mais velhos para que entendam os danos que o calor extremo pode causar à saúde.
Em outubro, o pai da conselheira acabou desmaiando durante o trabalho na roça. “Nossos conselheiros relatam a mesma situação com os idosos. Até convencê-los de que o sol está fazendo mal neste horário das 14h às 15h, é um caminho. Parece que não entra na cabeça deles. Falar de mudanças climáticas ainda é difícil, porque eles [idosos] são teimosos”, explica Mara.
“Eles não têm noção do que o sol pode fazer. Quando estão na roça, eles não querem beber água, não querem parar nos horários em que o sol está mais forte”, complementa.
O que o seu Arlindo Teixeira viveu foi um dos sintomas do calor, que pode provocar fraqueza, tonturas, desmaios, náuseas, dor de cabeça, cãibras musculares e diarreias. Também pode causar mal-estar, sonolência, irritabilidade, dificuldade de atenção, dor de cabeça, fome ou sede.
No primeiro dia da assembleia, em que as lideranças estavam chegando, a reportagem percorreu um caminho de 6h de viagem, entre a capital do estado Boa Vista e a comunidade Mutum. Após duas horas de trajeto, a equipe passou a ter na sua frente, na estrada, uma carroçaria. Eram ao menos 10 homens, numa viagem que ainda duraria cerca de 4h, vulneráveis à temperatura de 38,6ºC que fez naquele dia. Os sintomas de calor podem ocorrer em situações como essa, em que os ser humano é submetido à altas temperaturas, por tempo prolongado, sem acesso à água.
Em dezembro, o Ministério da Saúde publicou uma lista com sintomas provocados pela onda de calor, como insolação, desidratação, queimaduras e exaustão térmica.
Em nota técnica, a pasta também classificou os grupos vulneráveis e não incluiu as populações indígenas. “O Ministério da Saúde destaca que a população e as instituições públicas e privadas locais estejam mais atentas às pessoas que vivem em situação de rua, populações privadas de liberdade, migrantes e refugiados com dificuldade de acesso aos serviços de saúde, pessoas que vivem em ilhas urbanas de calor, principalmente em cidades populosas e em condições precárias de habitação e saneamento. Trata-se de um público em situação de maior vulnerabilidade”, disse o órgão.
Por outro lado, a Secretaria de Saúde Indígena tinha criado um mês antes, em novembro do ano passado, o Comitê de Respostas a Eventos Extremos na Saúde Indígena, com o objetivo de auxiliar as populações durante a seca. A pasta distribuiu recursos para compra de alimentos, enviou equipes de combate a incêndios e reforço de combustível para trafegabilidade de embarcações.
No entanto, ainda são poucas as orientações oficiais do governo sobre a prevenção ao calor. O Ministério da Saúde e a Sesai foram procuradas pela InfoAmazonia para dar esclarecimentos sobre ações voltadas às comunidades, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Enfrentamento às mudanças climáticas
Há anos, indígenas estão coletando informações sobre o calor e a falta de chuvas nos territórios de Roraima. Em 2014, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), publicou um documento sobre mudanças climáticas na região da Serra da Lua, que abrange as Terras Indígenas Malacacheta, Jacamim e Manoá-Pium. Agora, 10 anos depois, eles estão preparando uma nova edição sobre as percepções de mudanças na Raposa Serra do Sol.
A especialista em gestão territorial, Kelliane Wapichana, participou do trabalho. Ela conta que as entrevistas são feitas com cada morador, em que são relatados os tamanhos das plantações e as mudanças que ocorreram nos períodos do ano. Na época, a mandioca também foi citada como um alimento que passou a enfrentar as mudanças do tempo de colheita, mas ainda não pela perda da produtividade dela em decorrência do calor. “É um documento especificamente para que eles tenham um olhar de como querem trabalhar dentro do seu território e também questioná-los: quando a gente está falando de mudança de climáticas, como é que era trabalhar antes e como é trabalhar agora?”, diz.
O tuxaua Djacir Silva, da comunidade Maturuca, é uma das lideranças que fornece informações sobre o tema. Ele é filho de Jacir de Souza, um dos anciãos responsáveis pela demarcação do território. Djacir conta que o clima ficou imprevisível. Antes, era comum entender o tempo por meio dos ciclos lunares, mas isso também já não é possível. “Quando a gente dizia que durante a lua nova iria chover, agora a gente não sabe mais. Formam umas nuvens, fica nublado, mas elas não conseguem mais formar chuva. A gente sabe que tem que plantar mandioca em dezembro, mas agora ela está ficando pequeninha. Ficou tudo incerto”, explica o tuxaua.
A professora Tereza Macuxi conta que antes os períodos do ano ocorriam nos meses certos e que agora o calor aumentou. “Hoje, as plantas não conseguem mais suportar o calor. Vemos muita seca, de forma muita rápida. Estamos vivendo as consequências. As nossas comunidades dependem das fontes das águas, dos frutos das árvores. Nossos animais também estão sofrendo”, diz.
No estudo, eles estabelecem que é necessário fazer o reflorestamento de árvores e frutos da floresta para atrair mais animais, fazer manutenção das estradas e pontes, que são necessárias em períodos de clima extremo, dar atenção para o manejo dos peixes e também propõem a criação de um banco de sementes tradicionais.
Kelliane Wapichana defende que os saberes dos líderes sejam considerados nos debates sobre as mudanças climáticas, porque são eles os responsáveis pela preservação da floresta e os que estão em localidades mais vulneráveis ao clima.
“São eles que sabem todos os ciclos da mãe terra, eles pisam no chão descalço do solo. É uma vivência de fato originária. Como falar de um tema sem escutar verdadeiramente os filhos deste país? Como querem discutir internacionalmente, se não querem escutar os nossos povos? Os territórios estão se preparando com documentos, estudos e protocolos. Já estamos dando grandes sementes nessa discussão”, afirma.
Esta reportagem foi apoiada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com suporte financeiro da Agence Française de Development e do Open Climate Initiative/Centre for Investigative Journalism (OCRI/CIJ), dentro do projeto Defensores Ambientais. Ressalta-se que as ideias e opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente as opiniões da Agence Française de Développement.